segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Luli Radfahrer

FOLHA DE SÃO PAULO

A privada pública

DE SÃO PAULO

O tema é controverso, falar dele é quase um tabu. Pouco importam as necessidades fisiológicas humanas, o vaso sanitário e subprodutos derivados estão restritos ao linguajar técnico dos engenheiros civis e profissionais de saúde. Fora desses ambientes qualquer referência a eles ou ao ato de usá-los, mesmo que camuflada por metáforas infantis ou eufemismos de difícil compreensão, é considerada de extremo mau gosto.
As privadas, no entanto, precisam ser discutidas. De buracos no chão sobre córregos nos vilarejos mais pobres aos assentos japoneses com aquecimento automático e botões variados, a tecnologia por trás delas continua praticamente a mesma, reminiscente de um tempo em que se achava que a água era tão infinita quanto o ar ou as florestas. Sentadas ou agachadas ao redor do mundo, bilhões de pessoas contaminam água potável em sanitários variados, para depois gastar fortunas em um processo de limpeza complexo e ineficiente, inconsistente com a carência hídrica contemporânea.
Mas há indícios de que tecnologia sanitária esteja finalmente evoluindo para além da substituição da coluna de água por um reservatório. Vários condomínios propõem o aproveitamento da água das chuvas, enquanto outros, mais inovadores, sugerem até a reciclagem doméstica. Nenhuma proposta, no entanto, é tão revolucionária quanto a das privadas conectadas.
Sim, você leu direito. Por mais que pareça descabida, a ideia do vaso sanitário online é melhor do que parece à primeira vista. Mista de Internet das Coisas e Computação em Nuvem, a latrina digital deverá ser muito mais do que um simples gadget para carregar o telefone ou substituir o revisteiro enquanto se usa o quartinho. Tampouco deverá ser usada para baixar músicas, assistir a vídeos ou ampliar o tempo de uso, já tão longo.
Por mais que usuários de smartphones adorem usá-los em toaletes, a conexão de webcams e microfones deverá ser restrita por questões óbvias de privacidade, embora nunca se deva subestimar a criatividade japonesa nesse quesito. O acesso a redes sociais a partir do banheiro, tentador para indivíduos extremamente públicos ou completamente desprovidos de assunto, não deverá ser muito popular. O momento de privacidade deverá, em linhas gerais, continuar privativo. Mas o mesmo não poderá ser dito da inteligência gerada a partir dele.
Levando em conta que cada indivíduo é, de certa forma, composto pelo que come, há muitas informações individuais nos restos do processo alimentício. Equipados com sensores e reagentes, os assentos do futuro podem se transformar em laboratórios pessoais de análises clínicas, devidamente calibrados e adaptados às necessidades individuais de seus usuários.
Cada descarga cotidiana pode ser mensurada e classificada automaticamente, gerando uma base capaz de identificar dados vitais, doenças, deficiências vitamínicas e até a eficiência de dietas.
Conectadas a serviços especializados, as novas privadas podem comparar as métricas individuais a médias de grupos populacionais equivalentes. O conjunto de dados pessoais anônimos pode auxiliar a pesquisa médica e até gerar uma nova inteligência para a área de Saúde Pública, identificando deficiências e necessidades profiláticas em áreas coletivas.
Nos próximos anos existirá um grande crescimento na mensuração pessoal e interligação de bases de dados. Hábitos de consumo, deslocamento, atividade física, qualidade do sono, alimentação, horas trabalhadas e outros componentes de saúde, estilo de vida e preferências pessoais serão registrados automaticamente por sensores independentes, conectados a supercomputadores e sistemas de recomendação.
A e-latrina ainda é protótipo, mas funciona como amostra de como a Internet, nas coisas, deixará de ser uma rede genérica de comunicação para se tornar uma grande central de inteligência a partir de pequenas máquinas conectadas, cada uma com funcionalidades específicas. Dificilmente haverá um Grande Irmão, mas ninguém mais poderá se dar ao luxo excêntrico de estar sozinho.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

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