Para que serve essa 'gramática'?
Essa é outra ideia torta, a de achar que o sujeito sempre (ou quase sempre) é um ser humano
Certa vez, o coordenador de língua e literatura de uma grande instituição de ensino me disse que não aguentava mais aplicar aulas-teste, nas quais se avaliavam a didática e o conhecimento de candidatos a uma vaga no corpo docente da escola.
"Faço uma pergunta básica", disse ele. "E ninguém acerta." A pergunta "básica" é esta: "Defina o sujeito". As "definições" eram (e são) as mais disparatadas possíveis, desde a "clássica" ("sujeito é aquele que pratica a ação") até bobagens outras.
Se sujeito é aquele que pratica a ação, como explicar que em "Ele sempre apanhava da mulher" o sujeito é "ele", mas o "praticante da ação" é "a mulher"? E como explicar que em "Esse livro não foi lido pelos alunos" o sujeito é "esse livro", que não pratica ação nenhuma? "O livro" é o alvo, o paciente do processo expresso pelo verbo. O tal do "praticante da ação" é representado pela expressão "pelos alunos". E o que dizer de "Você é linda", em que nem ação há?
Posso fazer uma perguntinha? Qual é sujeito de "Faltou-me coragem"? "Eu", implícito no "me"? Que tal? Xô, bobagem! Essa é outra ideia torta, a de achar que o sujeito sempre (ou quase sempre) é um ser humano.
Qual é a forma verbal de "Faltou-me coragem"? É "faltou", não? Em que pessoa gramatical está flexionada? Na terceira do singular, certo? Pois o sujeito de "faltou" é o elemento com o qual a forma "faltou" concorda, ou seja, a coisa ou a pessoa que faltou.
O sujeito de "faltou" é "coragem". Foi ela (coragem) que faltou. Se você trocar "coragem" por "forças", o que ocorrerá? Será necessário trocar "faltou" por "faltaram" ("Faltaram-me forças"), já que o sujeito agora é "forças" (foram elas, as forças, que faltaram). E se você trocar o "me" de "Faltou-me coragem" por "nos" ou "lhes"? Não acontecerá nada com o verbo, já que não se terá tocado no sujeito. O verbo só se altera (em termos de concordância) se se altera o sujeito.
Agora uma pausa para que procuremos num dicionário ("Houaiss", "Aulete", entre outros) a palavra "sujeito". O que se encontra é basicamente isto: "Termo sobre o qual recai a predicação da oração e com o qual o verbo concorda". A parte prática dessa definição é essencialmente a segunda ("...e com o qual o verbo concorda"). Como definição geral, básica, a sentença "sujeito é o termo com o qual o verbo concorda" resolve a maior parte dos casos.
Sim, eu sei, há orações (poucas) sem sujeito e há orações (poucas) em que o verbo não concorda com o sujeito, mas com o predicativo ("A cama eram umas palhas", por exemplo), porém em 90 e tal por cento dos casos o verbo concorda com o sujeito (estamos falando de língua culta).
Uma colega e amiga me informa que na escola em que sua filha estuda foi decretado que o sujeito de "Tudo acabou com a morte" é "a morte". E de nada adiantaram os seus argumentos --de quem é do ramo (ela é excelente professora de português).
Que salada, santo Deus! Os docentes da bela petiz confundem sintaxe com semântica, já que acham que, se foi com a morte que tudo acabou, ou seja, se foi ela (a morte) a causa do fim de tudo, é ela (a morte) o sujeito. E onde enfiamos a preposição "com"? Então o sujeito de algo como "As esperanças de dias melhores se esvaíram com a morte dele" é "a morte dele"? Jogamos fora o "com" e decretamos que "a morte dele esvaíram"?
Um dos motivos sustentados por especialistas que defendem o fim do ensino de gramática na escola é justamente o que acabamos de ver: há professores de gramática que não sabem gramática...
Eu vou por outro lado. Prefiro o ensino funcional de gramática, que, no caso visto hoje, é o ensino de que o conhecimento do que de fato é o sujeito nos dá os instrumentos necessários para estabelecermos a concordância entre o verbo e o sujeito. É isso.
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