quinta-feira, 23 de maio de 2013

Contardo Calligaris


Tratamentos e efeitos colaterais
Preferimos enxergar todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar
1) No fim dos anos 60, pensávamos que, no fundo, o louco era um rebelde que sofria da repressão que lhe era imposta e das condições horrorosas da internação psiquiátrica.
Mas o que tornou possível o progressivo fechamento dos manicômios não foi esse entusiasmo; foi a chegada de medicações mais eficientes, pelas quais o louco não precisava ser enclausurado, porque podia ser, não digo curado, mas controlado.
Desde então, os remédios psicotrópicos (ou seja, que modificam o funcionamento da mente) fizeram progressos.
2) A descoberta de que o remédio podia substituir as paredes do asilo repercutiu e contribuiu a inaugurar uma era em que preferimos enxergar quase todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar. Em outras palavras, se os remédios eram formas possíveis de controle social, por que eles não seriam também meios possíveis de autocontrole?
3) A modernidade é sedenta de técnicas de controle de si (dietas, prescrições, treinos, meditações etc.). Há menos controle externo (religioso ou político) sobre nossa vida; aumenta a necessidade de controle que nós mesmos exerceríamos sobre nós. Nessa tarefa, a ajuda de drogas e remédios é bem-vinda --para controlar nossa vida cotidiana, conter a tristeza, as variações de humor, a ansiedade, a preocupação etc.
4) Tendemos a responsabilizar os laboratórios farmacêuticos por essa medicalização crescente da vida. Mas eles apenas se aproveitam de um pedido que é nosso: queremos remédios como formas de controle e poder sobre nós mesmos.
5) Vi o último filme de Soderbergh duas vezes, no último fim de semana. O título original é "Side Effects", efeitos colaterais. Foi traduzido como "Terapia de Risco". Tudo bem --contanto que se entenda que os efeitos colaterais e o risco são tanto para o terapeuta quanto para o paciente.
Sim, o filme denuncia os laboratórios e suas práticas de propaganda. Sim, o filme lembra que a medicação não é nenhum tiro certeiro: sua administração é empírica (tipo: vamos ver o que acontece) e sua eficácia é modesta. Mas, sobretudo, o filme é uma perfeita narrativa da época do higienismo tardio, em que quase tudo é efeito da medicalização da vida. Confira.
6) Uma nota. Alguns psicoterapeutas e psicanalistas se opõem furiosamente à medicação de seus pacientes. Tudo bem, mas a medicalização é hoje uma cultura, um regime, um sistema de controlar e organizar a vida. Os remédios são apenas um dos meios da medicalização; é possível medicalizar a vida adotando práticas "saudáveis" ou frequentando um psicoterapeuta.
7) Nossos mal-estares cotidianos não têm marcadores específicos. Ou seja, não tenho como verificar (com uma análise de sangue, uma endoscopia ou um balanço hormonal) se e quanto alguém está deprimido. Devo me contentar com o que ele me diz.
Eu me formei numa escola de psicanálise em que acreditávamos que fosse possível encontrar, na fala dos pacientes, marcadores clínicos tão seguros quanto o nível de uma proteína no sangue.
Em tese, apostávamos, deveríamos poder diagnosticar um tumor no cérebro sem exames de imagem, porque saberíamos, por exemplo, que tal esquecimento é diferente de um esquecimento histérico, de um começo de Alzheimer, de uma amnésia etc. Mas esse ideal não se realiza (ao menos, não plenamente).
E um bom simulador pode vender qualquer peixe a todos nós, psiquiatras, psicoterapeutas, psicanalistas etc. Ou seja, um sociopata de bom feitio faz gato e sapato não só da lei, da gente também.
8) Se lêssemos as bulas com atenção, não tomaríamos nunca remédio algum. Os laboratórios, para prevenir processos, enumeram qualquer catástrofe.
No fim dos anos 1960, um amigo, J.H., perfeito exemplo de medicalização da vida, procurava seu equilíbrio numa mistura de anfetaminas e barbitúricos. Morreu afogado, de noite. A bula do Nembutal poderia dizer: cuidado, em combinação com simpamina, pode produzir a morte em quem vai surfar sozinho em Big Sur de madrugada.
Na época da medicalização, a lista indefinida (se não infinita) dos efeitos colaterais vale também como lista também indefinida das desculpas. Matou o vizinho, mas não foi intencional; foi porque ele tomava sei lá qual antidepressivo.
9) Assista a "Terapia de Risco" e, na saída do cinema, responda: ao seu ver, o psiquiatra do filme conseguiu ou não cuidar de sua paciente?

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