ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Os canapés de Bauman
Leeds, 2011
Bruno Figueiredo/Divulgação | ||
Zigmunt Bauman e o cineasta Henrique Goldman durante a entrevista na casa do sociólogo em Leeds |
HENRIQUE GOLDMAN
EU ESTAVA EM Londres, no ano passado, quando fui contatado pelo ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento para gravar em Leeds uma entrevista com Zygmunt Bauman, escritor e sociólogo do qual -santa ignorância!- nunca tinha ouvido falar.
Bauman é um dos maiores pensadores da atualidade, autor de livros como "Vida Líquida" e "Medo Líquido", entre dezenas de outros. Com percepção agudíssima do mundo e um texto mais poético do que acadêmico, é mestre em expor o elo invisível entre temas na aparência desconexos, como a vida de Sócrates (o filósofo, mas poderia ser o jogador) e o Facebook, Jean Paul Sartre e a ONU ou Barack Obama e a psicanálise freudiana.
Quando Bauman abriu a porta de sua casa, levei um choque. Fisicamente, era como imagino que serei aos 88 anos. Numa espécie de déjà-vu às avessas, senti que encontrava comigo mesmo no futuro. Um dia, já velho, talvez recordasse o encontro com um jovem (que era eu) -como num conto de Borges.
Senti de imediato um carinho gigantesco por aquele velhinho. Entrando na casa apinhada de livros, cheirando a Leste Europeu, fiquei com vontade de perguntar se ele também se reconhecia em mim, mas, com vergonha de parecer presunçoso, me contive.
Depois, quando vim a saber que ele nasceu em Poznan, na Polônia, a poucos quilômetros de onde nasceram meus avós paternos, passei a achar que provavelmente descendemos de uma mesma Eva mitocondrial judaico-polonesa.
A caminho de Leeds, a equipe de três cinegrafistas e eu já tínhamos almoçado e estávamos atrasados. Queríamos começar logo a entrevista, mas Zygmunt nos conduziu até a sala de estar, onde um verdadeiro banquete, preparado por ele mesmo, estava servido.
Era uma enorme variedade de canapés, saladas, frios, tortas e sobremesas. Insistimos em primeiro fazer a entrevista para depois comer, mas ele foi inflexível.
Como uma mãe judia, estava mais interessado em nos alimentar do que em dissertar sobre a vacuidade das relações interpessoais em tempos de globalização. Quando, já farto, recusei o segundo pedaço de cheesecake, ele disse: "Por favor, me dê mais uma chance. Só mais um pedacinho".
Na maravilhosa entrevista que concedeu ao Fronteiras do Pensamento (que pode ser vista em bit.ly/zigbauman), ele fala de temas como conflitos de identidade, obsolescência da nação-Estado e ambivalências da vida.
Mas, numa pausa, ele me levou a uma salinha ao lado, onde, acendendo seu cachimbo, me falou -com enorme senso de humor- da sua vida: solidão, dores da velhice e o passado que não volta.
No dia seguinte, escrevi um e-mail a um amigo: "Conheci Zygmunt Bauman, um velhinho maravilhoso por quem estou apaixonado. Não paro de pensar em tudo o que ele disse e de reviver cada momento. Nunca uma pessoa me comoveu tanto pela combinação de inteligência e sensibilidade".
Passei a devorar tudo o que ele escreve e escreveu. Sua voz e seu olhar são absolutamente presentes, mas parecem emanados das profundezas de tempos passados -para dissecar e revelar o nosso.
Desde aquele primeiro encontro, aquela forte impressão de espelho do tempo e déjà-vu ao avesso se dissipou, mas não a admiração e a vontade de ouvi-lo.
Sempre que posso, arrumo uma desculpa e volto a Leeds para revê-lo. Sou invariavelmente recebido com banquetes nababescos. Eventualmente temos conversas sérias.
Desde que conheci Zygmunt, engordei uns quilinhos. É uma relação que me nutre muito.
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