quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Marina Colasanti - Em voo, por dinheiro

Em voo, por dinheiro  - Marina Colasanti


Estado de Minas: 01/11/2012 

Uma moça ofereceu sua virgindade em leilão, um cavalheiro nipônico deu o lance maior, o evento terá lugar em um avião em voo. O que é que nos perturba tanto nesse acontecimento?

Não pode ser o negócio em si, pois vivemos em um mundo de mercado, em que negociar é quase uma religião. Não pode ser o fato de negociar o próprio corpo, pois o corpo negociado é bem recebido em tantas bancas de revistas, em tantos cartazes publicitários, em tantos contratos pré-nupciais. Não pode ser o preço, porque em nosso universo de luxo e ostentação, US$ 780 mil para satisfazer um desejo refinado não chegam a ser uma exorbitância. Não pode ser o objeto hímen, pois já faz tempo que este é entregue ou oferecido, mais como estorvo de que a proprietária quer se livrar do que como tesouro que só cabe ao herói vencedor. Então, o que é que nos perturba?

Talvez seja o confronto com tabus que acreditávamos soterrados pela modernidade, e que de repente erguem a cabeça.

O hímen de Carolina Migliorini nada vale, física ou moralmente, para ela. Se valesse, seria precioso demais para ser posto à venda pela melhor oferta. Vale como um bem, como uma joia herdada da qual se pode abrir mão para conseguir um bom dinheiro. Mas tem, sim, valor para os homens que ergueram a mão no leilão.

Perguntei a alguns homens amigos como era fazer sexo com uma virgem. “Trabalhoso”, responderam. Algum acréscimo no prazer?, perguntei ainda. “Não”, disseram. Um deles me garantiu que nem saberia ter sido uma virgem, se ela não o informasse. Nenhum deles estava interessado na virgindade da moça, e sim na moça. Um chegou a me dizer que considerou o ato uma prestação de serviço.

Não sendo físico, o prazer é mental. É de se crer que o japonês vencedor já estivesse excitado mentalmente ao dar o maior lance. Para ele, cada limitação imposta – proibido o beijo na boca, obrigatório o uso de camisinha, tempo de ação limitado a uma hora – será um prazer a mais, precioso elemento de ritualização. A plena liberdade, a venda com porteira fechada, o “faça de mim o que quiser” banalizariam aquilo que ele fez questão de valorizar com a pilha dos seus dólares. Tenho certeza de que até preferiria que uma vestimenta ou uniforme especial fosse exigido. Assim como os toureiros vestem seu traje de luces para cravar a espada na medula do touro, ele se vestiria lenta e cuidadosamente, preenchendo com gestos precisos o longo tempo que, no voo da Austrália aos EUA, precede a única hora que lhe cabe.

Mulheres alugam o útero para gerar filhos alheios, e isso já não nos perturba, embora seja uma venda do próprio corpo bem mais complexa e completa do que apenas a venda do hímen e ponha em risco a sacralidade do ventre materno. Por que, então, torno a perguntar, tanto desconforto diante desse leilão?

Desconheço a resposta dos outros, a minha já encontrei. O que me incomoda não é a repetição da clássica cena de bordel do século 19, é o fato de essa moça de 20 anos, que se pretende moderna, reavivar o antigo sentimento masculino em relação ao hímen, sentimento que está na origem de nossa secular sujeição e que até hoje submete milhares e milhares de meninas à excisão e à infibulação. Quando ela ainda não havia nascido, mulheres de fato modernas lutaram arduamente para suprimi-lo.

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