Marina Colasanti
Estado de Minas: 24/01/2013
Quero falar de Amor e não sei por onde começar, suspensa em minhas emoções diante desse filme impactante como fiquei durante a projeção. A câmara parada não me deu descanso, o ritmo lento, quase em tempo real, não me deu descanso, o roteiro não me deu descanso. Não tive como escapar, ou pelo menos repousar, do sofrimento alheio. Não me foi dada a clemência de um ponto de fuga.
Nem a mim, nem às personagens. A essa altura, todos já sabem qual é a história do filme: um casal de musicistas octogenários vive sua vida avançada mas sem sobressaltos até o momento em que ela, Anne, tem um primeiro derrame. Terá outros depois. E porque fez o marido prometer que não a internaria em um hospital, cabe a ele cuidar dela. É disso que se trata, de um ser humano cuidando de outro. Não como uma mãe trata de um filho, nem como um filho trata de um dos pais. Aqui ninguém é jovem, ninguém tem resistência física, e a interferência externa é mínima. Mas sobretudo, aqui opera-se dentro de uma relação de amor.
Amor aos 80. Não lassidão, permanência passiva, hábito, mas amor. Os outros olham de fora um velho casal e, entre ternura e desconfiança, se perguntam como isso é possível – difícil acreditar na integridade da velhice sem estar dentro dela. De que é feito um amor já tão distante da paixão inaugural, em que o sexo é precário, quando não inexistente? De que vive um amor quando a surpresa se tornou improvável?
O amor do casal do filme vive de colcheias. Logo no início, de volta de um concerto, fazendo pequenas coisas pela casa, os dois comentam a qualidade das colcheias obtidas pelo pianista. A música é seu universo de cumplicidade, é onde se movem seguros da compreensão um do outro. Um universo de cumplicidade é estufa muito propícia à vida e manutenção do amor.
E o amor daquele casal vive, visivelmente, de si mesmo. Nenhum outro afeto mais completo e circular do que o que sentem um pelo outro nos é apresentado. Até surpreende a distância quase formal com que a filha única entra em cena. Do neto, percebe-se, quase não têm notícia. São eles, a música, e o entrosamento conquistado ao longo de anos de convivência.
O amor da velhice é um amor de juventude polido, amaciado pela flanela dos dias, é um amor com pátina. Mas é um amor que, tendo se tornado indissolúvel, enfrenta o aproximar-se da dissolução. Desses dois que se querem e que para ficarem juntos venceram todos os obstáculos que a vida foi pondo à sua frente, desses dois que agora se encostam confiantes um no outro como cavalos cansados, um vai ter que trair o pacto de amor e deixar o outro.
No amplo apartamento parisiense de pisos que rangem, onde ele e ela tomam café da manhã na mesa da cozinha apertada contra um canto de parede, o pacto começa a ser traído quando no cérebro de Anne algum circuito se interrompe por minutos.
Nenhum jovem casal é obrigado a enfrentar essa ruptura compulsória com vago aviso prévio. E não quando todas as outras ameaças – tantas – foram superadas. Tudo está bem na vida de um velho casal que se ama, os corpos ainda se querem, a seu modo, e é cada dia mais fácil comentar colcheias. A alma ganhou um tanto de peso pelo caminho, se pôs mansa. Mas em algum ponto da máquina, sem que ainda se veja, algum circuito está prestes a se romper.
Nem a mim, nem às personagens. A essa altura, todos já sabem qual é a história do filme: um casal de musicistas octogenários vive sua vida avançada mas sem sobressaltos até o momento em que ela, Anne, tem um primeiro derrame. Terá outros depois. E porque fez o marido prometer que não a internaria em um hospital, cabe a ele cuidar dela. É disso que se trata, de um ser humano cuidando de outro. Não como uma mãe trata de um filho, nem como um filho trata de um dos pais. Aqui ninguém é jovem, ninguém tem resistência física, e a interferência externa é mínima. Mas sobretudo, aqui opera-se dentro de uma relação de amor.
Amor aos 80. Não lassidão, permanência passiva, hábito, mas amor. Os outros olham de fora um velho casal e, entre ternura e desconfiança, se perguntam como isso é possível – difícil acreditar na integridade da velhice sem estar dentro dela. De que é feito um amor já tão distante da paixão inaugural, em que o sexo é precário, quando não inexistente? De que vive um amor quando a surpresa se tornou improvável?
O amor do casal do filme vive de colcheias. Logo no início, de volta de um concerto, fazendo pequenas coisas pela casa, os dois comentam a qualidade das colcheias obtidas pelo pianista. A música é seu universo de cumplicidade, é onde se movem seguros da compreensão um do outro. Um universo de cumplicidade é estufa muito propícia à vida e manutenção do amor.
E o amor daquele casal vive, visivelmente, de si mesmo. Nenhum outro afeto mais completo e circular do que o que sentem um pelo outro nos é apresentado. Até surpreende a distância quase formal com que a filha única entra em cena. Do neto, percebe-se, quase não têm notícia. São eles, a música, e o entrosamento conquistado ao longo de anos de convivência.
O amor da velhice é um amor de juventude polido, amaciado pela flanela dos dias, é um amor com pátina. Mas é um amor que, tendo se tornado indissolúvel, enfrenta o aproximar-se da dissolução. Desses dois que se querem e que para ficarem juntos venceram todos os obstáculos que a vida foi pondo à sua frente, desses dois que agora se encostam confiantes um no outro como cavalos cansados, um vai ter que trair o pacto de amor e deixar o outro.
No amplo apartamento parisiense de pisos que rangem, onde ele e ela tomam café da manhã na mesa da cozinha apertada contra um canto de parede, o pacto começa a ser traído quando no cérebro de Anne algum circuito se interrompe por minutos.
Nenhum jovem casal é obrigado a enfrentar essa ruptura compulsória com vago aviso prévio. E não quando todas as outras ameaças – tantas – foram superadas. Tudo está bem na vida de um velho casal que se ama, os corpos ainda se querem, a seu modo, e é cada dia mais fácil comentar colcheias. A alma ganhou um tanto de peso pelo caminho, se pôs mansa. Mas em algum ponto da máquina, sem que ainda se veja, algum circuito está prestes a se romper.
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