A vida no simulacro
Realidade virtual se transforma em aditivo narcísico, afasta as pessoas do verdadeiro contato e enfraquece o vínculo afetivo. Em lugar do amor, o consumo fortalece o império da pornografia
Inez Lemos
Estado de Minas: 03/05/2014
O capitalismo sobrevive das neuroses humanas. Cada época produz sintomas que definem seu tempo. Sem as patologias, o lucro dos empresários seria infinitamente menor. As histéricas não passariam as tardes nos shoppings adquirindo quinquilharias que não necessitam, os homens não teriam tanta fissura por carrões e os jovens tanta obsessão pelo mundo virtual. Os objetos deixariam de cumprir o papel de objeto fálico, e a humanidade não seria tão insatisfeita. Ou depositaria menos na aparência e no consumo a solução para as angústias e frustrações. Outros tampouco ocupariam o lugar de submissão e exploração, se entregariam menos ao sacrifício e ao masoquismo. Ao tratar as neuroses, procurariam saber de suas faltas – onde fracassam, derrapam. No processo analítico, mudariam de posição diante da vida.
Os objetos de ostentação servem para suprimir uma falta, uma ausência. Se nos sentimos frágeis, inseguros ou infelizes, se a vida não está como desejamos, a tendência é buscar fora de nós algo para nos completar. Aditivo narcísico: adicionar algo com o intuito de melhorar a imagem. Há a ilusão de que, ao portar um objeto valioso, ele nos colocará numa posição de prevalência, superioridade. Ao consumir, seja objeto ou imagem, a ordem é nos distrairmos e nos desviarmos do verdadeiro desejo.
O desejo que interfere nas escolhas é inconsciente e resulta das ideias que circulam na linguagem, portanto, o inconsciente é contaminado pela linguagem. Se na era digital as crianças estão sendo estruturadas na linguagem virtual, on-line, significa que a matriz psíquica está se realizando de outra forma. E a função paterna e materna está se processando mais na internet do que nas mesas de refeição.
Qual a educação sexual que os adolescentes estão recebendo via internet? Por que a garotada não desgruda os olhos das telinhas? O que elas oferecem de tão interessante que muitos nem comem direito, tamanha a fissura pelas imagens? Que magia é essa capaz de cooptar full time corpo, mente e coração? A maioria só existe se estiver acoplada ao seu aparelho, sem ele, torna-se órfã de si mesma.
O tablet, além de aditivo narcísico, é o cabaré da vez. Num mundo repleto de imagens, onde há muito que ver e pouco que ler, o prazer deslocou-se do corpo real para o corpo imagem. Tocar, olhar nos olhos, sentir a pele do outro se tornaram emoções ultrapassadas, em desuso. Não estaria, essa nova forma de viver a sexualidade, aprofundando o desamparo, hiância inerente ao ser humano, sensação de que algo está faltando? E como fica a vida afetiva quando a máquina passa a ocupar o lugar do outro – o corpo no real não é mais objeto de desejo?
A mídia nos avisa: “Pornografia on-line influencia relações entre jovens, tornando-as estereotipadas e, às vezes, perigosas”. Filmes de conteúdo explícito inundam tablets e smarphones. Neles, jovens e adolescentes iniciam a vida sexual. O corpo é apenas uma imagem usada para garantir o orgasmo. Nada de fantasias sexuais, erotismo, preliminares. As imagens são nuas e cruas – um festival de genitálias garante o prazer rápido. Tudo acabado, é só iniciar novamente, sem trabalho de esperar pelo outro ou ouvi-lo em suas questões íntimas. Quais as consequências de crescer acreditando que o que se vê nos vídeos é a forma adequada de se iniciar sexualmente? Onde estão os pais e educadores? As famílias e as escolas não se ocuparam em construir argumentos eficazes ao contrapor os conteúdos pornográficos que circulam na internet?
Não, a questão não é progresso, tampouco moralismo, mas sonhos. Avançamos em tecnologia, mas a concepção sobre a existência humana continua precária, imediatista, objetiva. Como encetar mudanças estruturais, práticas sociais e culturais, sem que a condição humana seja desrespeitada? Como ansiar por práticas sexuais menos violentas, menos estrupos, quando os jovens que educamos não são inseridos nos limites da lei? Como afirmou o psicanalista Hélio Pellegrino, sem pacto edípico não há pacto social. Sem que a criança internalize a lei, os limites da convivência humana é impossível a experiência harmônica e civilizada. Toda relação sexual implica um outro, que, por sua vez, esbarra em questões éticas, de respeito e cumplicidade.
Sexo sem poesia A literatura clássica trata o sexo com erotismo. Eros – deus do amor, personagem mitológico. Mito, magia, fantasia. A arte é a forma poética de expressar aspectos da vida. Por meio dela, comunicamos o cruel, o feio e o encantador. O sexo, se tratado sem poesia e arte, além de grosseiro, é broxante. A questão está no desinteresse pelo outro, vivemos a falência da alteridade, do prazer compartilhado. A vida sexual dos internautas, robótica, solitária e operacional, é um arremedo do prazer conquistado pelos amantes.
O orgasmo na era digital é cópia imperfeita do que muitos casais, no real do sexo, já conquistaram. O capitalismo falsificou natureza, objetos, verdades. Não satisfeito, passou a falsificar o amor, o prazer e o orgasmo. Desinteresse é quando não interagimos, não participamos do banquete. É quando entramos apenas como consumidores, não nos julgamos autores da obra, apenas espectadores. Os jovens, ao tocarem apenas uma tela e dela extraírem prazer sexual, perdem a oportunidade de construir uma grande história de amor.
O progresso tecno-ilógico dizimou a esperança do encontro amoroso, esperança de vida feliz. Não falo de sonhos impossíveis, mas de felicidade cunhada na prosa, no cotidiano das almas carentes de transcendência. Amor é fantasia para ser fantasiada, ilusão para ser iludida. Sem isso, o sexo é osso duro de roer. A violência entre os jovens revela a face maldita do mundo pós-industrial. O romantismo perdeu sentido. Coisificaram o amor, reificaram o sexo e objetivaram as relações. De coisa em coisa, cavamos o abismo ôntico. Como recuperar a crença nos encontros, como torná-los ‘‘eternos enquanto durem”? No antigo imaginário feminino, prazer é picar couve, cantar e esperar o coração se descortinar, desvendando descampados, superando erosões. O amor exige tempo, há de se descongelar os sentimentos e decifrar as intermitências do coração.
O melhor do encontro é o que escapa, o que foge ao roteiro e nos envolve em enredos inusitados. O elemento surpresa garante a intensidade do êxtase. A literatura erótica conduz o leitor ao mundo fantasmagórico, enquanto nos vídeos o usuário entra em contato direto com a imagem, limitando o campo da fantasia. Erotismo é colocar poesia na pulsão, desviá-la do real. Sexo ao pé da letra. Coisa gostosa é sentir arrepios quando somos invadidos, assaltados por um olhar inesperado. Mas isso é outra coisa, é viagem feminina. E das antigas. Papo de outrora, quando as mulheres iam para a cozinha embalar lembranças de uma noite de amor. É quando elas descobrem que para gostar de panelas e fogão, primeiro precisam ser felizes na cama.
Mulher sonha, sonha alto. E de repente acorda, coloca os chinelos e vai colher girassóis. Ser mulher é profanar pecados. Maldição boa. Aquecer a alma nas panelas – desejo iluminado que transcende. Arrepiar, chorar e lamber lágrimas – quem não chora não sabe ser feliz. O choro prepara o rosto para o riso. Chorar levanta a alma e desperta emoções que cochilam, cura tristeza, mau-olhado e desesperança. Na cozinha, enquanto se pica cebola, faz angu... pulam-se cercas e currais. Sedução é metáfora, é encantar o mundo com a linguagem de dentro. Como nos lembra Adélia Prado: “Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento”.
O amor no feminino é busca eterna. Busca-se algo que transcenda o cotidiano, o tempo ordinário que nos consome em sacolões, bancos, trânsito. Ela quer olhar para o mundo e enxergar beijos, afagos, bossa nova, jantares à luz de velas, viagens. Homens, isso é a mulher – ela não esquece o desejo de subir montanhas, serras. É no topo do mundo que ela quer depositar o seu orgasmo, é lá que o seu corpo anseia testemunhar prazer, o prazer de sentir o feminino vasculhado pelo masculino. É nas alturas que ela quer reverenciar o êxtase de tocar um pedacinho do céu.
Isso, invadam a sua alma, arrebentem as entranhas e acariciem as ilusões de que, pelo menos naquele momento ela é única. Contudo, muitas garotas de hoje, ávidas consumidoras de pornografia on-line, assistem às perversões mais doentias. E isoladas, mergulham no simulacro de uma relação sexual, arremedo de vida feliz. E, desacreditadas de que alguém possa levá-las ao orgasmo, se viciam no prazer solitário. Vítimas do excesso de filmes de conteúdo explícito que distorcem, estereotipam e espetacularizam o que deveria, com recato e na penumbra, ser realizado em tempo real.
Inez Lemos é psicanalista. E-mail: inezlemoss@gmail.com.
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