Zero Hora - 01/12/2012
Durante mais de 30 anos, meu pai trabalhou em uma grande loja de 
departamentos chamada Hermes Macedo. Se aquele prédio na esquina da 
Alberto Bins com a Coronel Vicente fosse um reino – e para mim era –, 
meu pai seria o soberano, e eu sua única princesa.
Loja de departamentos era aquele negócio com a ambição cosmogônica 
de contemplar todas as necessidades de consumo que um crediário é capaz 
de abarcar. Na HM, compravam-se calcinhas e geladeiras, bicicletas e 
relógios, pneus e anáguas, lanchas e todos os seus acessórios, sofás e 
passadores de cabelo. Como a família real morava em apartamento, a 
Hermes Macedo era meu parque, minha Disney, meu reino das águas claras. 
Ali, eu podia pular em todos os sofás, testar todos os brinquedos e,
 mais radical de todas as aventuras, subir correndo a escada rolante no 
sentido contrário. Na Hermes Macedo, iniciei e encerrei minha carreira 
de modelo infantil cometendo um ousado strip-tease na passarela, sentei 
no colo do Papai Noel pela primeira e última vez – e chorei, acalentei 
todas as bonecas, pedalei todas as bicicletas sem nunca sair do lugar. 
Tudo porque meu pai trabalhou quase a vida inteira em um único 
emprego – e para mim, na infância, era como se ele tivesse nascido ali e
 fosse morrer ali também. (Anos mais tarde, ele acabou morrendo no 
trabalho, mas não na HM, que já havia falido, mas no escritório onde se 
empregou para completar a modesta aposentadoria que se pagava aos 
soberanos das lojas de departamentos naquela época.)
Em um texto clássico sobre a arte de contar histórias, Walter 
Benjamin divide a habilidade de narrar em dois grandes arquétipos: o do 
marinheiro e o do camponês. O marinheiro viaja, enfrenta perigos, 
estende horizontes com o relato de suas aventuras. O camponês é o 
depositário da tradição, das narrativas que tornam um lugar único em 
relação a todos os outros. O marinheiro é espaço, o camponês é tempo.
Meu pai foi o camponês urbano que nunca saiu do mesmo lugar. Se 
tivesse sido um piloto da Varig, um capitão da Guarda Costeira, um 
mascate de tecidos, é provável que tivesse me ocorrido perguntar mais 
sobre as coisas que tinha visto, os personagens exóticos, as paisagens 
distantes. 
Hoje me arrependo de não ter usado o tempo que tivemos juntos para 
perguntar mais sobre a cidade de onde ele nunca saiu, sobre as esquinas 
que conhecia desde sempre, sobre as pequenas e grandes intrigas daquele 
reino aparentemente indestrutível que se desfez antes mesmo de eu chegar
 à vida adulta.
Dizem que os garotos de hoje têm pavor da ideia de trabalhar a vida 
inteira no mesmo lugar e que a carreira estável não tem o apelo que 
tinha nos tempos do meu pai. E é verdade. Mas o fato é que a jornada 
aventurosa do marinheiro sempre foi mais sedutora do que a estabilidade,
 mesmo quando ser camponês parecia mais sensato. 
Eu mesma, se tivessem me perguntado, talvez respondesse que 
preferiria visitar todas as capitais da Ásia a morar sempre na mesma 
cidade, fazendo a mesma coisa todos os dias e vendo as semanas virarem 
meses, e os meses se agruparem em anos.
Não foi bem o que aconteceu. Esta semana, comemorei inacreditáveis 
25 anos lavrando metaforicamente o mesmo pedaço de terra, na mesma 
esquina da Erico com a Ipiranga onde comecei a trabalhar antes mesmo de 
decidir ser jornalista. Sou, como meu pai, uma camponesa.
O que marinheiros e camponeses acabam percebendo depois de algum 
tempo é que há sempre algo novo a se descobrir na paisagem de todos os 
dias, assim como algo que se repete naqueles lugares onde nunca 
estivemos antes.
A única aventura realmente inesgotável talvez seja aquela de poder fazer o que se gosta. Assim na terra como no mar.
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