sábado, 28 de junho de 2014

Sendas do miniconto - Novo livro de Francisca Vilas Boas

Novo livro de Francisca Vilas Boas reafirma o estilo de uma geração que criou um gênero que leva a concisão ao limite


Márcio Almeida
Estado de Minas: 28/06/2014


No mínimo o máximo: a arte de Henry Moore e sua obsessão em resumir o universo no detalhe     ( Nea/AFP)
No mínimo o máximo: a arte de Henry Moore e sua obsessão em resumir o universo no detalhe


Francisca Vilas Boas fez parte do grupo de autores que com pioneirismo criou em Guaxupé, no início da década de 1960, o miniconto, num movimento que envolveu também Elias José, Sebastião Resende e Marco Antonio de Oliveira. É ela a única remanescente da fértil literatura que pude resgatar em duas publicações a fim de se fazer justiça histórico-literária: A minificção do Brasil – em defesa dos frascos & comprimidos, em 2010; e Pioneiros do miniconto no Brasil – resgate histórico-literário, de 2012.

Felizmente para os leitores, a autora está de volta com o bilíngue livro de (mini)contos Das ilusões e da morte (Editora Scortecci), com tradução experiente de Miren Josune Oqueranza – depois de um período de carência ficcional de décadas, uma vez que O sabor do humano é de 1971 e Roteiro de sustos, de 1972. Nesse ínterim, contudo, teve o reconhecimento crítico de Assis Brasil, Duílio Gomes, Laís Corrêa de Araújo, Euclides Marques Andrade, Stella Leonardos, Murilo Rubião, José Afrânio Moreira Duarte, Menotti del Pichia, entre outros.

Já àquela época, sua linguagem havia sido comparada à de Clarice Lispector e Nélida Piñon, pelo "talento surpreendente", como o de um "Guimarães Rosa de saia". Revelava-se, então, uma mestra do realismo mágico "abeirando-se ao novo barroco dos modernos ficcionistas latino-americanos", a cujos textos a autora conseguia também dar "uma significação telúrica e uma contextura poética" – sendo estes diferenciais incisivos em sua obra, inclusive no livro recém-lançado.

Em entrevista publicada em Pioneiros do miniconto no Brasil, Francisca Vilas Boas confessa o aprendizado literário com a obra de Clarice Lispector, que conheceu pessoalmente; Kafka, Camus, G. Rosa, Michel Buttor, García Márquez, Julio Cortázar, Sartre, Samuel Beckett, Machado de Assis, Graciliano Ramos e com a sua própria experiência criadora (mini)contística.

Das ilusões e da morte é um livro que vai surpreender mesmo leitores muito exigentes. E vai arrancar do seu leitorado muitos ótimos comentários, porquanto é merecedor do reconhecimento crítico para fazer jus a uma autora séria, criativa, ostinato rigore de seu próprio estilo, donde uma linguagem apurada, diferenciada posto que personalíssima.

Neste livro, encontram-se marcas muito peculiares de Francisca Vilas Boas: a intensidade descritiva condensada; míticas referências históricas; o questionamento existencial; a procura de uma identidade dos personagens; o desejo transgressor não raro inibido por traumas das personagens; "a contemplação extática de um mundo cru, não humano e silencioso, ao mesmo tempo [no] limite da narrativa à beira do inenarrável", personagens que vivenciam situações contundentes com "olhos emprestados"; o estranhamento das situações criadas, o ser humano na selva dos símbolos, na carne do nada, no olhar cego da incomunicabilidade que grita em silêncio sua fragilidade e insignificância, no ethos que perdeu o pathos, no tempo que já pesa mais que o porvir; a tentativa de resgatar a existência na existência, por ser ela mediadora da relação humana e por permitir antever a verdadeira existência do outro; a surrealírica postura do dizer e do sentir como o pensar no saber vivenciado das personagens, o realismo mágico.

Surpresa
Com esses diferenciais, a autora mineira-carioca tem tudo para oferecer o máximo nos 21 (mini)contos que compõem Das ilusões e da morte. Além de ser fiel às suas origens, aos seus leitores de cabeceira e às suas próprias leituras, sem copiar ninguém, Francisca Vilas Boas avança na linguagem como quem busca sempre o inusitado não pela surpresa em si, mas para oferecer ao leitor a comovência da própria linguagem, o que é hoje raro na literatura.

Inclusive seus personagens são incomuns, posto que não se sujeitam a um cotidiano trivial e que mesmo em meio ao caos existencial preservam uma ética, um estado de espírito, um modus faciendi. Chabert toca pela solidão. E pela secura comovente camusiana. Em "Sigma-c—zero", a linguagem wittgensteiniana leva o leitor a um imaginário profundo de si mesmo. Um conto produzido para ser um clássico. Sentenciante, interfere na consciência pelo fantástico. Bila surpreende e envolve pela coragem de ser "antiga". Jeremias por ser a história de desistência consciente de muita gente que escreve. Rufino porque, justamente como no Sartre da epígrafe, "o homem deve ser inventado a cada dia".

“Labirinto” porque provoca uma baita aflição, sobretudo no leitor que fizer uma leitura sinestésica. Em "Espelhos", "Faces do silêncio", "Portas", "Voo em sonho", "Do arcaico e dos arcanos", entre outros, por exemplo, tem-se a extensão concentrada da maestria de uma autora que sabe mesmo contar uma história. Povo sentado é exemplar em realismo mágico, não no sentido de submissão a um cânone, mas uma literatura enraizada no povo como mescla étnica de influências nativas creolla, mameluca, cafuza, negra et alii, no conteúdo da exploração econômica e humana. Um autêntico e fértil roteiro para um bom filme de fronteiras.

Das ilusões e da morte é por tudo a comprovação de uma autora que se consagra para leitores que exigem, hoje, contos genuinamente bem escritos, muito interessantes, em estilo competente e raros.


. Márcio Almeida é escritor e crítico literário.
E-mail: marcioalmeidas@hotmail.com

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