Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 01/12/2012
Uma das escritoras mais aclamadas da literatura chilena atual, com ecos na Europa e em todo o subcontinente latino-americano, Marcela Serrano tem o poder de surpreender seus leitores em cada livro, como ocorreu com o romance Dez mulheres, que acaba de ser lançado no Brasil. Com toda a experiência e talento literário adquirido ao longo dos anos, ela narra, cada uma no seu tempo, a história de nove mulheres muito diferentes entre si, que se reúnem em torno de uma terapeuta para falar de pequenas conquistas, anseios e dramas. A décima personagem da história – e última a falar – é justamente a terapeuta, que se chama Natasha, e que também, como as outras mulheres, acaba abrindo seu coração. Nascida em Santiago, onde se formou em belas-artes pela Universidade Católica, exilada política na Itália na década de 1970, Marcela Serrano afirma que, embora tenha se inspirado em mulheres chilenas para criar as histórias, toda a trama do livro é ficcional. “Estaria mentindo se dissesse que uma só dessas mulheres existe na realidade”, disse a romancista em entrevista ao Pensar.
Como foi a experiência de escrever Dez mulheres?
Foi muito rica, mas me deixou extremamente exausta. De todos os meus livros, foi o que mais demorei para escrever. Ter de trabalhar a voz de cada uma das mulheres me obrigou a concentrar-me, literalmente, 10 vezes mais do que quando a narradora é uma só. É que cada uma daquelas mulheres, devido à idade, profissão, condição social etc., possuía uma linguagem e uma linha de pensamento diferente. Demorava a passar de uma voz para a outra. Foi um tempo meio esquizofrênico esse que passei escrevendo o livro. Mas acho que valeu muito a pena.
Você diria que as histórias contadas retratam a realidade das mulheres chilenas de hoje?
Creio que sim, pelo menos foi nas mulheres chilenas que me baseei para contar as histórias, embora elas sejam pura ficção. Mas deduzo, tirando como base minhas viagens pelo mundo e as reações que as traduções do livro têm provocado, que essa é uma situação muito mais universal que regional. Confesso que poucas vezes usei mais a minha imaginação do que nessa novela. Para mim foi fascinante inventar algumas histórias, mesmo tendo, às vezes, recorrido a imagens conhecidas e a certos giros da linguagem das mulheres com as quais conversei, ou a alguma piada que uma ou outra acabou me contando.
Como é ser mulher na América Latina de hoje, especialmente no Chile?
É uma coisa ambígua. As coisas, na realidade, avançaram bem menos do que parece. No caso chileno, tivemos uma presidente da República, Michele Bachelet, mas seguimos tendo uma sub-representação no parlamento ou nas empresas privadas, para não mencionar outros poderes fatídicos, como as Forças Armadas ou as igrejas. Temos avançado em muitos aspectos, é verdade, mas ainda não alcançamos a igualdade que almejamos. As mulheres deste continente tendem a ser muito fortes. Mas ainda somos repúblicas jovens e, às vezes, não nos damos conta da fragilidade que isso significa. Em muitos casos, somos melhores do que os homens e pagamos um preço bem caro por isso.
Com a derrubada do presidente Salvador Allende, em 1973, você e milhares de compatriotas se viram obrigados a deixar o Chile. Como foi sua experiência?
Olhando para trás, compreendo que aquela época foi melhor do que costumava pensar. A Itália, para onde fui, foi um bálsamo para as feridas, com sua profunda solidariedade e compromisso. Nós nos encontrávamos com diversos outros latino-americanos, cada um com a sua ditadura nas costas e uma história para contar. No início não foi fácil, eu era jovem e muito apegada à minha família e ao meu país, e custei para me acostumar com aquela nova realidade e com a precária condição afetiva e econômica. Se o exílio é uma coisa dramática, por outro lado nos faz ficar ainda mais apegados à nossa terra, e foi isso que aconteceu comigo. De uns tempos para cá, voltei a viver no Chile, mas passei muitos anos também no México e na Argentina. Atualmente, viajo bastante, pois minha curiosidade em conhecer o mundo é uma coisa inesgotável. De Santiago, particularmente, não gosto muito. Mas tenho uma casa no campo, com muitas árvores, livros, cachorros, gatos e galinhas. Quando estou lá, sou uma mulher muito feliz.
Como está o Chile atualmente? O país já acertou as contas com o seu passado recente?
Sim, temos acertado muitas contas. O chefe de polícia de Pinochet, por exemplo, está atrás das grades já há algum tempo, com quase todos os seus asseclas. Ainda estão sendo abertos processos de casos antigos, a Justiça não tem descansado. Hoje, os direitos humanos têm voz, como nunca houve antes. Estamos transformando o Chile em um país verdadeiramente democrático. O problema é que, no campo econômico, ainda estamos expostos a um capitalismo selvagem que herdamos da ditadura. Atualmente, o país está sendo governado pela direita, o que faz acentuar ainda mais os níveis de desigualdade. Por outro lado, no cotidiano, a vida corre perfeitamente bem, tudo funciona de forma bastante eficiente. Mas, por debaixo do pano, ainda existe raiva, muita raiva.
E a literatura, como foi que ela entrou na sua vida? Como é seu processo criativo?
A literatura entrou na minha vida de forma natural. Meus pais escreviam; ele fazia ensaios e minha mãe novelas. Os lápis, as máquinas de escrever e os livros eram a minha paisagem de infância. Somos cinco irmãs e todas escrevem: uma é historiadora, outra jornalista, outra socióloga... Parece que a escrita está no nosso sangue. No meu caso, demorei muito a reconhecer que escrever era a minha verdadeira vocação – suponho que não queria imitar a minha mãe. Quanto ao meu processo criativo, esse não tem nada de diferente: observo, contemplo e leio, leio muito. Anoto frases e palavras em qualquer pedaço de papel que esteja à mão, mas quase sempre perco. Quando uma imagem se torna obsessiva, compreendo que é o germe de uma história. Então me entrego e começo a escrevê-la, sem muita ideia preconcebida sobre onde a coisa vai dar. É fascinante deixar que uma história siga seu próprio caminho e não ao contrário, como costuma acontecer.
Tem algum ritual para escrever?
Meus rituais são ínfimos: preciso de um lugar em que esteja sozinha, água e café, além de muitos cigarros. Mas, como sou mulher, estou sempre sendo interrompida, o que não se passa com meus colegas escritores, porque sempre existe uma mulher que fecha as portas para eles. Já disse mil vezes que minha grande necessidade é ter uma esposa! Trabalho mais à noite, nunca começo a escrever de manhã, mas, quando estou na metade de algum livro, aí escrevo a qualquer hora, muitas horas seguidas, sem descanso. No dia seguinte, antes de começar uma nova jornada, corrijo o trabalho da noite anterior. E o que nunca me esqueço, depois de ter tido dois computadores roubados, é de gravar o que escrevo. Levo o pen drive para a cama, durmo com ele ao meu lado.
Nas suas viagens ao Brasil teve contato com alguns dos nossos escritores?
Já estive várias vezes por aí, de férias, em encontros feministas, giros culturais a convite dos governos anteriores, mas nunca para lançar um livro. Sigo a realidade política do Brasil, mas não a literária. A língua nos separa muito. É como se o Brasil não fosse uma peça-chave do subcontinente latino-americano. Não conheço os jovens valores da literatura brasileira, mas os velhos estandartes, como Jorge Amado, Rubem Fonseca e Nélida Piñon. Mas meu grande amor é Clarice Lispector. Sei que ela não nasceu no Brasil, e sim na Ucrânia. Mas, afinal de contas, foi aí que se criou e viveu. Ela é uma das minhas autoras prediletas.
A literatura pode significar uma espécie de redenção?
Darei a resposta de forma muito pessoal: não imagino outra forma de redenção possível que não seja com a escrita. Sem ela, minha mente seria caótica e eu perderia o meu caminho, além de uma fonte profunda de prazer. Rilke dizia que podia deixar de escrever. Eu faria isso se pudesse. Mas não posso. Clarice dizia: “Escrever é também bendizer uma vida que não foi bendita”.
Dez mulheres
• De Marcela Serrano, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman
• Editora Alfaguara, 266 páginas, R$ 39,90
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