O livro perdido
João Paulo
Estado de Minas: 28/06/2014
James Joyce (1882-1941) é autor de um dos maiores romances de todos os tempos, Ulysses, publicado em 1922, exatamente no dia que o autor completava 40 anos. Foi um marco. Dele decorrem centenas de outros livros, que se inspiram na linguagem, no experimentalismo, na busca do sentido da vida por meio da criação. Obra que foi uma sementeira. O que impressiona ainda hoje em Ulysses, ao ponto de se celebrar todo ano o 16 de junho (dia em que se passa a ação do romance) como uma data mítica, é sua capacidade de dialogar com toda a cultura do Ocidente e abrir novos caminhos, além de contar de forma magistral a história de um homem. Por mais que os especialistas se esforcem, Ulysses é uma obra que se lê com extremo prazer.
O mesmo não se pode dizer do romance seguinte de Joyce, Finnegans wake, lançado em 1940, sob vários aspectos uma obra tão difícil que se torna praticamente vetada aos não iniciados. É romance feito de sofisticados experimentos linguísticos, que parece se colocar o desafio de desconstruir toda a velha linguagem em nome de um novo modo de operar os signos, fazendo com que a ficção surja da própria linguagem. Para o especialista em literatura do modernismo Malcolm Bradbury, “livro algum foi concebido de modo mais ambicioso. A ideia era realizar uma história do mundo, o livro de todo o mundo; construir uma metalinguagem moderna, um esperanto para a ficção”.
No meio do caminho, no entanto, havia Finn’s Hotel, um manuscrito aparecido nos anos 1990 que causou rebuliço nos meios literários. Curto, direto e compreensível, foi considerado uma espécie de esboço de Finnegans wake, um germe dos temas e da linguagem que depois explodiriam no romance-universo de Joyce. Tudo que era excesso, jogo de linguagem, exagero, inventividade audaz e caudalosa da obra final do escritor, poderia ser absorvido nos enxutos manuscritos. Foram mais de 20 anos até que as querelas jurídicas fossem superadas. Finn’s Hotel acaba de chegar ao Brasil, em tradução de Caetano W. Galindo (Companhia das Letras), que verteu recentemente o Ulysses, na terceira e mais legível das traduções da obra-prima no Brasil.
O livro é composto de 10 pequenos capítulos, na verdade contos curtos que têm como tema momentos da história irlandesa. Dez épicos ou mitos, que atravessam 1.500 anos de história, com heróis lendários e episódios graves e cômicos. Os conhecedores do Finnegans wake poderão avaliar se de fato Humphrey Chimpden Earwicker e Anna Lívia Plurabelle são os mesmos nos dois livros, entre outras pistas espalhadas aqui e ali. Na verdade, mais que uma coleção de contos, Finn’s Hotel vale como um jogo literário e intelectual. O leitor tem em mãos dois livros, pelo menos: o próprio Finn’s Hotel e a história sobre seu sentido na compreensão da obra do escritor irlandês. A elegância do pequeno volume ajuda a dar materialidade à dupla tarefa.
Filologia e história
Por isso, a edição acerta em cercar o texto de prefácio do tradutor, que ao falar de seu trabalho dá várias indicações sobre a obra joyciana (com bom humor, se orgulha em escrever apenas uma nota à tradução, logo na primeira página, deixando para o leitor o prazer que parece ter tido com o trabalho) e os estudos de Danis Rose e Seamus Deane, que se aprofundam em temas filológicos e históricos. Danis Rose é um dos maiores especialistas na obra de James Joyce, sendo responsável pela fixação crítica do texto de Finnegans wake. Sua argumentação sobre a ligação entre Finn’s e Finnegans, por isso mesmo, deve ser levada a sério. O poeta Seamus Deane mergulha no que há de mais profundamente irlandês no livrinho.
Para completar, a edição traz em anexo outro texto de James Joyce que surgiu do mesmo empenho em descobrir genealogias. Trata-se de Giacomo Joyce, um manuscrito de apenas oito páginas datilografadas em frente e verso, que foi considerado, à época de seu descobrimento, um rascunho de Ulysses. Ou seja, estaria para a saga de Bloom, como o Finn’s Hotel para o Finnegans. O texto já é conhecido do leitor brasileiro, em tradução feita por Paulo Leminski. Ao fim, o leitor tem uma pequena joia nas mãos: criação literária, especulação filológica, estudo histórico e pesquisa genética. Para quem gosta de literatura, é um quebra-cabeça sofisticado e divertido. Se sentir vontade de ler mais Joyce, a tarefa estará paga e o caminho aberto.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
João Paulo
Estado de Minas: 28/06/2014
Estátua de James Joyce numa rua de Dublin: presença ainda viva no imaginário da Irlanda |
James Joyce (1882-1941) é autor de um dos maiores romances de todos os tempos, Ulysses, publicado em 1922, exatamente no dia que o autor completava 40 anos. Foi um marco. Dele decorrem centenas de outros livros, que se inspiram na linguagem, no experimentalismo, na busca do sentido da vida por meio da criação. Obra que foi uma sementeira. O que impressiona ainda hoje em Ulysses, ao ponto de se celebrar todo ano o 16 de junho (dia em que se passa a ação do romance) como uma data mítica, é sua capacidade de dialogar com toda a cultura do Ocidente e abrir novos caminhos, além de contar de forma magistral a história de um homem. Por mais que os especialistas se esforcem, Ulysses é uma obra que se lê com extremo prazer.
O mesmo não se pode dizer do romance seguinte de Joyce, Finnegans wake, lançado em 1940, sob vários aspectos uma obra tão difícil que se torna praticamente vetada aos não iniciados. É romance feito de sofisticados experimentos linguísticos, que parece se colocar o desafio de desconstruir toda a velha linguagem em nome de um novo modo de operar os signos, fazendo com que a ficção surja da própria linguagem. Para o especialista em literatura do modernismo Malcolm Bradbury, “livro algum foi concebido de modo mais ambicioso. A ideia era realizar uma história do mundo, o livro de todo o mundo; construir uma metalinguagem moderna, um esperanto para a ficção”.
No meio do caminho, no entanto, havia Finn’s Hotel, um manuscrito aparecido nos anos 1990 que causou rebuliço nos meios literários. Curto, direto e compreensível, foi considerado uma espécie de esboço de Finnegans wake, um germe dos temas e da linguagem que depois explodiriam no romance-universo de Joyce. Tudo que era excesso, jogo de linguagem, exagero, inventividade audaz e caudalosa da obra final do escritor, poderia ser absorvido nos enxutos manuscritos. Foram mais de 20 anos até que as querelas jurídicas fossem superadas. Finn’s Hotel acaba de chegar ao Brasil, em tradução de Caetano W. Galindo (Companhia das Letras), que verteu recentemente o Ulysses, na terceira e mais legível das traduções da obra-prima no Brasil.
O livro é composto de 10 pequenos capítulos, na verdade contos curtos que têm como tema momentos da história irlandesa. Dez épicos ou mitos, que atravessam 1.500 anos de história, com heróis lendários e episódios graves e cômicos. Os conhecedores do Finnegans wake poderão avaliar se de fato Humphrey Chimpden Earwicker e Anna Lívia Plurabelle são os mesmos nos dois livros, entre outras pistas espalhadas aqui e ali. Na verdade, mais que uma coleção de contos, Finn’s Hotel vale como um jogo literário e intelectual. O leitor tem em mãos dois livros, pelo menos: o próprio Finn’s Hotel e a história sobre seu sentido na compreensão da obra do escritor irlandês. A elegância do pequeno volume ajuda a dar materialidade à dupla tarefa.
Filologia e história
Por isso, a edição acerta em cercar o texto de prefácio do tradutor, que ao falar de seu trabalho dá várias indicações sobre a obra joyciana (com bom humor, se orgulha em escrever apenas uma nota à tradução, logo na primeira página, deixando para o leitor o prazer que parece ter tido com o trabalho) e os estudos de Danis Rose e Seamus Deane, que se aprofundam em temas filológicos e históricos. Danis Rose é um dos maiores especialistas na obra de James Joyce, sendo responsável pela fixação crítica do texto de Finnegans wake. Sua argumentação sobre a ligação entre Finn’s e Finnegans, por isso mesmo, deve ser levada a sério. O poeta Seamus Deane mergulha no que há de mais profundamente irlandês no livrinho.
Para completar, a edição traz em anexo outro texto de James Joyce que surgiu do mesmo empenho em descobrir genealogias. Trata-se de Giacomo Joyce, um manuscrito de apenas oito páginas datilografadas em frente e verso, que foi considerado, à época de seu descobrimento, um rascunho de Ulysses. Ou seja, estaria para a saga de Bloom, como o Finn’s Hotel para o Finnegans. O texto já é conhecido do leitor brasileiro, em tradução feita por Paulo Leminski. Ao fim, o leitor tem uma pequena joia nas mãos: criação literária, especulação filológica, estudo histórico e pesquisa genética. Para quem gosta de literatura, é um quebra-cabeça sofisticado e divertido. Se sentir vontade de ler mais Joyce, a tarefa estará paga e o caminho aberto.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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