No barco, em alto-mar - Carlos Herculano Lopes
Autora mergulha na ficção com Era meu esse rosto, narrado na primeira pessoa
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 07/01/2013
Era meu esse rosto, narrado em primeira pessoa. Mais que romance de formação, o livro representa mergulho profundo no universo ficcional e mítico da infância da autora, passada no interior do Rio Grande do Sul, onde ela nasceu e viveu boa parte da vida. Dois fios narrativos conduzem a trama: no primeiro, temos o passado do narrador, seu lugar de origem, sua infância e as pessoas conhecidas, especialmente o avô. No segundo, o personagem vive no estrangeiro, chamada V. Autora da Trilogia íntima (com os romances Magnólia, A mulher de costas e O manto), e professora de filosofia na Universidade Makenzie (SP), ela acredita no poder transformador da literatura. “Escrever torna a vida algo suportável e maravilhoso”, disse, em conversa com o Estado de Minas.
Depois da Trilogia íntima, você chega com Era meu esse rosto, com o qual dá uma guinada na sua literatura, e escreve o que talvez seja o seu livro mais lírico. Como foi essa mudança?
Era meu esse rosto foi o primeiro livro que comecei a escrever. Isso data de 1998. A “trilogia” foi escrita no meio do caminho, entre 2001 e 2008. Considero-a a minha literatura selvagem e, ao mesmo tempo, mais científica, no sentido de que ali se reúnem dois impulsos antagônicos que se mostram o tempo todo: emoção e razão. Havia ali uma vontade de expor a ossatura dos textos (como se eu quisesse mostrar como foi feito um quadro), de ir até a carne das palavras e, ao mesmo tempo, fazer sua anatomia. A ‘trilogia’ é meu “Godel, Escher, Bach...” . Em Era meu esse rosto eu não penso que minha literatura tenha ‘evoluído’, em um sentido metafísico, mas que ela tenha construído certa reconciliação dos impulsos que antes apareciam em tensão. Não sei se consigo me expressar. O que há de racionalidade e de frieza na ‘trilogia’, neste Era meu esse rosto dá lugar ao afeto. Só que o afeto frio. Tem muita melancolia, dor, crítica, mas também muita beleza, poesia, alma. O livro faz elogio do frio de onde nasci, no interior do Rio Grande do Sul, e que carrego comigo e que me faz chorar.
Foi dolorida essa volta aos locais físicos e aos abismos da infância? Foi uma espécie de catarse?
Sempre é uma catarse no melhor sentido das tragédias. O que é uma família senão o lugar em que se vive a tragédia do existir? Foi uma “elaboração” muito forte. Descobri muitas coisas sobre o mundo de onde vim. E descobri que não me importo de modo algum neste mundo, o que me trouxe um estranho alívio. Descobri meu narrador, descobri V., descobri o frio como afeto. Mas já sabia que a literatura é sempre um barco que vem nos salvar em qualquer naufrágio. Não posso viver sem esse barco no alto-mar que é a vida e onde sempre podemos nos perder.
Então, você acredita no poder transformador da literatura?
Não só acredito nisso; só escrevo por isso. Por outro lado, também acredito que escrever torna a vida algo suportável e maravilhoso.
Como escrever uma história que há muito estava represada? Como costumam nascer suas tramas?
Essa foi a história que mais elaborei, a que mais escrevi e reescrevi. Sou muito obsessiva e até alguns de meus erros são propositais (gosto do erro na literatura). Demorei a publicar porque o texto pedia calma e demora. Temos que saber respeitar nossos textos, criações, processos. Realmente, acho que as histórias surgem de algum lugar inconsciente e que nos tornamos ligados a elas. No livro que estou escrevendo também é assim. Posso até não gostar do livro, mas ele se faz com vida própria. Sinto-me mais um “meio” pelo qual surge uma história do que “dona” delas.
Escrevendo livro novo?
Tem até título, mas ainda não quero dizê-lo, até porque vai demorar a ficar pronto. Mas percebo uma afinidade profunda com Era meu esse rosto. Tanto na forma quanto no conteúdo. Desta vez é o pai que em Era meu esse rosto era apenas uma sombra do avô. O narrador é novamente um homem que elabora a questão paterna. Um homem que viajou uma única vez para nunca mais voltar. A história se passa entre o Sul do Brasil, a Ilha do Desterro (atualmente Florianópolis) e Berlim. Comecei a ter sonhos que me levaram a escrever esse livro. O resto é segredo. Literatura não é roteiro e é preciso guardar espaço para a surpresa, até para quem escreve.
Era meu esse rosto foi o livro em que você voltou mais profundamente em suas raízes? Onde está a ficção nele?
Um romance é sempre ficção. A literatura nasce no nascimento do narrador. Há uma história e um modo como essa história pode ser contada. Mas a base é a vida, uma impressão, uma ideia, uma sensação, uma pessoa que vira personagem. Só que a “verdade” da vida não existe para a literatura. Mas esse livro tem muito a ver com a vida que vivi, é o que poderia virar literatura.
Você tem formação em filosofia, dá aula de filosofia. Até que ponto isso interfere na sua literatura e vice-versa?
Acho que qualquer formação entra no modo como fazemos literatura. Artistas visuais, médicos, funcionários públicos, jornalistas... quem escreve não deixa sua aprendizagem fundamental e sua história de lado, pois elas constroem também uma posição diante da vida. Acho que o fato de desenhar também afeta tudo isso (Kafka, Bruno Schulz, Ana Miranda, quantos escritores foram artistas visuais, plásticos, gráficos?). Não quero demonstrar teses filosóficas com meus romances, mas sei que, com o fato de ler e escrever filosofia, tendo a uma atenção radical ao texto. Filosofia é também literatura e literatura é, a meu ver, filosofia. E ao mesmo tempo, num paradoxo maravilhoso, elas são antagônicas no ponto em que filosofia é diálogo e não escrita nem narrativa.
Você vive viajando Brasil afora. Costuma escrever quando está na estrada?
Nos últimos anos, tenho viajado muito nessa vida de militante da leitura. Tenho escrito contos e crônicas talvez por isso. O texto curto combina mais com a viagem curta, que é do tipo que venho fazendo. Mesmo assim, em meio a toda essa andança, escrevia um romance desde o fim de 2009, e que terminei agora, em 2012. E comecei outro logo em seguida. Claro que as condições concretas interferem na disciplina, em todo o processo de criação. Mas consigo abstrair facilmente, sobretudo se estou em lugares impessoais. Deixo os problemas para lá, as chateações, e me ponho a escrever. Tem gente que acha que escrevo porque sou muito disciplinada. Que nada... sou disciplinada porque abstraio das horas chatas com muita facilidade. Com todo o respeito, acho a vida cotidiana muito desinteressante, por isso prefiro entrar na minha torre de observação e reflexão fictícias e ficar por lá. Pode ser num aeroporto, no ônibus, no hotel. Escrevo como quem simplesmente está no mundo e não tem literalmente nada melhor para fazer.
Muito bom, a Márcia é maravilhosa, ler entrevistas dela, ou vê-la falando sobre qualquer coisa, pra mim nunca é demais! Já tô curiosa por esse próximo livro que ela está a escrever.
ResponderExcluirAbraços! :)