quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Pasquale Cipro Neto

FOLHA DE SÃO PAULO

"Não somos cão raivoso"
"Não caberia o 'sic'?", perguntaram alguns. Outros não perguntaram; afirmaram que faltou
O texto da semana passada deu o que falar. Foram muitos os leitores que escreveram para agradecer-me por eu tê-los feito "descobrir" o significado da palavra latina "sic", que, como vimos, significa "assim, deste modo". Um médico (Valfrido Zacarias da Silva) informou que, na linguagem médica, "s.i.c." se usa com o sentido de "segundo informações colhidas". Registro feito, caro Dr. Valfrido.
Leitores escreveram para citar este título da mesma edição de "Cotidiano": "Não somos cão raivoso, diz novo comandante da PM". "Não caberia o 'sic'?", perguntaram alguns. Outros não perguntaram; afirmaram que faltou o "sic". Um terceiro grupo quis saber se foi "proposital" ou "ato de delicadeza" a omissão do "sic".
Posto isso, vamos ao caso. O caro leitor já ouviu falar do "plural de modéstia" ou "plural majestático", que não são exatamente a mesma coisa, mas muitas vezes se confundem? "O plural de modéstia" consiste no uso do pronome "nós" no lugar do pronome "eu". Com essa troca, o emissor tenta, modestamente, diminuir a importância de sua participação em determinado fato ("Lutamos muito para conseguir a solução definitiva do problema"). A luta em questão foi só do emissor da frase. A modéstia expressa pode ser sincera ou não.
O "plural majestático" normalmente é usado por uma autoridade, em sinal de respeito aos interlocutores.
Bem, se lermos a matéria com o novo comandante da PM, veremos que o emprego do pronome "nós" (subentendido na forma verbal "somos") não se encaixa em nenhum dos casos explicados e explicitados acima, ou seja, nem no plural de modéstia, nem no plural majestático, já que tudo leva a crer que o comandante não falava apenas em seu nome, mas no de toda a corporação. Moral da história: o comandante teria feito melhor se tivesse dito "Não somos cães raivosos".
A esta altura, alguém talvez esteja pensando nos fenômenos da concordância ideológica. Bem, antes que algum desses tontalhões que passam o dia na internet escrevendo besteiras sem tamanho sobre os textos publicados aqui e ali saia dizendo (a ignorância é atrevida!!!) que a ideologia nada tem que ver com a concordância verbal, vou logo dizendo que a "concordância ideológica" nada tem que ver com a ideologia política.
A concordância ideológica diz respeito à concordância feita pelo sentido e não pela forma. Em "...pusemos mão diligente neste trabalho, que ora entregamos receoso à mocidade..." (de Eduardo Carlos Pereira, citado por C. Cunha e L. Cintra), por exemplo, vê-se o adjetivo "receoso", que concorda com o "eu" do emissor, que empregara o plural de modéstia (evidente em "pusemos" e "entregamos").
Será esse o caso da fala do militar? Não, caro leitor; não é. Convém repetir: ele falou em nome da corporação, por isso teria sido melhor optar pelo plural ("cães raivosos"). Quanto ao "sic", a questão é de sutileza ou delicadeza de quem reproduz uma declaração. Em se tratando de texto jornalístico, há três caminhos: publicar o original, sem alteração; publicar o original, com o "sic"; corrigir, sem cerimônia, o texto (ou a fala) original.
Quanto à declaração em si, espero mesmo que ela tenha saído do fundo da alma do novo comandante da PM. Nas minhas quase seis décadas de vida neste triste e sombrio Brasil, ainda não consigo apagar do meu repertório musical a genial "Acorda, Amor", de Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, pseudônimos de Chico Buarque ("Chame o ladrão, chame o ladrão"). Do fundo da minha alma, boa sorte, comandante! Tomara mesmo que Vossa Excelência consiga dotar toda a nossa PM de altos níveis de civilização (já assimilados por parte de seus integrantes, é bom que se diga).
Estarei em férias nas próximas duas semanas. A coluna volta em 31 de janeiro. É isso.
inculta@uol.com.br

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