quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Frei Betto - Arte e meditação‏

Todo artista se julga digno de valor e reconhecimento 


Frei Betto
Estado de Minas: 02/01/2013 

Participei, em fins do ano passado, de três encontros com grupos de oração em torno do tema arte e meditação. Toda obra de arte é sacramento, sinal sensível do que não se vê e, no entanto, ela expressa. Dela emanam sinais polissêmicos. Ela “fala” a cada observador. E este estabelece com ela uma relação sujeito-sujeito, dialógica, interativa. A arte nos desperta a intuição e a emoção. Nos re-liga com algo que, até então, escapava à razão. Daí sua relação com a religião. Ela emite sinais que não são controlados nem pelo artista nem pelo apreciador. A arte, como a meditação, nos induz ao mergulho no próprio eu, lá onde o ego se desfaz qual botão de rosa a se abrir em flor, e nos aproxima da ideia de beleza e harmonia. Enleva-nos, faz-nos apalpar o mistério, balbuciar o impronunciável. Ao contemplar ou desfrutar da obra de arte – pintura, balé, música – ela se metaboliza em nossa sensibilidade. Ao meditar, refluímos os cinco sentidos no núcleo axial que nos remete ao verdadeiro eu e que, na verdade, é um outro que funda nossa verdadeira identidade. O que é, hoje, obra de arte? Há uma dessacralização da arte. O início desse processo talvez possa ser demarcado pela obra A fonte, de Marcel Duchamp, criada em 1917, e representativa do dadaísmo. Trata-se de um urinol de porcelana, idêntico a milhares encontrados em mictórios públicos. Exposta em Paris, está avaliada em 3 milhões de euros.

Hoje em dia o valor da obra de arte, sua aceitação pelo público, tem muito a ver com a performance do artista. Vide os cantores pop. E é o mercado, apoiado na mídia, que determina o que tem ou não valor. Muitos artistas morreram sem serem reconhecidos, como Van Gogh, que em vida jamais vendeu uma tela. Presenteou seu médico com o quadro Rapaz de quepe, que o doutor aproveitou para tapar um buraco no galinheiro de sua casa... Há pouco essa tela foi vendida por US$ 15 milhões! 

Todo artista se julga digno de valor e reconhecimento. Isso, entretanto, depende dos críticos, da mídia, da reação do público. São raros aqueles que, mesmo sem cair no gosto do mercado, permanecem fiéis a seu talento criativo. O que pode ser admirado hoje pode ser desprezado amanhã. É o caso de um dos autorretratos de Rembrandt. A cada vez que deixava a Holanda, a tela era assegurada em US$ 4 milhões. Uma comissão de peritos e críticos, que analisou todos os quadros atribuídos ao genial pintor holandês, concluiu que um dos autorretratos, embora assinado com o nome dele, não pode ser atribuído a ele. A obra caiu no ostracismo. 

O nosso olho, a nossa sensibilidade para a obra de arte, são condicionados pela opinião pública. Esta tende a ser elitista. Considera arte o que atrai o público pagante; e folclore o que atrai pessoas desprovidas de recursos. Não me agrada a adjetivação “arte popular”. Nessa categoria costumam entrar as obras de todos que não têm suficiente erudição artística nem frequentam as rodas que se fecham em galerias sofisticadas ou palcos refinados.      A meditação, como a arte, exige cuidado, ascese, empenho, confiança na própria capacidade criativa. Tanto a arte quanto a meditação nos conectam com o transcendente, nos fazem emergir da esfera da necessidade para a da gratuidade, dilatam em nós potencialidades que nos fazem “renascer”. Não é sem razão que as religiões, sobretudo em suas liturgias, tanto recorrem à arte e têm sido, ao longo dos séculos, escolas de artistas. Quantos cantores e músicos estadunidenses não iniciaram sua arte em igrejas evangélicas! Infelizmente o mercado nos impõe, pela mídia espetaculosa, o mero entretenimento como se fosse obra de arte. Nisso se parecem às liturgias que exacerbam nossa emoção sem nada acrescentar à nossa razão e, muito menos, ao caráter ético de nossa ação. Vide as showmissas.

A arte não há de ser de esquerda ou de direita, moralista ou inescrupulosa. Há de ser bela. Consta que eram nuas todas as esculturas e figuras pintadas por Michelangelo no Vaticano. Até que um papa escrupuloso pediu a Daniele Volterra, discípulo do genial artista, para cobrir com uma pincelada os órgãos genitais... censura removida recentemente por peritos japoneses. Volterra ganhou o apelido de Il Braguetone (“O Braguilha”). Todo artista é clone de Deus. Extrai de sete notas musicais, dos movimentos do corpo, do desenho, do barro, do modo de narrar uma história, o que há de belo no humano e na natureza. Recria ao criar. E sempre o faz a partir de um estado de concentração comparável à meditação.

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