quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Guerrilheiro da palavra (Torquato Neto) - Ângela Faria‏

Torquato Neto, multiartista que fez parte da linha de frente da Tropicália e se suicidou aos 28 anos, tem dois livros de poemas inéditos lançados com a produção literária da juventude 

Ângela Faria
Estado de Minas: 10/01/2013 
Torquato Neto (1944-1972) nem sequer publicou um livro. Quando se suicidou, o jovem letrista e poeta deixou três dúzias de canções gravadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Edu Lobo, Nana Caymmi e Jards Macalé, entre outros nomes da MPB. Quarenta anos depois de sua morte, porém, esse piauiense bate ponto nos iPods da moçada do século 21. “Só quero saber/ do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder”, dizem os versos do poema “Go back”, que ganhou melodia de Sérgio Britto, em 1984, e faz sucesso nos shows dos Titãs.

Em seus 28 anos de vida, Torquato não desperdiçou tempo. Compositor, poeta, ator, roteirista, jornalista e agitador cultural, veio dele a ideia de lançar o disco-manifesto Tropicália ou Panis et circenses. Embora poucos se lembrem disso – sobretudo nestes tempos de revival tropicalista –, o multiartista piauiense nunca foi mero coadjuvante dos astros Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ideólogo do movimento, escreveu as letras de canções emblemáticas: Geleia geral, Mamãe, coragem, Louvação e Marginália II.

Torquato Neto se destacou tanto na MPB tradicional (são dele os versos de Pra dizer adeus, parceria com Edu Lobo) quanto na vanguarda. Sua coluna “Geleia geral”, publicada no jornal Última Hora, instigava o leitor a se despir de preconceitos para compreender o arrojo estético setentista. Inquieto, juntou-se ao artista plástico Hélio Oiticica, ao cineasta Ivan Cardoso, ao multicriador Rogério Duarte e ao poeta Wally Salomão para gestar a revolução experimental das artes brasileiras.

Obra
 “Como Buda, Confúcio , Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros”, constatou o escritor paranaense Paulo Leminski. Há quem diga que dele não ficou uma obra propriamente dita. Há controvérsias: o multiartista de Teresina escreveu muito – e bem –, trabalhou na TV, protagonizou Nosferatu no Brasil, filme cult de Ivan Cardoso. Depois de sua morte, chegaram a público duas edições de Os últimos dias de Paupéria (com diários, poesias avulsas e textos jornalísticos), Navilouca (publicação-manifesto de poesia que ele coordenava quando morreu) e dois volumes de Torquatália, com textos e poemas. Tema de documentários, curtas-metragens e dissertações, Torquato ganhou a biografia Pra mim chega, de Toninho Vaz (2005). Em 2002, o compositor Ronaldo Bastos lançou o disco Todo dia é dia D (selo Dubas), com canções do velho amigo.

Mas faltava o livro “de” Torquato Neto. E ele surgiu no fim do ano passado, em Teresina, graças a um primo, o publicitário George Mendes, guardião de seu acervo. O fato e a coisa foi organizado pelo próprio autor, com índice e poemas inéditos escritos de 1962 a 1964. George lançou também Juvenílias, com poesias inéditas escritas dos 17 aos 19 anos. Modestas e bem-cuidadas, as edições da UPJ Produções contam com análises elucidativas dos jornalistas Paulo José Cunha e Aderval Borges.

“O fato e a coisa é o único livro de poesias de Torquato concebido como tal”, ressalta Borges. Nele se anunciam características de sua produção futura, como a agressividade mordaz, a precisão vocabular, a utilização enfática, porém controlada, a ironia, a metalinguagem e o experimentalismo de vanguarda. “Já se encontra um autor na trilha radical da poesia de invenção, no sentido oswaldiano de raiz, de ir ao essencial”, registra o jornalista, referindo-se a Oswald de Andrade, mestre dos tropicalistas.

Juvenílias, destaca Paulo José Cunha, traz pistas do raro DNA daquele culto rapazinho: “Fundamentalmente, um drummondiano com traços de Manuel Bandeira, Gonçalves Dias e de outro piauiense, o poeta Mário Faustino”. Se ali não está a genialidade do poeta radical e explosivo, já é possível encontrar a fumaça do vulcão que uma década depois iria entrar em violenta erupção, garante Cunha.

Paulo e Aderval rejeitam estereótipos associados a Torquato, frequentemente reduzido a artista atormentado, a anjo gauche que bebia e se drogava. “Ao correr sua obra com atenção, a imagem do tsunami existencial não corresponde ao que o poeta idealizou – com todo rigor das escolhas – e realizou. Ele foi um dos artistas inventores mais centrados no que se propôs”, assegura Borges. 

“Torquato não estabelecia diferença entre vida e estética. Provou isso com a morte, questão transversal em toda a sua obra. O suicídio foi um projeto em processo, não um ‘momento de desequilíbrio’, nem o resultado do desespero em função do sufoco político causado pela ditadura militar. Nada mais falso. A morte sempre esteve na raiz de tudo: anunciada, premeditada, consumada”, defende Paulo José Cunha.

George Mendes tem muitos planos para o precioso acervo que recebeu da viúva do poeta, Ana Duarte, há dois anos. O projeto de torná-lo público já chegou ao Ministério da Cultura. “Espero que aprovem, mas tenho lá minhas dúvidas...”, preocupa-se o publicitário. Ele quer lançar dois CDs com letras inéditas, um documentário e a revista Almanaque Torquatália – Segredos Dantes, Secretos Dentes. Outro sonho: montar um espaço dedicado ao poeta em Teresina. “Nada de museu. Será um espaço vivo”, avisa Mendes. 


Três perguntas para...
George Mendes
publicitário

O que há no baú do poeta Torquato Neto?
Letras de música, projeto de um disco autoral, poemas da juventude, uma pequena biblioteca, pôsteres, fotografias, fotolitos, roteiros de shows e de um livro sobre a bossa nova, cartões-postais, cadernos de anotações, desenhos, originais de próprio punho ou datilografados. Meu primeiro susto é que a obra musical de Torquato, muito restrita, de 30 e poucas canções que fizeram sua fama, poderia ser ampliada para quase 100. Encontrei letras em que ele dividia parceria com Caetano, Gil, João Bosco, Luís Melodia, Toquinho, Luís Carlos Sá, Geraldo Azevedo, Carlos Pinto, Carlos Galvão. Há outras sem destinação, mas de grande beleza, com Torquato falando de amor, romântico, bem diferente do ícone da Tropicália. 

Poetas costumam rejeitar os primeiros versos. Não seria “traição” trazê-los à tona?
Realmente, pensei e repensei a questão com muitas pessoas e resolvi correr o risco. O poeta que se apresenta nos dois livros não é o da Tropicália, do cinema marginal nem dos concretistas de Sampa. Aceito o rótulo sem dor: pode-se chamá-lo de poeta ainda da província, que ousou colocar no papel emoções e sentimentos partindo de Teresina para Salvador, chegando ao Rio. Por que não se pode revelar esse Torquato? Sendo pragmático, diria que nem tempo de vida ele teve para decidir o que deveria ou não ser publicado. O que fizemos foi uma homenagem ao Torquato e à sua memória.

Os dois livros recém-lançados trazem o Torquato pré-tropicalista. O que chama a atenção nos versos desse poeta quase adolescente? 

O vigor e a abrangência de suas criações e de suas preocupações. Ao ler esses textos, é fácil concluir que antes até da Tropicália ele já era tropicalista. Um poeta. Pronto, acabado, definitivo. E com a mesma fixação entre o fim e o começo. A vida e a morte. Como diria o Waly Salomão, um poeta no seu voo rasante de pássaro de fogo.

O FATO E A COISA
106 páginas

JUVENÍLIAS
162 páginas

UPJ Produções. Informações: (86) 3232-0432 e contato@upjproducoes.com


Poemas de Torquato Neto

Hai-kaisinho

Caminho no escuro
O que é 
Que eu procuro?


23/12/61


À parte

tenho andado um bocado
                  abobalhado,
                  alucinado,
 à procura não sei o quê.
                por que não acho?    

amigos, 
amores,
alegrias
amanhãs,
e o pior:
            ontens.
cadê o presente?


31/10/61

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