André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 17/11/2012
Bscando, de certa forma, um “entendimento das coisas”, mostrando domínio e serenidade, alegria e fúria, Eucanaã Ferraz lança Sentimental, seu sexto livro de poemas, e prova que é um dos grande nomes da literatura brasileira contemporânea.
Eucanaã é dono de uma poesia vigorosa. Como no belo “Les romanciers étrangers”. O escritor, com notável domínio narrativo, esquematiza e monta, com mãos de mestre, quase um conto, micro-história sobre o fim, sobre a dor de um relacionamento que, duramente, acaba. “Diante dela, parecia/ que se convertera em pedra,/ pedra inteiramente não,/ muro inteiramente muro.” Tem certas coisas que só a poesia alcança. E a poesia de Eucanaã reverbera para além do fato, iluminando sobras e sombras. O grave da situação repercute, apesar de ser dor, quando se transforma em verbo, quando o nada, o vazio, se transforma em verso. Sem medidas que adulem, sem vestes, sem definições, a poesia pulsa e transforma.
Todo poeta deve ser, necessariamente, sentimental? A resposta não pode ser simples. A melancolia, a propensão para o triste, aquela doce tristeza (às vezes desnecessária, forçada) que embala tantos versos (às vezes desnecessários, forçados), tudo isso, para o bem da poesia, não deve tomar de assalto a alma de quem escreve ou lê o poema. O excesso de emoção por vezes pesa – e não acrescenta.
Não é o caso de Eucanaã. Ele sabe, de sobra, que o buraco é mais embaixo, ele sabe que o mundo é feito de obscuridades. Ele trabalha no cerne do fogo, do instinto, produz e escreve com calma e respeito, pois sabe que a vida é irascível, e também cheia de fúria. O poeta se desdobra, em sol: “O coração// Quase só músculo a carne dura./ É preciso morder com força”.
Eucanaã encontra, em cada poema, uma espécie muito especial de síntese para atingir o máximo em termos de sentimento. É preciso, sim, fortes doses de sentimento, é preciso, sim, ser sentimental para enxergar o mundo, com outros olhos. Sofreguidão e avidez. A fome de uns não é a necessidade de outros. Inexistem zonas de conforto. Parir não é fácil. Como se não bastassem as flores, o poeta sabe, o poeta trabalha diante da nossa eterna míngua de víveres. Sentimento é ilha cercada de cinzas, mas poesia é barco e perdição.
Não é simples, o poeta vê a transparência da água, o verde da folha, o azul, o fascinante azul, como também soube enxergar o astronauta Yuri Gagarin, que muitos julgavam ser um mero idiota, segundo Eucanaã. É irresistível, incontornável, não se comover com luas e lobisomens, com antigas fotos, com “luvas velhas, furadas, que servem somente para fazer chorar.” “El laberinto de la soledade” é um de nossos grandes poemas.
O ato de escrever nunca foi um ato natural. Mas parece que a poesia, para Eucanaã, surge de forma espontânea, é quase inerente a vocação que o impulsiona, que o leva a conhecer, a fundar o mais que novo. “Há quem, secretamente e manso,/ das pedras e das flores ouça a voz.” O poeta empreende o mesmo périplo, tem o mesmo destino dos astronautas. A ciência dirá bem depois o que o artista sempre adivinha. Estrelas não são apenas estrelas. O céu nunca é o mesmo céu (a Terra continua azul), nem a Lua, nem o sal que existe em toda lágrima e no mar.
O poeta se vale também do número de obras e construções, vale-se da graça, da beleza e do sangue quente que corre nas coisas vivas. O poeta vale-se do adeus, do amor, vale-se da vida e da obra de muitos. Eucanaã presta bela homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen, quando “todas as palavras eram números mágicos”. O poema cumpre o seu périplo e o poeta, meio tonto, ébrio de nuvens, atinge o alvo: “Repare, Cícero, que os copos se tornam/ mais leves quando cheios de vinho”.
Eucanaã é sentimental para atingir o delicado. É preciso dizer tanto da pedra, do ar necessário. É preciso coragem e talento para aceitar as tramelas e querências de um coração sensível ao extremo. A linha que separa o bom do ruim é fina e intransigente. Em seu livro, Eucanaã soube dosar para beber numa fonte limpa, pura em termos de verbo e, claro, puro sentimento.
Sem misericórdia É preciso dizer e, no caso de Eucanaã, para o bem de todos e dele mesmo, ele o faz de forma sentimental. A poética de Eucanaã não parece que nasce do fácil, ela não vem das superfícies. O poeta, nesse caso, não se rende à comoção gratuita, fácil. Ele provoca o cão/vida para sentir a mordida inexorável, desprovida de misericórdias. Eucanaã busca entender, captar com o poder das mãos, ele busca o gosto que existe e o porquê das cores. O poeta examina, para melhor caber no abismo.
O amálgama poético de Eucanaã é feito de ferro e fogo, da “luz feroz do rosto” de certas pessoas, é feito da leveza das gaivotas, daquilo que não pode ser enviado pelos postais. O poeta rouba, pois a vida não dá. A poesia de Eucanaã tem “o rigor da simetria”, a dor afirmativa e forte dos oboés. A poesia de Eucanaã é recheada de mistérios e de dura estranheza.
Eucanaã nos ensina que o verso, a pequena palavra é a mínima (quase inexistente) peça pequenina, que, apesar de tudo, faz parte da grande máquina invisível que ordena e desordena todas as coisas e todos os sentidos. A poesia de Eucanaã é, de certa forma, diferente, instigante, sem deixar de ser elegante. Sua poesia incita, indica o algo mais que, ainda, existe, porque existem poetas.
Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É professor de literatura brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escreveu os livros de poemas Martelo (7 Letras), Rua do mundo (Companhia das Letras) e Cinemateca (Companhia das Letras). Organizou o livro O mundo não é chato (Companhia das Letras) com textos em prosa de Caetano Veloso, é coordenador editorial da Coleção Vinicius de Moraes e membro do conselho editorial da Coleção Carlos Drummond de Andrade.
SENTIMENTAL
• De Eucanaã Ferraz
• Companhia das Letras, 96 páginas, R$ 32
Eucanaã é dono de uma poesia vigorosa. Como no belo “Les romanciers étrangers”. O escritor, com notável domínio narrativo, esquematiza e monta, com mãos de mestre, quase um conto, micro-história sobre o fim, sobre a dor de um relacionamento que, duramente, acaba. “Diante dela, parecia/ que se convertera em pedra,/ pedra inteiramente não,/ muro inteiramente muro.” Tem certas coisas que só a poesia alcança. E a poesia de Eucanaã reverbera para além do fato, iluminando sobras e sombras. O grave da situação repercute, apesar de ser dor, quando se transforma em verbo, quando o nada, o vazio, se transforma em verso. Sem medidas que adulem, sem vestes, sem definições, a poesia pulsa e transforma.
Todo poeta deve ser, necessariamente, sentimental? A resposta não pode ser simples. A melancolia, a propensão para o triste, aquela doce tristeza (às vezes desnecessária, forçada) que embala tantos versos (às vezes desnecessários, forçados), tudo isso, para o bem da poesia, não deve tomar de assalto a alma de quem escreve ou lê o poema. O excesso de emoção por vezes pesa – e não acrescenta.
Não é o caso de Eucanaã. Ele sabe, de sobra, que o buraco é mais embaixo, ele sabe que o mundo é feito de obscuridades. Ele trabalha no cerne do fogo, do instinto, produz e escreve com calma e respeito, pois sabe que a vida é irascível, e também cheia de fúria. O poeta se desdobra, em sol: “O coração// Quase só músculo a carne dura./ É preciso morder com força”.
Eucanaã encontra, em cada poema, uma espécie muito especial de síntese para atingir o máximo em termos de sentimento. É preciso, sim, fortes doses de sentimento, é preciso, sim, ser sentimental para enxergar o mundo, com outros olhos. Sofreguidão e avidez. A fome de uns não é a necessidade de outros. Inexistem zonas de conforto. Parir não é fácil. Como se não bastassem as flores, o poeta sabe, o poeta trabalha diante da nossa eterna míngua de víveres. Sentimento é ilha cercada de cinzas, mas poesia é barco e perdição.
Não é simples, o poeta vê a transparência da água, o verde da folha, o azul, o fascinante azul, como também soube enxergar o astronauta Yuri Gagarin, que muitos julgavam ser um mero idiota, segundo Eucanaã. É irresistível, incontornável, não se comover com luas e lobisomens, com antigas fotos, com “luvas velhas, furadas, que servem somente para fazer chorar.” “El laberinto de la soledade” é um de nossos grandes poemas.
O ato de escrever nunca foi um ato natural. Mas parece que a poesia, para Eucanaã, surge de forma espontânea, é quase inerente a vocação que o impulsiona, que o leva a conhecer, a fundar o mais que novo. “Há quem, secretamente e manso,/ das pedras e das flores ouça a voz.” O poeta empreende o mesmo périplo, tem o mesmo destino dos astronautas. A ciência dirá bem depois o que o artista sempre adivinha. Estrelas não são apenas estrelas. O céu nunca é o mesmo céu (a Terra continua azul), nem a Lua, nem o sal que existe em toda lágrima e no mar.
O poeta se vale também do número de obras e construções, vale-se da graça, da beleza e do sangue quente que corre nas coisas vivas. O poeta vale-se do adeus, do amor, vale-se da vida e da obra de muitos. Eucanaã presta bela homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen, quando “todas as palavras eram números mágicos”. O poema cumpre o seu périplo e o poeta, meio tonto, ébrio de nuvens, atinge o alvo: “Repare, Cícero, que os copos se tornam/ mais leves quando cheios de vinho”.
Eucanaã é sentimental para atingir o delicado. É preciso dizer tanto da pedra, do ar necessário. É preciso coragem e talento para aceitar as tramelas e querências de um coração sensível ao extremo. A linha que separa o bom do ruim é fina e intransigente. Em seu livro, Eucanaã soube dosar para beber numa fonte limpa, pura em termos de verbo e, claro, puro sentimento.
Sem misericórdia É preciso dizer e, no caso de Eucanaã, para o bem de todos e dele mesmo, ele o faz de forma sentimental. A poética de Eucanaã não parece que nasce do fácil, ela não vem das superfícies. O poeta, nesse caso, não se rende à comoção gratuita, fácil. Ele provoca o cão/vida para sentir a mordida inexorável, desprovida de misericórdias. Eucanaã busca entender, captar com o poder das mãos, ele busca o gosto que existe e o porquê das cores. O poeta examina, para melhor caber no abismo.
O amálgama poético de Eucanaã é feito de ferro e fogo, da “luz feroz do rosto” de certas pessoas, é feito da leveza das gaivotas, daquilo que não pode ser enviado pelos postais. O poeta rouba, pois a vida não dá. A poesia de Eucanaã tem “o rigor da simetria”, a dor afirmativa e forte dos oboés. A poesia de Eucanaã é recheada de mistérios e de dura estranheza.
Eucanaã nos ensina que o verso, a pequena palavra é a mínima (quase inexistente) peça pequenina, que, apesar de tudo, faz parte da grande máquina invisível que ordena e desordena todas as coisas e todos os sentidos. A poesia de Eucanaã é, de certa forma, diferente, instigante, sem deixar de ser elegante. Sua poesia incita, indica o algo mais que, ainda, existe, porque existem poetas.
Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É professor de literatura brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escreveu os livros de poemas Martelo (7 Letras), Rua do mundo (Companhia das Letras) e Cinemateca (Companhia das Letras). Organizou o livro O mundo não é chato (Companhia das Letras) com textos em prosa de Caetano Veloso, é coordenador editorial da Coleção Vinicius de Moraes e membro do conselho editorial da Coleção Carlos Drummond de Andrade.
SENTIMENTAL
• De Eucanaã Ferraz
• Companhia das Letras, 96 páginas, R$ 32
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