Mafra Carbonieri, escritor ainda pouco conhecido pelo leitor brasileiro, vem construindo obra que vai da poesia ao romance, com alto grau de inventividade e erudição, que chama a atenção de colegas de ofício
João Marcondes
Especial para o EM
Estado de Minas: 02/08/2014
Assim como Fernando Pessoa, seu poeta
preferido, Mafra Carbonieri se desdobra em transcriaturas com
personalidade própria para escrever suas obras |
Ele mora com os pais na Rua Curuzu (nome remete à batalha na Guerra do Paraguai), onde existem nada menos de 40 pianos em diferentes casas. Atraído por melodias, o garoto passeia por aquele universo musical. Aprende a tocar o instrumento, do qual nunca vai se separar.
O pai, funcionário público, o ensina a ler e admirar os livros. A descoberta da língua escrita por Mafra, na tenra idade, coincide com uma experiência definidora. As primeiras palavras que se desvendam para o menino vêm dos jornais, que na época não têm outro assunto senão a Segunda Guerra Mundial. A realidade é sanguinária: o mundo é um lugar em conflito. Os italianos, seus ascendenti, são vilões, junto aos alemães. Como se colocar nesse mundo?
José Fernando seguiu o script. Dedicado aluno, escolheu a carreira de direito, fez concurso público, foi promotor, juiz (da vara criminal) e por fim desembargador em São Paulo. Uma vida de méritos. Mas, e o homem em conflito? Este se transfigurou em um escritor tão brilhante quanto pouco conhecido: Mafra Carbonieri. Sua obra inclui livros de contos, romances, infantis e poesia. Mafra é um homem e muitos.
A escrita de Carbonieri é marcada pela lapidação incessante da palavra. Grande obsessão, iniciada, ainda criança, lendo a obra de Monteiro Lobato, em especial Emília no país da gramática. “Ali, descobri que a palavra tem sons, identidade, voz, volume”, explica ele, que hoje, aos 79 anos, é membro atuante da Academia Paulista de Letras (ao lado de Lygia Fagundes Telles e Maurício de Souza), onde coordena um clube de leitura. “A palavra tem muitas utilidades, mas só é estética para o escritor.” Mafra abomina as acusações de racismo (“sem contexto”) de seu ídolo e referência, Lobato. “Tudo que é politicamente correto é culturalmente incorreto”, vaticina.
Na segunda metade da década de 1970, Mafra publicou livros de contos seminais como Os gringos e Arma e bagagem, onde arrancava dos processos criminais detalhes minuciosos, perversos, sexuais, de casos de polícia, brigas matrimoniais, paixões insidiosas e aprofundava-os com dilemas existenciais delicados e profundos, caminhando tangencialmente a escritores como Rubem Fonseca e Dalton Trevisan.
Nessa época, o jovem Marçal Aquino tornou-se um leitor assíduo ao descobrir o conto “Tônio Olivares” (de Homem esvaziando os bolsos), que retrata os últimos momentos de um assaltante encurralado pela polícia. Assim como o Mafra juiz criminal, o Marçal repórter policial também veio à superfície, e as duas obras criaram uma conexão afetiva, quiçá espiritual. Uma novela que Aquino está escrevendo, Como se o mundo fosse um bom lugar, será dedicada a Mafra Carbonieri. “Modesta homenagem”, diz o autor premiado de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios.
“Sinceramente, não tenho a menor ideia de o porquê um escritor com esse grau de excelência não tem o reconhecimento público que lhe é devido e merecido. Nunca sei por que acontece esse tipo de coisa. É certo apenas que o Mafra não está sozinho nessa galeria, e está em muito boa companhia, por sinal”, pontifica Marçal Aquino.
O escritor Marcelo Nocelli, editor de Mafra pela Reformatório, também tem suas teses. “Não sei se deveria dizer isso, mas acho que o Mafra é bom demais para ser conhecido”, opina. Nocelli refere-se ao alto grau de sofisticação e erudição da obra de Carbonieri, muito influenciada, por exemplo, pelo argentino Jorge Luis Borges e seus mundos inventados, intricados e, muitas vezes, de difícil navegação
Mafra diz que, antigamente, mais jovem, sonhava em ver seus livros expostos nas vitrines de livrarias. Passeava pelo centro paulista e não encontrava. Até que uma vez viu um exemplar, na parte de dentro de uma loja. Mas, surpresa, não estava entre autores brasileiros e sim italianos, como Alberto Moravia. “Hoje não tenho mais esse tipo de preocupação (de aparecer em vitrines), mas quero ser reconhecido como brasileiro”, brinca.
Forjado em grande erudição, com múltiplas bibliotecas (em casa) que vão desde leis portuguesas do século 15 a exemplares raros de filosofia (e toda a história da literatura), Mafra é um escritor dotado de grande humanismo. Uma frase que o marcou profundamente foi escrita por Platão (e atribuída a Sócrates): “O cidadão é o cadáver do homem”. E explica: “O homem institucionalizado, o homem formado pela sociedade, perde a criatividade, os objetivos e a individualidade”.
Carbonieri também lecionou literatura enquanto estudava direito. Foi o primeiro professor no Brasil a relacionar o nome de Fernando Pessoa em um plano de curso de literatura e a ministrá-lo em aulas sequenciais. O português é ídolo de Mafra e aí está uma de muitas chaves para entender a parte mais recente e, segundo o próprio escritor, mais relevante de sua literatura, a obra poética (anos1990 e 2000). O poeta, não nos esqueçamos, é famoso por seus heterônimos, como Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caieiro.
Invenção Certa vez, os editores de Mafra, Marcelo Nocelli e Rennan Martens, chegaram à sua ampla e arborizada casa no agradável Bairro do Planalto Paulista, em São Paulo. Queriam algo para publicar. De chofre, Mafra os perguntou: “Vocês conhecem o poeta Bradford Williams?”. Eles vacilaram, engasgaram. “Meio sem jeito, envergonhado pela ignorância, disse que não”, diz Martens. Mafra respondeu com um riso discreto: “Ah, ele não existe, eu inventei”.
Mas quem se aventurar pela obra de Mafra lerá as pérolas de Williams em várias epígrafes do paulista de Botucatu, misturadas a citações de Gregório de Matos e Carlos Drummond de Andrade. “Eu o imagino como porteiro do Museu Britânico, alto, meio curvo, calvo e com hemorroidas. Atribuo a ele a criação de alguns poemas em inglês que estou tentando escrever.”
Em um conto dos anos 1970, Carbonieri fala sobre o enterro de um compositor popular, Conrado Honório. “Posteriormente, quis criar a obra (musical) desse compositor.” Músicas e poesias brotaram de sua mente fértil, acompanhadas com destreza por seus dedos no piano da infância. O livro foi lançado em 1997, Cantorias de Conrado Honório, e foi finalista do Prêmio Jabuti. Honório voltaria a aparecer em outras obras, em epígrafes com frases marcantes. “Uma espécie de Dorival Caymmi”, sugere.
A sofisticação desse método chega às dedicatórias. Um de seus heterônimos é o jornalista desvairado Malavolta Casadei e o livro é dedicado a “Ana Malavolta Casadei e Hermes Basílio Casadei”. Mas Mafra corrige: “Tenho transcriaturas e não heterônimos. Qual a diferença? Minhas transcriaturas aparecem antes como criaturas ou personagens, em contos, romances, sermões, epígrafes. Como uma de frei Eusébio: ‘Há momentos em que a plenitude da alma pouco significa ante o alívio dos intestinos’”.
O religioso é “autor” de Diálogos e sermões do Frei Eusébio do Amor Perfeito, seu lançamento mais recente (2013), pela Reformatório, uma pequena editora paulista que trata livros com grande esmero, finalmente à altura de Mafra. “Nosso sonho é publicar suas obras completas”, confidencia Marcelo Nocelli. Incluirá o relançamento do romance O motim da Ilha dos Sinos (fora de catálogo e premiado na Itália, onde teve tradução), um inédito (Abismo) e outro a ser terminado. O mundo aguarda e agradece.
TRECHOS
» De diferentes transcriaturas
“Na história recente ou antiga, alguém acredita em dinheiro, sem pecado concebido.”
Bradford Williams
“Não há autores recusados. Há editores em Frankfurt. Não há poetas herméticos. Há leitores herméticos. Não há poesia profana. Há deuses heréticos. Não há Nietzsche. Kant. Ou mesmo Spencer. Mas há pesquisadores no Playcenter.”
Orso Cremonesi
“Que culpa eu tenho se culpa não sinto.
Que culpa eu sinto se culpa não tenho.
De que me acusam se eu não me acuso
Por que me recusam se me abstenho.”
Frei Eusébio do Amor Perfeito
“Minha cantoria
eu chorava e ela ria
sapateando no meu peito
um desamor que não cabia.”
Conrado Honório
Obras de Mafra Carbonieri
» Poesia
1997 – Cantoria de Conrado Honório
1998 – Modas de Aldo Tarrento
2001 – A lira de Orso Cremonesi
» Literatura infantil
1985 – A flauta lógica
1997 – A flauta lógica, farsa 1
1997 – O menino de letras, farsa 2
1998 – Absurdo mundo, farsa 3
» Conto, novela e romance
1973 – Os gringos – Novelas e contos
1973 – Arma e bagagem – Novelas e contos
1977 – Homem esvaziando os bolsos – Novelas e contos
1997 – O motim na Ilha dos Sinos – Romance
Nenhum comentário:
Postar um comentário