segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

No terreiro de Carybé


Folha de São Paulo 
Publicação de conto inédito do pintor celebra encontro com a Bahia, terra onde o artista nascido na Argentina escolheu viver
Folhapress
O pintor Carybé, autor do conto "Iaba"
O pintor Carybé, autor do conto "Iaba"
MARCO RODRIGO ALMEIDAENVIADO ESPECIAL A SALVADORO pintor Carybé, pode-se dizer, nasceu três vezes. A primeira em 7 de fevereiro de 1911, na Argentina, com o nome Hector Júlio Páride Bernabó. Uma segunda data é apontada por seus registros: 9 de fevereiro do mesmo ano.
A terceira foi 27 anos depois, em agosto de 1938, quando desembarcou em Salvador pela primeira vez.
Dos três, talvez o último fosse, para o artista plástico, o seu verdadeiro nascimento. Como escreveria mais tarde, na Bahia encontrou seu lugar como pintor.
A viagem foi determinante para Carybé e, não seria exagero dizer, para a Bahia.
Nas décadas seguintes, o artista, que morreu em 1997, aos 86 anos, produziria vasta obra (englobando pinturas, desenhos, esculturas e murais) que seria um dos grandes símbolos da "baianidade", tanto quanto a literatura de Jorge Amado e a música de Dorival Caymmi.
Para celebrar os 75 anos desse primeiro encontro entre o artista e a terra que o encantou, que serão completamos em 2013, o Instituto Carybé planeja várias ações.
A primeira delas acontece na próxima quinta (6), em Salvador, com o lançamento em livro de um conto inédito escrito por Carybé, "Iaba"
Os originais da obra foram descobertos no seu estúdio, na casa onde morou por quase 40 anos, no bairro Jardim Boa Vista de Brotas, em Salvador. Atualmente o local é de sede do Instituto Carybé.
Solange Bernabó, 59, filha do artista, acredita que a história tenha sido escrita no começo dos anos 1970.
A tal Iaba do título é uma diaba que assume a forma de "uma crioula enxuta" para seduzir o mulherengo Antonio, "inimigo pessoal do trabalho". Foi invocada no terreiro de Pai Cosme a pedido de Zulmira-Marrom, que fora abandonada por Antonio.
Iaba vem acompanhada por papagaio e porcos falantes. Não vai ter, é claro, problemas para fisgar Antonio. Difícil mesmo será resistir ao charme do conquistador.
O texto apresenta os mesmos temas que marcam a obra plástica do artista: mulatas, pescadores, candomblé, humor, sexo.
Em palavras ou tintas, a busca era a mesma: desvendar os mistérios e as delícias da alma baiana.
"Ele não deixou ilustrações para o texto, mas, se a gente for analisar, tudo o que fez na vida foi ilustrar os temas de 'Iaba'", diz Gabriel Bernabó Duarte, 41, neto do pintor.
A publicação tem patrocínio do grupo empresarial baiano LM.
CANDOMBLÉ
Embora só agora vá ser publicado, "Iaba" já havia sido traduzido para o inglês e o espanhol (embora não se saiba se foi publicado em outros países). Também inspirou o filme "A Força do Xangô", de 1977 (leia nesta página).
"Meu pai trabalhava muito, emendava uma coisa na outra. Acho que por isso nunca fez muito esforço para publicar o conto. Não tinha paciência para se dedicar a um só projeto", afirma Solange.
Fora do Brasil, os trabalhos de Carybé estão espalhados por museus, galerias e espaços públicos dos EUA, de Portugal, da Rússia e da Escócia, entre outros países.
O estúdio do artista guarda ainda desenhos, gravuras, xilogravuras, esculturas e 19 telas inacabadas. O instituto planeja em breve abrir o local para visitação pública.
Planeja também relançar livros escritos e/ou ilustrados por ele. A lista inclui raridades como a tradução de "Robinson Crusoé" feita por Julio Cortázar e ilustrada pelo pintor.
Seja qual fosse o projeto, tudo o que fez depois de 1938 parece tomado pelas cores e formas que descobriu na Bahia.
Em 1950, Carybé se mudou de vez para Salvador. Sete anos depois, se naturalizou brasileiro. Costumava dizer que não nascera na Bahia por falta de merecimento.
Talvez para compensar, quis o destino, ou os orixás, que morresse em um de seus lugares prediletos: um terreiro de candomblé. Após uma reunião, teve insuficiência respiratória. Segundo relatos, botou a mão no peito e exclamou: "Puta que pariu, me fodi".

    Elke Maravilha interpretou Iaba em filme de 1977
    DO ENVIADO A SALVADOREm 1975, o cineasta Iberê Cavalcanti fazia um documentário em Salvador sobre Jorge Amado quando conheceu Carybé.
    "Os dois eram muito amigos e o Jorge me levou para conhecê-lo. O Carybé era muito gentil. Fomos os três a um terreiro de candomblé", relembra o diretor, 77.
    Entre uma andança e outra, Carybé mostrou a Cavalcanti os originais de "Iaba", conto que provavelmente concluiu na mesma época.
    Interessado pela cultura negra, tema de alguns de seus outros trabalhos, o diretor ficou intrigado com a história.
    Em 1977, lançou "A Força do Xangô", versão do conto para o cinema. O filme conserva apenas o mote da trama, a relação entre Iaba e Antonio, e acrescenta vários outros detalhes à história.
    Cavalcanti criou um prólogo que não existe no conto e um final totalmente diferente.
    O elenco é o principal atrativo do filme. No papel da protagonista de Iaba, descrita por Carybé como uma "crioula enxuta, de pernas epescoço longos", está a atriz e apresentadora Elke Maravilha, 67.
    "Como algumas definições do candomblé são muito escorregadias, tomei a liberdade de colocar uma loira no papel", justifica o diretor.
    "Além disso, a Elke é uma grande atriz, tinha a energia necessária para o papel."
    Ela tem como seu parceiro na vingança contra Antonio o ator Grande Otelo (1915-1993), em um de seus típicos papéis de malandro. "Ele estava num momento difícil, enfrentava problemas com a bebida, mas foi sempre muito profissional", diz o diretor.
    Antonio foi interpretado por Antonio Pitanga, 73, na fase jovem, e por Geraldo Rosa (1934-1984), na adulta. Já a sambista Ivone Lara, 91, interpretou Zulmira-Marrom.
    As filmagens duraram três meses e se dividiram entre Salvador e Rio de Janeiro. Ocupado com outros projetos, Carybé não acompanhou o trabalho.
    "Foi uma delícia de fazer, uma ótima experiência", conta Elke. "Sempre fui curiosa sobre as manifestações religiosas, já conhecia alguns terreiros. E foi um prazer atuar com o Grande Otelo."

      CRÍTICA CONTO
      História começa bem, mas derrapa com tipos bidimensionais e domesticados
      NELSON DE OLIVEIRAESPECIAL PARA A FOLHAA teoria estética gosta de frisar que existem correspondências estruturais entre as artes e a literatura. São chamadas de "correspondências intersemióticas".
      Na prática, elas aparecem, por exemplo, quando comparamos um poema e uma pintura ou uma peça musical do barroco, do romantismo etc., e percebemos que para certos procedimentos poéticos existem procedimentos pictóricos ou musicais análogos.
      Então, quando vem à luz, digamos, uma coletânea de poemas de um mestre das artes plásticas, o que mais se espera, o maior desejo do leitor, é que a mesma potência de sua obra pictórica esteja presente no trabalho literário.
      É o que mais se espera agora, com a publicação de "Iaba", conto de Carybé.
      Sendo assim, é bom que seja dito sem rodeios: o Carybé pintor, gravurista e desenhista que todos admiram não está integralmente presente no Carybé contista. Da mesma forma que o mestre das artes plásticas Candido Portinari está muito distante do Portinari poeta.
      No conto de Carybé, Iaba, uma diabólica mulher fatal, surge para seduzir Antonio e arruinar a sua vida. O problema é que a diaba está gostando demais de ser mulher.
      O conto começa bem, com um vocabulário colorido e uma sucessão malandra de personagens e mandingas.
      Nas primeiras páginas, o sobrenatural invade com alegria e humor o cotidiano. Essa ação inicial lembra muito os óleos e as serigrafias de Carybé, retratando cenas da Bahia sensual, povoada de tipos pitorescos e luminosos.
      Mas logo a narrativa vai perdendo a força, talvez por se concentrar em apenas dois personagens bidimensionais, quando o forte de Carybé sempre foi a multidão.
      Devagar, o elemento sobrenatural também é reduzido a zero. O vocabulário e as expressões populares, mais jocosos, dão lugar a uma linguagem bem-comportada, convencional.
      A tensão inicial é pacificada e os protagonistas, Antonio e Iaba, agora domesticados, quase desaparecem.
      Quem passa a prender o interesse são os três coadjuvantes atrapalhados: um papagaio e dois porcos, todos do mal, acompanhantes da diaba. Pena que, bem antes do final, até esse trio sai de cena: são comidos.

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