Estadode Minas : 01/12/2012
Passada a eleição municipal, já começam acordos e negociações políticas para a montagem das equipes de gestão. Em Belo Horizonte, a cultura merece atenção destacada. Durante a primeira gestão de Márcio Lacerda, surgiram de várias frentes do movimento cultural posturas críticas que se articularam em demandas variadas, da continuidade dos projetos históricos da cidade, como o FIT e FAN, à crítica à regulamentação dos espaços públicos e sua entrega aos interesses da iniciativa privada.
O movimento do setor teve expressão, vocalização e capacidade de organização, gerando ações políticas que se traduziram em bandeiras eleitorais que propunham mudança. A vitória do candidato do PSB é um fato que reforça a aprovação do projeto em andamento, mas que não dissolve o sentido e a oportunidade das manifestações democráticas. Talvez por isso o setor cultural se torne cruzamento ainda mais engarrafado que as ruas da cidade.
Há um compromisso delicado em jogo, que se traduz no respeito às determinações da democracia. Não se trata de processo fácil: a mesma democracia que supõe o respeito às regras e à vontade da maioria preconiza o direito à discordância e ao conflito político, o que faz parte do mesmo jogo. Há o polo da concordância e as margens do enfrentamento.
A cultura assumiu de forma desabrida, por meio de seus setores organizados, a postura de oposição. Agora, tem o compromisso com a continuidade da defesa de seus projetos. Por outro lado, o Executivo municipal precisa ser articulado o suficiente para governar para todos, mesmo num terreno de nítido partidarismo ideológico.
Em outras palavras, o atual cenário que se arma, tanto para a administração municipal quanto para os militantes das organizações culturais, pode ser traduzido numa relação de complementaridade entre o que é universal – o horizonte da lei – e o que é resultado de conflitos – a franja do conflito. De um lado os laços republicanos, que balizam o ambiente comum; de outro a liberdade criativa da democracia, que aponta a flexibilidade que incorpore a divergência e o dinamismo da vida.
Cidadania e justiça
Mais que desenhar em baixo relevo projetos e programas sobre o mapa das ruas, trata-se de recolocar em cena algumas operações que vêm sendo construídas ao longo dos anos. São balizas que apontam tanto elementos ligados ao financiamento quanto instrumentos de participação e controle social. Além disso, trata-se de pensar a política cultural a partir de dois grandes vetores: cidadania e justiça.
As ideias que se seguem fazem parte de um projeto que foi sendo urdido coletivamente ao longo das últimas décadas no Brasil e no mundo. Sem vínculo com ideologias ou partidos, são fruto de práticas experimentadas e criticadas socialmente, de propostas inventadas com o objetivo de ampliar a participação do setor na vida da sociedade, de priorizar instrumentos capazes de descentralizar a criação, produção e fruição.
Durante muito tempo, a cultura foi vista como área marginal, acessória, voltada para o mundo da arte e do espetáculo, e, em menor escala, do compromisso com a manutenção de equipamentos como orquestras, teatros e companhias de dança. Cabia ao setor oferecer programações populares ao ar livre e óperas em teatros inacessíveis à maioria da população. Nessa lógica, democratizar era pôr artistas em caminhões e palcos improvisados.
A relação com o setor privado foi construída a partir da absoluta submissão. O setor público retirou seus investimentos, depositou a responsabilidade nas leis de incentivo e fez das empresas gestoras intelectuais da cultura. Elas decidiam o que era importante financiar (com dinheiro público), tendo como grande preocupação a valorização de suas marcas. O panteão empresarial que cerca a Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, é um exemplo perverso desse princípio de inversão, que pode vir a ser copiado no chamado “corredor cultural” no Centro de BH.
O próprio setor público se retirou do financiamento de suas responsabilidades, fazendo das estatais agentes de sustentação de seus projetos – da montagem de espetáculos à manutenção de teatros, do palco à higiene dos banheiros. De um tempo para cá, leis de incentivo, institutos culturais das grandes empresas e diretorias de marketing passaram a definir, pela negativa, o que é cultura no Brasil. Observou-se a concentração cada vez maior nos grandes centros e o reforço de produtos que seriam facilmente sustentados pelo mercado. O setor público, além de deseducar os patrocinadores, reforçou a estratégia de exclusão.
Outros rumos
Todas as tentativas de vencer essa lógica por dentro da própria estrutura de poder se mostraram ineficazes. Mesmo instrumentos como os fundos de cultura, que financiam teoricamente projetos menos atraentes sob o aspecto do marketing, acabaram por reproduzir a mesma tendência. Os fundos quase sempre são alternativa marginal, com poucos recursos e a tendência perversa de tratar pobremente o que considera arte de pobre. Basta ver os valores alocados pelas diversas instâncias de governo nas modalidades de mecenato e no fundo.
Por isso, os eixos que devem dirigir as políticas culturais precisam recuperar a dimensão política do setor. É o que pode ser chamado de cidadania cultural. A noção de cidadania, aparentemente clara quando se trata de políticas públicas como saúde, educação e moradia, parece estranha ao setor cultural. Se a cidadania for compreendida como a capacidade de ação autônoma sobre o mundo, nada mais importante que a cultura. É por meio dela que a consciência emerge e se fortalece, se a cidadania é real, ou se obscurece e aliena, se a ação de cidadania não se completa.
A cidadania cultural supõe, obrigatoriamente, alargar os campos de participação popular em todas as fases do processo de produção e distribuição de cultura. Trata-se de um processo que amplia a participação do cidadão na definição dos rumos, na criação de projetos, na valorização da diversidade, na convivência com o novo, na abertura ao experimentalismo. A gestão voltada para a cidadania tira a cultura do fim da fila e da rabeira do processo para considerá-la como insumo vital. A cultura não é resultado a que se assiste passivamente, é construção vivida no embate das consciências e sensibilidades.
A política cultural cidadã descentraliza, muda padrões de financiamento, responsabiliza o Estado e os criadores pela gestão, problematiza a cidade, investe onde o dinheiro não chega, dá visibilidade ao que o mercado esconde, aposta na diferença. Dito de outra maneira, dá poder ao setor e o distribui entre os cidadãos.
O segundo vetor é o da justiça. Em nenhum outro campo da atividade humana a injustiça é tão evidente quanto na cultura. Uma política justa incide igualmente sobre toda a cadeia do setor. É na forma de incentivar a cultura da violência, do consumismo, da alienação e do preconceito que se evidencia o que vem sendo feito no Brasil. A cultura tem se tornado signo de exclusão, concentração e nivelamento. Compreender a dimensão de justiça do setor vai alterar todo o padrão vigente no país, deslocando o eixo da fruição para o da produção.
Vão nessa linha projetos como os pontos de cultura, a valorização da cultura popular e até a democratização da erudição (há uma cultura que é patrimônio universal e vedada ao cidadão comum). Outros elementos que reforçam essa visão são as manifestações políticas que ganham dimensão por meio da arte, como os blocos de carnaval, as grandes apresentações de bandas e grupos de teatro e o Duelo de MCs. Esses eventos mesclam a espontaneidade com a crítica e o convite a ocupar a cidade. Nessa hora, o setor cultural público pode ajudar muito: é só não atrapalhar.
Belo Horizonte vai receber as propostas para a área cultural com muita crítica. Por enquanto, essa é a única notícia boa.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
O movimento do setor teve expressão, vocalização e capacidade de organização, gerando ações políticas que se traduziram em bandeiras eleitorais que propunham mudança. A vitória do candidato do PSB é um fato que reforça a aprovação do projeto em andamento, mas que não dissolve o sentido e a oportunidade das manifestações democráticas. Talvez por isso o setor cultural se torne cruzamento ainda mais engarrafado que as ruas da cidade.
Há um compromisso delicado em jogo, que se traduz no respeito às determinações da democracia. Não se trata de processo fácil: a mesma democracia que supõe o respeito às regras e à vontade da maioria preconiza o direito à discordância e ao conflito político, o que faz parte do mesmo jogo. Há o polo da concordância e as margens do enfrentamento.
A cultura assumiu de forma desabrida, por meio de seus setores organizados, a postura de oposição. Agora, tem o compromisso com a continuidade da defesa de seus projetos. Por outro lado, o Executivo municipal precisa ser articulado o suficiente para governar para todos, mesmo num terreno de nítido partidarismo ideológico.
Em outras palavras, o atual cenário que se arma, tanto para a administração municipal quanto para os militantes das organizações culturais, pode ser traduzido numa relação de complementaridade entre o que é universal – o horizonte da lei – e o que é resultado de conflitos – a franja do conflito. De um lado os laços republicanos, que balizam o ambiente comum; de outro a liberdade criativa da democracia, que aponta a flexibilidade que incorpore a divergência e o dinamismo da vida.
Cidadania e justiça
Mais que desenhar em baixo relevo projetos e programas sobre o mapa das ruas, trata-se de recolocar em cena algumas operações que vêm sendo construídas ao longo dos anos. São balizas que apontam tanto elementos ligados ao financiamento quanto instrumentos de participação e controle social. Além disso, trata-se de pensar a política cultural a partir de dois grandes vetores: cidadania e justiça.
As ideias que se seguem fazem parte de um projeto que foi sendo urdido coletivamente ao longo das últimas décadas no Brasil e no mundo. Sem vínculo com ideologias ou partidos, são fruto de práticas experimentadas e criticadas socialmente, de propostas inventadas com o objetivo de ampliar a participação do setor na vida da sociedade, de priorizar instrumentos capazes de descentralizar a criação, produção e fruição.
Durante muito tempo, a cultura foi vista como área marginal, acessória, voltada para o mundo da arte e do espetáculo, e, em menor escala, do compromisso com a manutenção de equipamentos como orquestras, teatros e companhias de dança. Cabia ao setor oferecer programações populares ao ar livre e óperas em teatros inacessíveis à maioria da população. Nessa lógica, democratizar era pôr artistas em caminhões e palcos improvisados.
A relação com o setor privado foi construída a partir da absoluta submissão. O setor público retirou seus investimentos, depositou a responsabilidade nas leis de incentivo e fez das empresas gestoras intelectuais da cultura. Elas decidiam o que era importante financiar (com dinheiro público), tendo como grande preocupação a valorização de suas marcas. O panteão empresarial que cerca a Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, é um exemplo perverso desse princípio de inversão, que pode vir a ser copiado no chamado “corredor cultural” no Centro de BH.
O próprio setor público se retirou do financiamento de suas responsabilidades, fazendo das estatais agentes de sustentação de seus projetos – da montagem de espetáculos à manutenção de teatros, do palco à higiene dos banheiros. De um tempo para cá, leis de incentivo, institutos culturais das grandes empresas e diretorias de marketing passaram a definir, pela negativa, o que é cultura no Brasil. Observou-se a concentração cada vez maior nos grandes centros e o reforço de produtos que seriam facilmente sustentados pelo mercado. O setor público, além de deseducar os patrocinadores, reforçou a estratégia de exclusão.
Outros rumos
Todas as tentativas de vencer essa lógica por dentro da própria estrutura de poder se mostraram ineficazes. Mesmo instrumentos como os fundos de cultura, que financiam teoricamente projetos menos atraentes sob o aspecto do marketing, acabaram por reproduzir a mesma tendência. Os fundos quase sempre são alternativa marginal, com poucos recursos e a tendência perversa de tratar pobremente o que considera arte de pobre. Basta ver os valores alocados pelas diversas instâncias de governo nas modalidades de mecenato e no fundo.
Por isso, os eixos que devem dirigir as políticas culturais precisam recuperar a dimensão política do setor. É o que pode ser chamado de cidadania cultural. A noção de cidadania, aparentemente clara quando se trata de políticas públicas como saúde, educação e moradia, parece estranha ao setor cultural. Se a cidadania for compreendida como a capacidade de ação autônoma sobre o mundo, nada mais importante que a cultura. É por meio dela que a consciência emerge e se fortalece, se a cidadania é real, ou se obscurece e aliena, se a ação de cidadania não se completa.
A cidadania cultural supõe, obrigatoriamente, alargar os campos de participação popular em todas as fases do processo de produção e distribuição de cultura. Trata-se de um processo que amplia a participação do cidadão na definição dos rumos, na criação de projetos, na valorização da diversidade, na convivência com o novo, na abertura ao experimentalismo. A gestão voltada para a cidadania tira a cultura do fim da fila e da rabeira do processo para considerá-la como insumo vital. A cultura não é resultado a que se assiste passivamente, é construção vivida no embate das consciências e sensibilidades.
A política cultural cidadã descentraliza, muda padrões de financiamento, responsabiliza o Estado e os criadores pela gestão, problematiza a cidade, investe onde o dinheiro não chega, dá visibilidade ao que o mercado esconde, aposta na diferença. Dito de outra maneira, dá poder ao setor e o distribui entre os cidadãos.
O segundo vetor é o da justiça. Em nenhum outro campo da atividade humana a injustiça é tão evidente quanto na cultura. Uma política justa incide igualmente sobre toda a cadeia do setor. É na forma de incentivar a cultura da violência, do consumismo, da alienação e do preconceito que se evidencia o que vem sendo feito no Brasil. A cultura tem se tornado signo de exclusão, concentração e nivelamento. Compreender a dimensão de justiça do setor vai alterar todo o padrão vigente no país, deslocando o eixo da fruição para o da produção.
Vão nessa linha projetos como os pontos de cultura, a valorização da cultura popular e até a democratização da erudição (há uma cultura que é patrimônio universal e vedada ao cidadão comum). Outros elementos que reforçam essa visão são as manifestações políticas que ganham dimensão por meio da arte, como os blocos de carnaval, as grandes apresentações de bandas e grupos de teatro e o Duelo de MCs. Esses eventos mesclam a espontaneidade com a crítica e o convite a ocupar a cidade. Nessa hora, o setor cultural público pode ajudar muito: é só não atrapalhar.
Belo Horizonte vai receber as propostas para a área cultural com muita crítica. Por enquanto, essa é a única notícia boa.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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