Diante da derrota iminente, senhores de terras se apoiam na retórica do barão de Cotegipe,
que representa uma das últimas vozes que se declaram contra a liberdade geral e imediata
Renata Mariz
Estado de Minas: 13/05/2013
Este domingo será
diferente nos arredores do Senado Federal, que convocou uma sessão
extraordinária para votar, ainda hoje e de forma definitiva, o projeto
de lei que acaba com a escravidão no Brasil. A tranquilidade do Campo de
Santana, grande praça no centro do Rio de Janeiro, em frente à casa
legislativa, deve ser quebrada novamente pela multidão que vem
acompanhando, atenta, as discussões em torno da proposta no Parlamento.
Nos debates travados ontem, o barão de Cotegipe, senador pela Bahia,
tomou conta da tribuna com um longo e inflamado discurso. Demitido do
Conselho de Ministros recentemente pela princesa regente, Isabel, ele
representa uma das últimas vozes que se declaram abertamente contra a
abolição geral e imediata.
Com certa ironia em alguns momentos, o
senador enumerou os efeitos negativos da proposta enviada pela
princesa, que governa interinamente o país. Detalhou questões jurídicas,
políticas e econômicas, além de “incovenientes práticos” para os
fazendeiros, preocupação “humanitária” com os ex-cativos “ignorantes” e
com o risco de uma “desordem generalizada”. Apesar do posicionamento do
parlamentar, os senadores aprovaram a matéria em segundo turno – feito
que deve ocorrer hoje, na terceira e última votação, segundo previsões
tanto dos liberais quanto dos conservadores.
No início da sessão
de ontem, o ministro da Agricultura, Rodrigo Augusto da Silva, destacado
por Isabel para articular a aprovação da proposta, foi ao plenário do
Senado. Não chegou a pedir a palavra, mas sentou-se à direita do
presidente da Casa para acompanhar o debate. Um dos que mais falaram,
Cotegipe desdenhou do clamor social em prol da causa abolicionista. “Nem
sempre devemos confiar na opinião do momento. As grandes manifestações
de entusiasmo, em todos os tempos, nunca foram permanentes ou muito
duradouras.”
O senador mencionou também as acusações que o
atingem desde que, em 1885, escalado por d. Pedro II, empreendeu os
esforços necessários para que a Lei dos Sexagenários passasse no Senado.
A cláusula que estabelecia a obrigação de mais cinco anos de trabalhos
forçados a título de indenização aos senhores de escravos deixou
Cotegipe mal tanto com os abolicionistas – que, revoltados com a
condição imposta, passaram a exigir a partir daquele momento a
libertação total – quanto com os fazendeiros – contrários a qualquer
tipo de modificação legal. Cotegipe ressaltou, entretanto, que, apesar
de não ser favorável à abolição neste momento, não criará empecilhos
para a aprovação do texto.
Ele chamou a atenção, porém, para a
necessidade de integrar, por meio de políticas públicas, os ex-escravos à
comunidade livre. “São necessárias sociedades de proteção aos
libertos”, alertou. O conservador Cândido de Oliveira, senador por Minas
Gerais, retrucou: “Não há mais libertos, são cidadãos brasileiros”. A
tréplica veio imediatamente. “São libertos. Mas direi, se quiser, até
que são ingleses”, ironizou o barão de Cotegipe, arrancando risadas do
plenário. Ele ressaltou ainda que está recebendo cartas de fazendeiros
preocupados com o fim da servidão. Os senhores de terras do Rio de
Janeiro, abalados com uma sequência de safras ruins, têm sido os mais
contrários à causa. Quando o projeto de abolição da escravatura foi
votado na Câmara dos Deputados, dos nove votos contrários, oito foram
dados por parlamentares fluminenses.
REPÚBLICA
Os desdobramentos políticos da abolição também foram levantados ontem no
Senado. Monarquista assumido, o barão de Cotegipe disse que a abolição
total enfraquecerá a Coroa e representará o avanço dos republicanos no
país. Ele afirmou que os defensores da República “candidamente”
descarregaram seus interesses na causa abolicionista. Gritos de
desaprovação eram frequentes no plenário durante as longas manifestações
de Cotegipe. O senador, porém, desdenhou das censuras. “Não há ninguém
atualmente mais impopular nesta terra do que eu”, ironizou.
Os
desdobramentos políticos da abolição também foram levantados, ontem, no
Senado. Monarquista assumido, Cotegipe disse que a alforria dos pretos
enfraquecerá a Coroa e representará o avanço dos republicanos no país.
Ele acusou os defensores da República de, “candidamente”, descarregar
seus interesses na causa abolicionista. Gritos de desaprovação foram
ouvidos no plenário durante as longas manifestações do aristocrata. O
senador, porém, desdenhou das censuras. “Não há ninguém, atualmente,
mais impopular nesta terra do que eu.”
DEMISSÃO As rusgas entre o
barão de Cotegipe e a princesa Isabel tiveram início logo que a monarca
assumiu o trono interinamente, há cerca de 10 meses, no lugar de D.
Pedro II, afastado do país por razões de saúde. De um lado, o então
presidente do Conselho de Ministros não escondia o incômodo de ser
chefiado pela interina, referindo-se à experiência e ao talento do
imperador ausente. Do lado de Isabel, foi crescente a antipatia com que
tratava o nobre conservador, sobretudo porque ele deixou claro que nada
faria sobre a emancipação dos escravos.
Em várias reuniões feitas
com o Conselho de Ministros, a princesa regente exigiu providência de
Cotegipe para conter o clamor social abolicionista. Em uma conversa
reservada, o baiano recomendou a Isabel manter-se “neutra como a rainha
Vitória (da Inglaterra)”. A interina teria retrucado, afirmando que a
rainha era acusada de prejudicar os interesses da Inglaterra por causa
da sua neutralidade.
Decidida a “fritar” o ministro, a regente
aproveitou-se de um incidente ocorrido há meses. A polícia prendeu e
espancou um oficial reformado que andava embriagado pelas ruas do Rio. O
episódio foi mal recebido pela população. Isabel pediu explicações
imediatas a Cotegipe, que não hesitou em defender seu subordinado, o
chefe de polícia. O barão sustentou que os agentes apenas cumpriram
ordens. Querendo se ver livre do ministro, Isabel insistiu em punir os
responsáveis pela violência, levando Cotegipe a pedir demissão.
O
barão ainda tentou fazer o substituto na chefia do Conselho de
Ministros. Mas a princesa nomeou o conservador João Alfredo, senador por
Pernambuco, que apoia a causa abolicionista. Nos bastidores, o senador
desqualifica Isabel, chamando-a de “carola”.
Um século de atraso
Grasielle Castro
“Com a entrada na
vida civil de 700 mil indivíduos não preparados pela educação, recrescem
as contingências previstas para a ordem social e econômica”, previu o
senador do Partido Conservador, Paulino de Sousa, em 1888, durante o
debate no Parlamento sobre o projeto que extinguia a escravidão no
Brasil. Mas o alerta foi praticamente ignorado por mais de 100 anos.
Políticas específicas de inclusão para os descendentes dos negros
libertos só começaram a ser implantadas há cerca de uma década, e de
forma pontual. Apenas no ano passado, o sistema de cotas raciais e
sociais para ingresso nas universidades públicas tornou-se obrigatório
por lei.
“É uma ação afirmativa que chega com muito atraso”,
comenta Carlos Sant’Anna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Os
indicadores sociais confirmam as dificuldades da população negra. Só
19,8% das pessoas de 18 a 24 anos que frequentam ou já terminaram o
ensino superior são pretas ou pardas. Mesmo assim, esse percentual
representa um expressivo crescimento se comparado aos dos anos
anteriores. Em 1997, os negros ocupavam apenas 4% das vagas nas
universidades. Em 2004, o percentual passou para 10,6%.
Apesar da
inclusão proporcionada pelas cotas, o sistema está longe de ser uma
unanimidade. O Supremo Tribunal Federal teve de validar a ação
afirmativa para evitar questionamentos. Não basta, porém, facilitar o
acesso ao ensino superior. É preciso investir em todo o ciclo da
educação. (Com RM)
Militares não caçarão negros
O
apoio das forças de segurança ao fim da servidão no Brasil é apontado
pelos parlamentares, inclusive por representantes das oligarquias
escravistas, como mais um ingrediente que torna a abolição irrefreável.
Desde que o Clube Militar encaminhou uma moção à princesa Isabel pedindo
que o Exército não cedesse mais homens para trabalhar como
capitães-do-mato (caçadores de negros fugidos), polícias de algumas
províncias vêm diminuindo a repressão sobre os quilombos.
O
comunicado enviado a Isabel pelo presidente do Clube Militar, marechal
Deodoro da Fonseca (foto), em outubro do ano passado, pedia que o
governo imperial “não consinta que os soldados sejam encarregados da
captura de pobres negros que fogem à escravidão.” E sentenciava: “É
impossível esmagar a alma humana que quer ser livre.”
Os militares
assinalaram, ainda, o espírito pacífico “dos homens que fogem, calmos,
sem ruído, mais tranquilamente do que os gados que se dispersam pelo
campo”. Mesmo assim, o marechal Deodoro assegurou que não deixaria de
agir caso o “preto embrutecido pelo horror da escravidão tentasse
garantir a liberdade esmagando o branco”.
Desde
sábado, o Estado de Minas faz uma viagem no tempo para contar os
bastidores dos dias que antecederam a sanção da Lei Áurea. A série de
reportagens termina amanhã.
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