O último lance
Filme de Giuseppe Tornatore mergulha no mercado de arte e no reino dos desejos para narrar a história de um homem maduro, cercado de beleza, que arrisca tudo para assumir o verdadeiro sentido do amor
Carlos Perktold
Estado de Minas: 02/08/2014
Em O melhor lance, Giuseppe Tornatore trabalha
com as representações da beleza aparentemente puras, mas que se
relacionam com os valores do mercado |
É disso que se trata o filme desse diretor, com bela fotografia e os experientes atores Geoffrey Rush e Donald Sutherland. O primeiro é o leiloeiro Virgil Oldman e o segundo é o seu amigo de anos e o seu “laranja” nas salas de leilões, arrematando por preços baratos peças caras e pelas quais Oldman se interessou. Haja adjetivos para falarmos sobre o trágico resultado de uma história de amor e a traição de um sujeito admirado pelo seu público, arrogante no trato pessoal com seus funcionários e apaixonado pela pintura.
Como parte de seu trabalho, recebe pelo telefone a oferta de uma mulher para avaliar o acervo de arte deixado como herança pelos seus pais. E que acervo! Lustres imensos de Murano, esculturas, centenas de peças do século 18, pinturas e mais o que o leitor imaginar de uma família culta e rica. A herdeira é uma misteriosa garota com diagnóstico de agorafobia e que demora a se deixar ver.
À medida que o filme transcorre, Oldman, culto, intelectual e sempre arrogante com todos, vai se humanizando e se apaixona pela voz da herdeira no detestado telefone celular e não mais pelas mulheres pintadas, emolduradas e penduradas nas paredes de seu recôndito e particular cofre, a representar milhões de dólares, todas adquiridas pelo seu “laranja” e transferidas para ele.
Não é só a herdeira o único personagem a ter um diagnóstico neurótico. O leiloeiro não pega em qualquer coisa ou abre uma fechadura sem um lenço, um par de luvas ou ambos ao mesmo tempo. Há ainda uma misteriosa mulher anã, sempre sentada na mesa do bar em frente à mansão da herdeira. A anã tem obsessão por números e é tão apaixonada pelo olhar quanto Oldman.
O enredo começa por demonstrar o poder de certos marchands e leiloeiros, que, por conhecimentos ou simples poder de mercado, determinam o que é autêntico ou falso nas artes, fixando seu valor de mercado. Virgil Oldman, por pura desonestidade, que não se espera de pessoas nessa atividade profissional e na qual ninguém o imagina também um colecionador, vende para o “laranja” o que ambos sabem ser barato, de um artista importante, mas que a plateia desconhece.
Para facilitar a aquisição, Virgil desvaloriza a peça em público, colocando-a como de um artista menor. A plateia acredita nele e a peça de seu interesse é vendida por alguns milhares de euros, algo que vale milhões. Mas engana-se o espectador que o imagina interessado apenas no dinheiro. Ele se interessa pelas pinturas e pelas mulheres nelas retratadas, por quem ele se apaixona. Todos os quadros adquiridos dessa forma vão para sua pinacoteca secreta, onde as mulheres de sua vida estão emolduradas e presas no único sentimento que ele consegue ainda possuir: seu amor pela arte.
Para seu azar ou sorte, surge aquela herdeira misteriosa e psiquicamente tão complicada quanto ele, disposta a vender todo o acervo da família, adquirido pelos pais ao longo de vários anos. Oldman não percebe, mas a mansão é sua imagem especular: envelhecido por fora, difícil de ser aberto, trancado afetivamente, mas cheio de cultura por dentro
Na primeira visita a essa mansão, o leiloeiro, como um bom ladrão, rouba com luvas e um lenço uma peça na casa da herdeira Claire. A peça é levada para exame e possível montagem de um objeto antigo ao exímio mecânico que, daí para frente, funcionará como seu psicanalista selvagem. O jovem mecânico, vivido por Jim Sturgess, descobre que a peça pode ser parte do primeiro robô montado no século 18 e de valor incalculável. Tal como em seguidas sessões psicanalíticas, Oldman traz peça por peça e o seu mecânico começa a montar o objetivo e antigo robô, enquanto o psicanalista constrói um outro subjetivo na sua oficina-consultório, o próprio leiloeiro ensinando-lhe como lidar com as mulheres.
Os seus dados biográficos, suas vivências com Claire na mansão e as peças vão, simultaneamente, montando o robô objetivo e desmontando aquele subjetivo, à medida que Virgil vai se humanizando. O psicanalista é o mecânico para quem o experiente profissional, mas inexperiente amante, conta sua nova vida amorosa e pessoal e recebe conselhos como proceder com as mulheres, porque aquelas emolduradas ele sabe como escolher e cuidar. Estas são tão prisioneiras nas paredes daquele indevassável cofre quanto ele é também na sua armadura afetiva, inalcançável até para seus subordinados na empresa.
Claire, a misteriosa herdeira, é durante longo período apenas uma voz e um olho que aparece no lugar de um vazio na parede de outro olho de um pássaro pintado na porta do armário. Os dois personagens se identificam pela busca dos olhares mútuos, na porta que os separa afetivamente, continuando na agorafobia dela, e ele na obsessão pela limpeza, luvas, lenços e os germes que podem contaminá-lo.
Além dos dois, há a inusitada presença, no café em frente da mansão, da anã que sabe tudo de números, somando, multiplicando e diminuindo tudo (nunca dividindo), registrando as visitas de cada um e os acontecimentos, todos em algarismos infinitos, como fazem tantos obsessivos. Em resumo, o mundo psíquico da anã está nos números, o do leiloeiro no olhar e na obsessiva preocupação com a limpeza, e o da herdeira na fobia.
Desnudamento À medida que as peças vão saindo da mansão, avaliadas e catalogadas, os personagens vão se despindo. Virgil Oldman primeiro perde o lenço na chuva e entra na casa vazia, desesperado, à procura de seu novo amor perdido ou escondido no quarto secreto, uma espécie de inconsciente da mansão. Ele tira o par de luvas, depois o sobretudo e finalmente a experiência daquilo que Virgil nunca teve: uma mulher na cama.
O leiloeiro se apaixona por Claire e a sua paixão o humaniza, curando-o de suas neuroses. Seus negócios passam a não ter mais a mesma importância de antes e nem seu mundo fechado de mulheres penduradas nas paredes merece apenas a sua admiração. Como se fosse um amante experiente, ele quer relatar para o novo amor quem foram suas amadas anteriores. Claire em carne e osso é a primeira (daí seu nome, Virgil), mas havia outras na sua vida e ele não quer começar um relacionamento definitivo sem lhe contar os seus casos anteriores. Divide-as com sua amada, mostrando-lhe toda a magnífica pinacoteca.
Cheio de gratidão, Virgil Oldman agradece aos amigos pela descoberta de um novo mundo amoroso no qual ele jamais imaginou existir ou viver. O primeiro deles é o “laranja” que o ajudou sempre; depois o mecânico-psicanalista e sua namorada negra, com a qual o leiloeiro sempre teve dificuldade de lidar, brindando suas amizades num jantar. Claire, seu novo e único amor, percebendo o quanto ele é apaixonado pela arte, e em nome do amor por ele, desiste do leilão. Manterão todo o belo acervo em sua nova casa.
Antes da união definitiva, ele viaja a Londres para fazer seu último leilão, no qual é vendida uma pintura por um alto preço, sendo, em seguida, cumprimentado pelos clientes e amigos. De agora em diante, Virgil Oldman vai levar a vida de um feliz homem comum, apaixonado pela mulher mais jovem, em um apartamento decorado com suas peças. Mas sua volta para Londres é tão surpreendente quanto sua coleção de arte.
Na cena final, Virgil está no Café Night and Day de Praga, onde a vida é que fará seu último lance. Oldman foi ao local no qual Claire, aos 12 anos, havia se apaixonado e perdido seu grande amor em acidente trágico. A decoração do café é significativamente cheia de relógios, todos funcionando e marcando o tempo perdido ou ganho. Ali onde ela foi feliz há anos, o leiloeiro espera por alguém que nunca mais virá. Tal como na cena bíblica, ele é o Abel de uma intrigante armadilha da vida.
Carlos Perktold é crítico de arte.
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