quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Marina Colasanti - A banda que foi de Ipanema


Marina Colasanti - marinacolasanti.s@gmail.com
Estado de Minas: 31/01/2013 
“Minha teoria é que o mundo acabou”, disse-me sorridente o crítico Maksen Luiz, quando nos encontramos sábado passado no hall de um teatro, à espera de que a peça começasse. Era uma blague, mas nem tanto. Tinha chegado ensopada, vindo a pé debaixo de chuva sem ter encontrado um único táxi porque os principais acessos ao bairro estavam interditados. Era dia de saída da Banda de Ipanema, que, depois de desfilar a tarde inteira, acabava de se dispersar. Dispersar talvez não fosse a palavra adequada, a Praça General Osório que eu acabava de atravessar continuava tomada por uma multidão.

Oitenta mil pessoas, foi o que disse o jornal na segunda-feira. Penso na banda que conheci, e sou obrigada a concordar com meu amigo Maksen: o mundo, aquele mundo que acompanhamos juntos como jornalistas do Caderno B do Jornal do Brasil, acabou.

Era um mundo menor e menos habitado, o de Ipanema de 1964, em que Ferdy Carneiro e Albino Pinheiro fundaram a banda para reviver o antigo carnaval de rua. E atrás deles fomos todos, com nossas crianças, nossos conhecidos, nossos vizinhos. Lembro minha filha ainda pequena, fantasiada de abelha com duas amiguinhas formigas, ondeando antenas. Revejo o jornalista João Luís Albuquerque, já de mole avantajada, fantasiado de Mickey, com sua família de camundongos Disney, todos sentados na beira da calçada esperando a banda sair. E me pergunto como pude, em outra ocasião, deixar que meu pai levasse minha filha na banda, se eu sabia que ele beberia, cantaria, abraçaria quantas mulheres houvesse, apesar de estar com a sua própria, e se esqueceria de cuidar da neta – que meu marido foi recuperar, perdida entre os foliões, tingida de azul pelas penas da fantasia de índio que haviam desbotado debaixo da chuva.

Ditadura e sofrimento no país, mas uma inocência docemente provinciana naqueles desfiles, que, partindo da Praça General Osório, davam a volta no bairro ainda de casas, vilas e prédios de poucos andares.

Outra era a multidão que tive que fender sábado passado a caminho do teatro. Oitenta mil mediamente jovens, de copo ou garrafa na mão quando não levada à boca, cerveja ou vodca, vontade menos de bebida do que de embriaguez, e uma tensão no ar, que horas de cantoria e braços ao alto não haviam esgotado. Uma multidão carnívora em busca da carne um do outro, tentando satisfazer o desejo de diversão que não quer ser satisfeito, porque o que se quer é manter aceso o impulso e continuar a caçada de prazer, continuar, continuar até a exaustão.

Não há 80 mil habitantes em Ipanema, suspeito que nem mesmo se somados os do Leblon. A gente que ali estava ignorando a chuva havia brotado da terra pela boca do metrô, transbordado dos ônibus, dos hotéis, dos albergues. Era tão diferente daquele longínquo 1964, gente vinda de longe, alheia ao bairro. 

 Predadores de um charme que não mais existe, chegam certos de adentrar em uma Ipanema que se foi. Mas pisam em campo minado. Já de manhã, ao redor da Praça General Osório, as tropas do abastecimento formam fileiras nervosas com suas caixas de isopor, à espera dos invasores que começam o desembarque.

Não há dúvida, a inocência saiu de moda. Entrou em moda a multidão. São dois mundos incompatíveis e, como disse Maksen Luiz, a subida de um custou a morte do outro.

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