RAFAEL GARCIA
EM WASHINGTON
EM WASHINGTON
O livro que orienta a atividade de psiquiatras do mundo inteiro ganha amanhã uma nova versão num lançamento com certo sabor de derrota.
A quinta edição do DSM (Manual de Estatísticas de Diagnósticos) promete tornar mais coerentes os critérios de definição de transtornos mentais, mas deve deixar de nortear pesquisas que conectam a prática clínica à ciência de ponta feita nessa área da medicina.
A festa de lançamento do livro ocorre no encontro anual da APA (Associação Psiquiátrica Americana), que começa amanhã em San Francisco e vai até quarta-feira (22).
A declaração que criou um clima de desconforto para o evento, porém, partiu da periferia de Washington, onde fica o NIMH (Instituto Nacional de Saúde Mental), o principal organismo de financiamento à ciência psiquiátrica nos Estados Unidos, com orçamento anual de US$ 1,4 bilhão.
Às vésperas do encontro, o diretor da instituição, Thomas Insel, disse que pretende distanciar do DSM o esforço de pesquisa básica em saúde mental.
A ideia é criar, no longo prazo, um novo sistema diagnóstico dentro de um projeto capitaneado pela instituição, o RDoC (Critérios no Domínio da Pesquisa, sigla em inglês). É preciso pôr o manual da APA de lado por um pouco e começar o esforço do zero, diz o diretor. Do contrário não haveria modo de tornar a psiquiatria um ramo da medicina mais objetivo, mais baseado em biologia e mais científico.
"Não podemos ter sucesso se usarmos como 'padrão ouro' as categorias do DSM", escreveu Insel no blog do instituto duas semanas atrás. Segundo ele, é preciso tentar ligar a neurobiologia com itens de diagnóstico mais simples, como um tipo específico de alucinação, e não com categorias de doenças impostas de cima para baixo, como a esquizofrenia. "O sistema de diagnóstico tem de ser construído sobre dados de pesquisas emergentes, não sobre as categorias atuais baseadas em sintomas."
Seu texto ainda trazia uma mensagem que despertou preocupação na força-tarefa encarregada de atualizar o manual. "Muitos pesquisadores ligados ao NIMH, já estressados com cortes de orçamento e com a dura disputa por verbas de pesquisa, não acolherão essa mudança com bons olhos", alertou. "Alguns considerarão o RDoC um exercício acadêmico divorciado da clínica prática. Mas essa mudança será bem recebida por pacientes e suas famílias..."
A declaração provocou reação por parte da APA, que reconhece ter sido incapaz de criar um sistema diagnóstico baseado em neurobiologia, promessa que vinha sido feita desde a década de 1970.
As alterações da quinta edição do DSM em relação à quarta não contemplam esse objetivo. Apesar de alguns transtornos terem sido excluídos e outros criados (veja quadro abaixo.), a base do manual ainda está nos sintomas, e não na neurobiologia. Segundo a associação, porém, é preciso manter firme a prática clínica tradicional enquanto não há ciência suficiente para uma transição cuidadosa.
"Esforços como o RDoC são vitais para o progresso contínuo de nossa compreensão coletiva sobre transtornos mentais, mas eles não podem nos servir aqui e agora, e não podem suplantar o DSM-5", escreveu David Kupfer, chefe da força-tarefa do DSM, num comunicado oficial. "O resultados do RDoC podem um dia culminar nas descobertas genéticas e neurocientíficas que vão revolucionar nossa área. Mas, até lá, devemos entregar a nossos pacientes uma outra nota promissória dizendo que algo vai acontecer alguma hora?"
Anteontem, a APA e o NIMH tentaram aplacar o clima de animosidade emitindo um comunicado conjunto.
"Todas as disciplinas médicas avançam por meio do progresso da pesquisa em caracterizar doenças e transtornos. O DSM-5 e o RDoC representam arcabouços complementares, e não concorrentes, para esse objetivo", diz o documento.
As entidades também ressaltaram a importância de existir uma referência sólida de critérios para uso por planos de saúde e por governos. O Brasil usa a Classificação Internacional de Doenças, da OMS (Organização Mundial de Saúde), que é virtualmente igual ao DSM. Há um comitê de "harmonização" que trata de eliminar a incompatibilidade entre os dois sistemas.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
TESTES DE CAMPO
Durante a troca de declarações públicas entre NIMH e APA, um assunto não mencionado pelas duas entidades foram os testes de campo para a criação de novos transtornos propostos durante a fase de elaboração do DSM-5.
Esses trabalhos falharam em dar suporte à existência de algumas categorias, como o "transtorno misto de ansiedade e depressão", a "autoagressão não suicida" e a "síndrome do risco de psicose" (uma pré-esquizofrenia infantil). Nenhum destes deve entrar no manual.
Sem uma injeção maior de verbas por parte do NIMH no futuro, é improvável que as próximas versões do DSM consigam testar tantas propostas de novos transtornos a cada revisão.
Além de receber críticas por parte de quem defende uma psiquiatria mais biológica, o novo DSM-5 também será lançado em meio a ataques de entidades de classe de psicólogos.
Uma petição que pedia ao manual para adotar uma abordagem mais humana e menos farmacológica na psiquiatria ganhou a assinatura de 14 mil profissionais de saúde. Essa demanda ganhou ainda mais força quando Allen Frances, psiquiatra chefe da força-tarefa que elaborou a edição anterior do DSM, juntou-se ao grupo.
"Em minha opinião, o processo do DSM-5 foi obscuro, fechado e escorregadio --com restrições de confidencialidade, prazos estourados a toda hora, testes de campo descuidados, o cancelamento de um importante passo no controle de qualidade e muita pressa para a publicação", escreveu o psiquiatra em seu blog nesta semana. "O erro do DSM-5 foi tentar ir além do conhecimento atual."
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