CRÍTICA / BIOGRAFIA
Livro resgata pensador escondido por Freyre
"O Triunfo do Fracasso" acerta ao tirar da obscuridade o alemão Rüdiger Bilden, estudioso da escravidão no Brasil
É nesse conjunto que se inscreve "O Triunfo do Fracasso", o novo livro de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, pesquisadora rigorosa da obra de Gilberto Freyre.
Dessa vez, a autora tira da obscuridade um pensador pouco visitado entre nós: Rüdiger Bilden, jovem alemão que se muda para os Estados Unidos pouco antes da Primeira Guerra.
Entra em Columbia em 1917 e lá estabelece contatos com o antropólogo F. Boas e Freyre. Com essa chave na mão, a autora vai atrás de cartas, ensaios, fotos e registros de colegas e familiares.
O resultado é um texto que esgrima parco material com criatividade e traça uma biografia dessa geração que passou por duas Grandes Guerras, lutos coletivos e processos acelerados de diáspora.
Bilden não sofreu diretamente com a guerra, mas delineou percurso no mínimo singular.
Erudito, com interesses em linguística e história -que iam do período helenístico à história russa ou americana-, era fluente em português, inglês, francês, alemão e holandês, arranhando italiano, espanhol e dinamarquês.
Com a institucionalização dos estudos em América Latina e Brasil, Bilden lançou-se na pesquisa "da influência da escravidão no desenvolvimento do Brasil": terreno virgem a explorar.
Começava então sua aventura tropical, que duraria de dezembro de 1925 a abril de 1927. Chega em Belém; visita o Recife e se dirige ao Rio. Por lá, conhece parte da intelectualidade local -Bertha Lutz, M. Fleiuss, Roquette Pinto, Carneiro Leão, antes de rumar para Minas Gerais.
Mas gosta mesmo é de São Paulo, local "de gente viril, vigorosa e ativa".
Antes de partir, informou-se sobre tema que lhe fora recomendado pelo mestre Boas: a questão das raças e da miscigenação.
Quando Bilden retornou aos EUA, seu trabalho já tinha até título -"Slavery as a Factor in Brazilian History"- mas nunca ganhou ponto final. Conhece-se apenas artigo de 1929, "Brazil, Laboratory of Civilization", que prometia estudo inovador.
O fato é que, anos antes de Freyre, Bilden destacava o futuro "de equalização social e fusão de elementos étnicos" esperado no país.
A partir de então, Bilden se reinventaria como professor, mediador e ativista no ambiente do Tennessee e na "Renascença do Harlem".
Maria Lúcia passa à história dos EUA durante a Guerra de 1939; analisa as novas ondas de racismo e escrutina o novo projeto de Bilden: compreender "a amizade entre EUA, Brasil e Caribe".
O ambiente, porém, era outro, com o aumento da segregação racial e uma nova agenda dos direitos civis.
A pesquisadora perde o paradeiro de Bilden a partir de 1956 até sua morte, 24 anos depois. Acertada é a saída de mudar de registro e passar a perguntar sobre o sistemático "desreconhecimento" de Freyre por aquele que havia definido como seu maior interlocutor nos EUA.
Na mesma proporção em que cresce a fama de Freyre, o mestre de Apipucos se recria como discípulo de Boas e esquece do "amigo alemão".
Boas não lembraria do aluno brasileiro; já Freyre, nas futuras edições de seus livros, cortaria elogios e referências ao amigo Bilden. São, porém, claras as afinidades entre os dois pensadores quando se pensa no papel da mestiçagem e da escravidão na história brasileira.
Quem tiver dúvidas, leia o ensaio inédito de Bilden no apêndice desse excelente "O Triunfo do Fracasso".
A biografia é um gênero difícil. Fazemos da vida um destino coerente e premeditado.
Maria Lúcia escapa da receita fácil e tece uma história que inverte jogos de luz e sombra. Freyre surge um pouco acinzentado no retrato.
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