sexta-feira, 17 de maio de 2013

Kirchner, o retorno

folha de são paulo

Cinebiografia de Néstor ganha desfecho inusitado quando Cristina, a viúva, elogia uma versão rejeitada e retoma sua produção
DENISE MOTACOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE MONTEVIDÉUNum processo enroscado, típico das comédias pastelão e dos arranjos políticos, a cinebiografia do ex-presidente argentino Néstor Kirchner (1950-2010) foi arrancada das mãos do diretor uruguaio Adrián Caetano (premiado por filmes como "Um Urso Vermelho") e passada para a cineasta Paula de Luque.
Como resultado, após a estreia da versão oficial de Luque em 93 salas de cinema do país, em novembro de 2012, a versão oficiosa e inacabada do uruguaio vazou na internet no início deste mês.
Com a repercussão do corte mais sóbrio e irônico da versão revelada, o filme foi parar no colo da atual presidente, viúva de Néstor, Cristina Kirchner.
No último fim de semana, o caso teve uma reviravolta. Cristina tuitou que assistiu à versão de Caetano "no sofá onde costumava se sentar com Néstor" e que voltou "a sentir que ele me olhava".
A presidente então pediu que os produtores do longa, vinculados ao kirchnerismo, retomassem o contato com Caetano para a conclusão do filme, que deve ficar pronto em outubro deste ano.
Detalhe: os produtores, Jorge "Topo" Devoto e Fernando "Chino" Navarro, foram os mesmos que trocaram o uruguaio por Luque.
Em janeiro de 2012, um ano depois de assumir o comando do projeto, Caetano foi afastado quando mostrou o primeiro corte de um filme que "não chegava aonde queríamos chegar", explica Navarro, que integra os movimentos Evita e kirchnerista.
"Aspirávamos a um filme que excedesse a melhor homenagem que Cristina pudesse imaginar", disse o produtor ao jornal "Clarín".
Na época, Caetano escreveu em sua conta no Twitter sentir "tristeza" pela circunstância.
No lugar de Caetano, a cineasta Paula de Luque assumiu a direção do projeto, que já tinha 600 horas de imagens coletadas. Ela teve o auxílio de Florencia Kirchner, a caçula do casal Kirchner.
Entre os registros até então inéditos estão cenas do casamento de Néstor e Cristina, imagens de passeios dos dois no sul do país e da infância de Máximo (o filho mais velho do casal).
FILMES DIFERENTES
Ambas versões, de Luque e de Caetano, têm a mesma trilha sonora, mas diferenças substanciais.
Nenhuma das duas produções é crítica ao mandatário. A diferença fundamental é que, enquanto o filme de Luque possui um tom emocional, o corte de Caetano é mais sóbrio e inclui pitadas de ironia e experimentalismo.
"Néstor Kirchner, o Filme", de Luque, reúne depoimentos de argentinos comuns --que se dizem resgatados da pobreza com a chegada de Kirchner ao poder (2003-2007)-- e testemunhos de parentes do ex-presidente.
Para o "Clarín" --jornal opositor à gestão Cristina--, "o rigor histórico a que apela o premiado diretor [Caetano], ainda que não se afaste da intenção de favorecer o personagem, contrasta com o conteúdo panfletário do produto que elaborou Luque".
O documentário de Luque teve 106.038 espectadores e se posicionou como a nona produção nacional de maior público nos cinemas em 2012. Há 15 dias na internet, a versão de Caetano, de 101 minutos, já chega a pelo menos 100 mil visualizações somadas no YouTube e no Vimeo.
Luque diz não haver visto o filme de Caetano nem haver mantido contato com ele. O diretor uruguaio afirma o mesmo com relação à realizadora argentina e sua obra.
Procurado pela Folha, Caetano não quis dar entrevista. Mas, em conversa com a rádio Del Plata na última segunda-feira, disse que o fato de que a obra agora repercutir mostra que ele "não estava tão errado assim".
FINANCIAMENTO
Ao custo de 6,665 milhões de pesos (cerca de R$ 2,6 milhões), o documentário de Luque foi financiado, de acordo com Navarro, por empresas privadas, construtoras e entidades públicas como o banco Provincia, a Loteria del Chaco e o Partido Justicialista.
Quando de sua estreia, em novembro passado, o longa colecionou críticas e denúncias não só quanto ao conteúdo mas também com relação a seu financiamento e manutenção nos cinemas.
"O filme tem pouco a ver com a realidade. Queriam fazer de Néstor Kirchner um Che Guevara moderno", considerou à época Hugo Moyano, líder da CGT (Confederação Geral do Trabalho), opositora ao governo. Também em novembro de 2012, reportagem do "Clarín" relatou a compra massiva de ingressos por sindicalistas, que depois distribuíam as entradas gratuitamente nas ruas.

    SAIBA MAIS
    Grupo Clarín vive guerra com Cristina Kirchner
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHATanto o filme de Paula de Luque como o corte da versão de Adrián Caetano que circula na internet mostram, em determinado momento, o jornalista Jorge Lanata (hoje funcionário do Grupo Clarín e apresentador do programa "Jornalismo para Todos", que vem veiculando uma série de denúncias de corrupção e lavagem de dinheiro diretamente relacionadas a Néstor e a Cristina Kirchner) à frente de um "mapa de meios".
    Aí estão representadas graficamente, como em um organograma, as imbricações entre jornais, rádios, produtoras audiovisuais, empresas multinacionais e locais, gráficas e outras companhias argentinas.
    O objetivo principal é destacar, especialmente, o poderio do grupo Clarín, principal conglomerado de comunicação da Argentina.
    O grupo corre o risco de sofrer intervenção por parte do governo, medida que estaria em preparação pela Comissão Nacional de Valores e seria possível graças à aprovação da Lei de Mercado de Capitais, em 2012.
    Opositor à gestão Cristina Kirchner, o grupo empreende uma guerra recíproca com o Executivo, aberta oficialmente em 2009, quando o governo aprovou a Lei de Meios Audiovisuais no país.
    Um dos principais momentos de tensão entre o Clarín e a Presidência aconteceu no final do ano passado, quando o governo comunicou sua intenção de, com base na legislação criada há quatro anos, suspender concessões de rádio e TV do grupo de comunicação.
    O Clarín possui mais de 200 concessões de TV a cabo, além de dez emissoras de rádio e quatro canais de TV aberta. Liminar judicial favorável ao grupo postergou a medida.

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