Haddad e o "adéquam"
O senhor da língua é o uso; um dicionário é (ou deveria ser) o cartório da língua, isto é, registra o que é uso
NO ÚLTIMO debate entre José Serra (PSDB-SP) e Fernando Haddad (PT-SP), realizado na sexta passada, o petista disse ao tucano algo parecido com isto: "Professor não é reciclado nem treinado. Essas palavras não se adéquam ao educador. O educador tem sua formação inicial...".
No sábado, a Folha publicou matéria sobre o debate e deu destaque a uma declaração de cada candidato. A de Haddad foi justamente essa, mas... Mas o jornal grafou "adequam" (sem acento agudo no "e"), ou seja, não foi fiel ao que efetivamente disse Haddad. O que o jornal publicou se lê com tonicidade no "u".
No domingo, ao voltar da escola em que voto, liguei o rádio do carro e ouvi alguns dos programas em que se falava das eleições. Num deles, um veterano e querido jornalista se referiu justamente à declaração de Haddad destacada pela Folha e disse que o ex-ministro da Educação errou ao empregar a forma "adéquam". "O verbo é defectivo", disse ele.
Pois chegamos ao busílis, ou seja, ao xis do problema. "Adequar" é mesmo verbo defectivo? E o que é um verbo defectivo? Vamos por partes. É defectivo o verbo de conjugação incompleta, isto é, aquele que não se conjuga em todas as formas. Um bom exemplo é "reaver", que deriva de "haver" ("reaver" = "haver outra vez") e só se conjuga nas formas em que o verbo "haver" apresenta a letra "v". O presente do indicativo de "reaver", portanto se resume a "nós reavemos, vós reaveis". O presente do subjuntivo é simplesmente zero, já que esse tempo se faz a partir da primeira do singular do presente do indicativo, que, como vimos, é zero.
E "adequar"? Se o caro leitor procurar esse verbo em gramáticas e dicionários publicados há algum tempo, verá que ele aparece como defectivo (o presente do indicativo se limita a "nós adequamos, vós adequais"). Se procurar na última edição do "Aurélio" (2010), verá a mesma informação, mas, se procurar na primeira edição do "Houaiss" (2001) e na última (2009), verá outra coisa. Nas duas edições, o "Houaiss" dá o verbo como completo ("eu adéquo, tu adéquas, ele adéqua, nós adequamos, vós adequais, eles adéquam", no presente do indicativo).
Na primeira edição, o "Houaiss" para por aí; na segunda, acrescenta a seguinte informação: "As formas rizotônicas também ocorrem com a tonicidade na vogal '-u-': 'adequo, adequas, adequa' etc., conjugação mais corrente em Portugal".
Como já afirmei diversas vezes neste espaço, o senhor da língua é o uso; como também já afirmei várias vezes, um dicionário é (ou deveria ser) o cartório da língua, ou seja, registra (e não determina) o que é uso, tomando por base os diversos registros da língua (o formal, o informal etc.). O dicionário não deve determinar o que pode ou não pode ser usado; deve registrar o que é usado e indicar em que caso ocorre o uso. É por isso, por exemplo, que são tolos certos julgamentos sobre o registro e as definições de certos vocábulos (lembra-se do caso da palavra "cigano"?).
Resumo da ópera: de fato, em tempos passados não se registrava o emprego de certas formas do verbo "adequar" no padrão formal da língua. De uns tempos para cá, no entanto, o falante (letrado ou não) parece entender o verbo como completo. Não é por acaso, por exemplo, que um homem culto e letrado como Fernando Haddad empregou a forma "adéquam" (foi assim que ele pronunciou; a Folha errou porque não foi fiel à emissão de Haddad).
Se você prefere a tradição da língua, continue considerando defectivo o verbo "adequar", porém não torça o nariz para formas como "adéquam" ou "adequam", que já encontram respaldo nas variedades cultas da língua. É isso.
No sábado, a Folha publicou matéria sobre o debate e deu destaque a uma declaração de cada candidato. A de Haddad foi justamente essa, mas... Mas o jornal grafou "adequam" (sem acento agudo no "e"), ou seja, não foi fiel ao que efetivamente disse Haddad. O que o jornal publicou se lê com tonicidade no "u".
No domingo, ao voltar da escola em que voto, liguei o rádio do carro e ouvi alguns dos programas em que se falava das eleições. Num deles, um veterano e querido jornalista se referiu justamente à declaração de Haddad destacada pela Folha e disse que o ex-ministro da Educação errou ao empregar a forma "adéquam". "O verbo é defectivo", disse ele.
Pois chegamos ao busílis, ou seja, ao xis do problema. "Adequar" é mesmo verbo defectivo? E o que é um verbo defectivo? Vamos por partes. É defectivo o verbo de conjugação incompleta, isto é, aquele que não se conjuga em todas as formas. Um bom exemplo é "reaver", que deriva de "haver" ("reaver" = "haver outra vez") e só se conjuga nas formas em que o verbo "haver" apresenta a letra "v". O presente do indicativo de "reaver", portanto se resume a "nós reavemos, vós reaveis". O presente do subjuntivo é simplesmente zero, já que esse tempo se faz a partir da primeira do singular do presente do indicativo, que, como vimos, é zero.
E "adequar"? Se o caro leitor procurar esse verbo em gramáticas e dicionários publicados há algum tempo, verá que ele aparece como defectivo (o presente do indicativo se limita a "nós adequamos, vós adequais"). Se procurar na última edição do "Aurélio" (2010), verá a mesma informação, mas, se procurar na primeira edição do "Houaiss" (2001) e na última (2009), verá outra coisa. Nas duas edições, o "Houaiss" dá o verbo como completo ("eu adéquo, tu adéquas, ele adéqua, nós adequamos, vós adequais, eles adéquam", no presente do indicativo).
Na primeira edição, o "Houaiss" para por aí; na segunda, acrescenta a seguinte informação: "As formas rizotônicas também ocorrem com a tonicidade na vogal '-u-': 'adequo, adequas, adequa' etc., conjugação mais corrente em Portugal".
Como já afirmei diversas vezes neste espaço, o senhor da língua é o uso; como também já afirmei várias vezes, um dicionário é (ou deveria ser) o cartório da língua, ou seja, registra (e não determina) o que é uso, tomando por base os diversos registros da língua (o formal, o informal etc.). O dicionário não deve determinar o que pode ou não pode ser usado; deve registrar o que é usado e indicar em que caso ocorre o uso. É por isso, por exemplo, que são tolos certos julgamentos sobre o registro e as definições de certos vocábulos (lembra-se do caso da palavra "cigano"?).
Resumo da ópera: de fato, em tempos passados não se registrava o emprego de certas formas do verbo "adequar" no padrão formal da língua. De uns tempos para cá, no entanto, o falante (letrado ou não) parece entender o verbo como completo. Não é por acaso, por exemplo, que um homem culto e letrado como Fernando Haddad empregou a forma "adéquam" (foi assim que ele pronunciou; a Folha errou porque não foi fiel à emissão de Haddad).
Se você prefere a tradição da língua, continue considerando defectivo o verbo "adequar", porém não torça o nariz para formas como "adéquam" ou "adequam", que já encontram respaldo nas variedades cultas da língua. É isso.
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