sábado, 17 de novembro de 2012

Diálogo possível - Gustavo Fonseca‏

Ensaio de Paulo Henriques Britto reúne reflexões sobre o trabalho do tradutor de prosa e poesia. Autor é responsável por versões de obras de Charles Dickens, William Faulkner e Elizabeth Bishop 

Gustavo Fonseca
Estado de Minas: 17/11/2012 
Para o senso comum, a atividade de traduzir resume-se em saber o correspondente linguístico de diferentes idiomas, ou seja, como se diz determinada palavra ou expressão na língua em que o texto original será vertido. A ideia é tão corriqueira que nos idos da Guerra Fria o maior centro científico dos Estados Unidos, o Massachusetts Institute of Technology (MIT), montou um programa com o fim de construir uma máquina de tradução instantânea. Assim, pensava-se à época, seria possível disponibilizar imediatamente aos serviços de segurança americanos mensagens interceptadas em língua russa. Para participar do projeto, o MIT contratou o então jovem linguista Noam Chomsky, que, a bem da verdade, nunca acreditou na viabilidade desse tradutor instantâneo e pouco a pouco deu outra cara ao departamento de linguística do MIT, tornando-o referência mundial nos estudos da linguagem.

Apenas como exemplo das dificuldades de uma máquina de tradução instantânea, podemos citar as expressões idiomáticas, como bater as botas, chutar o pau da barraca, viajar na maionese... Dá para imaginar que simplesmente traduzi-las aos correspondentes linguísticos de qualquer outro idioma que não o português brasileiro seria um desatino. Se considerarmos os textos literários então, com suas liberdades poéticas, os desafios da tradução se tornam realmente homéricos em muitos casos. Explicitar esses entraves e refletir sobre essa atividade fundamental num mundo cada vez mais globalizado é a tarefa a que se impôs Paulo Henriques Britto em A tradução literária, rica compilação dos saberes acumulados pelo autor ao longo de décadas como tradutor, responsável pela versão em português de mais de 100 livros – em sua maioria obras de ficção –, além de experiente professor, dedicando-se ao ensino de tradução, criação literária e literatura brasileira na PUC-Rio.

Especializado em língua inglesa, tendo traduzido para o português autores como Charles Dickens, William Faulkner, Elizabeth Bishop e lorde Byron, Paulo Henriques Britto elabora toda a discussão com base nas duas línguas. Isso, porém, não torna dispensável a leitura do livro por tradutores de outros idiomas, já que as dificuldades básicas são as mesmas independentemente das línguas que o tradutor domina. Além disso, o fato de o autor ter se especializado em apenas um idioma estrangeiro denota o preparo que ele se exige para assinar uma tradução, com amplo domínio não apenas de inglês e de português, mas também da cultura e da literatura dos países em que essas línguas são faladas, bem como aprofundado estudo de cada um dos escritores cujos textos foram traduzidos por ele. 

Exemplos da importância desse preparo não faltam em A tradução literária, como a análise da tradução de um trecho do romance The Princess Casamassima, de Henry James (1843-1916). Em seu comentário, Paulo Henriques Britto chama a atenção não apenas para o que é próprio da língua inglesa e o que é próprio do romancista, mas também como a obra desse autor em particular foi ganhando contornos singulares, abrindo uma linha de experimentalismos que seria aprofundada mais tarde por autores como James Joyce e Virginia Woolf. Dessa forma, o tradutor vê-se obrigado a transmitir ao leitor o estilo literário de Henry James, mas no contexto do século 19, não do século 20 ou 21. Como fazê-lo? Para Britto, um bom ponto de partida seria identificar um escritor da mesma época na língua do texto-meta. Sua escolha foi Machado de Assis (1839-1908). No entanto, como as diferenças entre os dois são muitas (“a sintaxe machadiana é muito mais direta e enxuta que a jamesiana”) e não há escritores brasileiros cuja prosa seja semelhante à de James, a inventividade do tradutor se faz necessária, “de modo a produzir estruturas em português que causem no leitor uma estranheza mais ou menos equivalente à causada pela estrutura original no leitor de língua inglesa”. 

Essa metodologia, como Paulo Henriques Britto sinaliza mais adiante, é válida também em casos muito diferentes desse de Henry James. Ao explicar, por exemplo, o processo de tradução de um romance policial de Richard Price, autor conhecido pelo talento de reproduzir a fala de pessoas comuns de Nova York, Britto esclarece: “Ao traduzir seu romance, dei uma atenção toda especial às falas dos personagens, tentando recriar em português as características de cada um – artistas frustrados, pequenos marginais, policiais, toda a fauna urbana que povoa a ficção do autor. Ao mesmo tempo, porém, levei em consideração algumas expectativas do leitor brasileiro, que não são as mesmas do leitor norte-americano”. Em seguida, são fartamente detalhadas essas expectativas e as razões das escolhas do tradutor, evidenciando a linha tênue entre o respeito aos originais e a devida adaptação à língua-meta, aspecto que Britto ressalta constantemente no livro.

Poesia 

Ao passar ao estudo da tradução de poesia, as coisas se complicam ainda mais. “Poesia é o que se perde na tradução”, dizia o poeta norte-americano Robert Frost, citado e desconstruído por Paulo Henriques Britto, que defende a viabilidade dessa tarefa, como enfatiza logo no início do capítulo dedicado ao tema. Para marcar seu posicionamento, como feito no capítulo dedicado à prosa, Britto recorre a exemplos e neste caso é particularmente interessante a análise da tradução de um poema curto de Emily Dickinson. Como não poderia deixar de ser, além de detalhes linguísticos, sutilezas da versificação em língua inglesa e em língua portuguesa são observadas para justificar os critérios de tradução, um processo quase artesanal, em que as escolhas mínimas modificam substancialmente o resultado. Talvez por isso mesmo, tantos poetas sejam tradutores de poesia e tantos tradutores de poesia tenham se tornado poetas, caso do próprio Paulo Henriques Britto. 

Seja na prosa, seja na poesia, A tradução literária é permeado das ideias de teóricos e tradutores abalizados, como Boris Schnaiderman, tradutor brasileiro da literatura russa; os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, poetas e tradutores; o poeta alemão Goethe, que comenta o trabalho de Wieland, tradutor de Shakespeare para a língua alemã; o poeta, tradutor e teórico francês Henri Meschonnic, autor de Poétique du traduire; e o filósofo alemão Friedrich Schleiermacher, tradutor de Platão que há 200 anos levantou no texto “Sobre os diferentes métodos de tradução” questões ainda pertinentes à atividade. Além desses e de outros teóricos da tradução, bem como uma lista expressiva de escritores das mais diferentes épocas e estilos, Britto inclui em suas reflexões, direta ou indiretamente, grandes pensadores da linguagem, como o linguista Roman Jakobson, o semiólogo Roland Barthes e o filósofo Ludwig Wittgenstein. Mas sem academicismos ou desfile de erudição vazia.

Paulo Henriques Britto, na verdade, é bem didático e compartilha com o leitor seu processo de tradução, uma atividade muitas vezes de tentativa e erro que exige não apenas preparo teórico e técnico, mas também boa dose de criatividade, como Britto exemplifica repetidamente. Por se tratar de trabalho tão complexo, é inevitável que o resultado vez ou outra seja contestado, justificando a velha expressão italiana: traduttore, traditore. Quanto a isso, as páginas dedicadas às traduções do poema “Elegie XIX: Going to bed”, de John Donne, assinadas por Paulo Vizioli e Augusto de Campos, são primorosas por mostrar as várias e difíceis decisões que o tradutor tem de fazer, sabendo das limitações inerentes a sua tarefa, muito além da capacidade de uma máquina de tradução instantânea. 

Um tradutor poeta


Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951 e morou em Washington de 1962 a 1964 e na Califórnia em 1972 e 1973. É graduado em português e inglês pela PUC-Rio, onde obteve o título de mestre em língua portuguesa. Trabalhou como professor de inglês na década de 1970, época em que começou a fazer traduções. Atualmente, além de tradutor, poeta e ensaísta, ensina tradução, criação literária e literatura brasileira na PUC-Rio, que lhe concedeu em 2002 o título de Notório Saber. Traduz tanto em inglês-português como português-inglês e entre suas principais traduções contam obras de William Faulkner, lorde Byron, Elizabeth Bishop, Don DeLillo, Thomas Pynchon e Henry James. Como escritor, foi contemplado com prêmios como o Portugal Telecom de Literatura Brasileira, pela obra Macau, concedido pela Portugal Telecom em 2004; Prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia 2004, pela obra Macau, concedido pelo Centro Alceu 
Amoroso Lima para a Liberdade e a Universidade Candido Mendes, também em 2004; Prêmio Alphonsus de Guimaraens na categoria Poesia, pela obra Trovar claro, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional em 1997; e Prêmio Paulo Rónai na categoria Tradução de Autores Estrangeiros para o Português pela obra A mecânica das águas, de E. L. Doctorow, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional em 1995. Seu livro de poesias mais recente é Formas do nada e a última tradução o romance Grandes esperanças, de Charles Dickens, ambos publicados pela Companhia das Letras. 

A tradução literária
. De Paulo Henriques Britto
. Editora Civilização Brasileira, 157 páginas, R$ 34,90

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