A circulação da cultura, hoje, no Brasil, é uma das questões que mais expressam a exclusão de que nós afrodescendentes somos vítimas. E tudo começa lá atrás, com a possibilidade de acumulação de capital com que foram beneficiados os imigrantes aqui chegados desde a última década do século 19. Nesse processo, que é apenas histórico – e não tem mocinhos nem bandidos –, a maioria dos descendentes dos trabalhadores que vieram substituir, nas frentes de trabalho, os africanos e afrobrasileiros “beneficiados” por uma abolição irresponsável, puderam usufruir, gradativamente, de cada vez melhores condições, principalmente educacionais.
Notadamente nas grandes cidades, desde cedo essas pessoas foram tendo natural acesso às melhores escolas e ambientes sociais, neles tecendo redes de amizade e parcerias importantes para a vida adulta, e através delas foram chegando, em vários níveis, aos núcleos de influência, poder e decisão.
É bom saber que na década de 1920 houve tentativas oficiais – políticas públicas, mesmo – no sentido de descorar a face africana do Brasil, até mesmo do ponto de vista biológico: supunha-se que a mestiçagem levaria ao embranquecimento final. Daí, a ideologia do “Brasil mestiço”, promovida, no sentido de diluir a identidade da população negra.
Hoje, então, a exclusão do povo negro no âmbito da chamada "economia da cultura" é um fato incontestável. Quando nós aparecemos um pouquinho, é sempre como objetos e não como sujeitos da produção cultural. E isso se dá, principalmente, em razão daquilo que dissemos lá em cima: os mais atuantes agentes da produção cultural, os que se beneficiam dos bons patrocínios e sabem dos famosos "editais", são, de um modo geral, gente com boas relações familiares, que vêm de berço; e aí fica tudo mais fácil. Exemplo: se você vai fazer um filme e o filho do dono do banco estudou com você no colégio, ou a filha do grande empresário foi sua namorada, as possibilidades de suporte financeiro são milhões de vezes mais tranquilas.
Daí, como tudo isso é sem dúvida resultado do que o Estado brasileiro arquitetou lá atrás, o Estado de agora tem obrigação de criar políticas públicas para corrigir essa distorção, que é histórica no Brasil, com políticas de ação afirmativa.
Entretanto, os "editais para negros" podem também gerar um outro problema, que é excluir as nossas possibilidades diante de outros canais de apoio e incentivo mais amplo, o que não podemos deixar que aconteça.
O grande caso é que, enquanto não vem a tão sonhada "educação de qualidade" para todos, a qual, mesmo chegando agora, só dará frutos daqui a mais umas três geracões, enquanto esse sonho de igualdade não se realiza, o Estado brasileiro tem mais é que criar políticas de ação afirmativa para os excluídos (e os herdeiros do escravismo são os mais necessitados), em todos as áreas, inclusive a da produção cultural.
Essa é minha opinião.
Nei Lopes é cantor, compositor e escritor,
autor, entre outros, dos livros Enciclopédia brasileira da diáspora africana e Kitábu, o livro do saber e do espírito negro-africanos.
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