sexta-feira, 26 de julho de 2013

Jaime Pinsky e Marcelo Coutinho no Tendências/Debates

folha de são paulo
JAIME PINSKY
TENDÊNCIAS/DEBATES
O pecado original
Somos fruto de um pecado original, aquele que criou o Estado em 1822 sem que houvesse, de fato, uma nação que o reivindicasse
Pode parecer que há motivos variados e até mesmo conflitantes para as manifestações em todo o Brasil. Errado. Todos os protestos decorrem do indiscutível e inaceitável distanciamento que existe no Brasil entre a nação e o Estado.
A nação, constituída pelos cidadãos concretos, pelas pessoas reais, não reconhece nos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) seus representantes. "Nós" somos nós e "eles" são eles.
Expressar-se, como tem se expressado a sociedade, é mais sintomático ainda em se tratando de gente que poucas vezes sai às ruas (todos observamos o deslumbramento de muitos que as frequentavam pela primeira vez).
Mas, como escreveram em seus cartazes Lívia e Ana Paula, desde os primeiros dias, "são 513 anos e 20 centavos". Cabe-nos ler e entender o que elas queriam dizer com isso.
Somos fruto de um pecado original, aquele que criou o Estado brasileiro em 1822 sem que houvesse, de fato, uma nação que o reivindicasse --o contrário do que aconteceu na maioria dos países em que a estrutura jurídico-política surge como decorrência dos anseios de uma nação já constituída (nação aqui definida como o povo com consciência de sua identidade).
Pelo fato de, entre nós, criarmos um Estado com todo seu aparato que não respondia a anseios da população, esta nunca o reconheceu, tratando-o sempre na terceira pessoa do plural.
É verdade que governantes, legisladores e juízes não têm facilitado. Ao assumirem papéis na estrutura jurídico-política, deixam de ser povo e se transformam em "autoridades". Claro que, em qualquer país, há rituais inerentes a funções públicas, mas o exagero entre nós é evidente. Nossos supostos representantes vão muito além de cumprimento de obrigações protocolares: as "autoridades" exigem "respeito" equivalente ao que o Faraó, seus funcionários e sacerdotes exigiam dos súditos.
São automóveis com motoristas à disposição de toda a família, são diárias de viagem superiores ao salário mensal de professores, é o uso de aviões de serviço para conforto pessoal (e até da sogra), é cabeleireiro que cobra cinco salários mínimos por hora de trabalho. Tudo isso às custas dos nossos impostos diretos e indiretos.
Entre nós, ao contrário do que acontece na maioria das democracias, o modo como se exerce o poder distancia os representantes dos representados. Cidadãos brasileiros são percebidos pelos poderosos de plantão (ou os vitalícios, que os há) não como cidadãos, mas como súditos, simples massa de manobra, gente para ser enganada a cada eleição.
Talvez por isso nossos governantes quase não governem: uma vez no poder, dedicam-se a criar as bases de sua permanência (e da corriola, é claro) na função obtida, preparando-se para a próxima eleição. Não querem perder o direito ao uso (e abuso) das vantagens conquistadas. Detestariam voltar a ser apenas parte da nação.
Por outro lado, povo nas ruas pode ser bom, mas substituir a democracia representativa pela direta é inviável em uma sociedade complexa como a nossa. Afinal, não estamos na Grécia clássica, não cabemos todos em uma praça. Precisamos, pois, de representantes. Porém, chegou a hora destes mudarem sua forma de fazer política, criar leis, promover justiça. Temos que melhorar nossa democracia.
Estamos todos de acordo com penas mais severas e sentenças rápidas para os que confundem patrimônio público com o privado. Concordamos também que não tem sentido arrotar prioridade de transporte público e manter um modelo que isenta de impostos os automóveis privados. Não há dúvidas ainda sobre a necessidade de uma ampla reforma política. Mas, antes que o abismo cresça ainda mais, precisamos reaproximar o Estado da nação.
MARCELO COUTINHO
TENDÊNCIAS/DEBATES
Divisões na América Latina
A força de Washington perdurará em um mundo em deslocamento para o Pacífico. A questão é quando o Brasil vai perceber esse cenário
Em 2010, em artigo neste espaço, defendi que o predomínio ocidental estava longe do fim. Minha posição contracorrente destoava da maioria dos analistas, entre os quais havia virado moda falar em mundo pós-americano. Fareed Zakaria foi só um desses autores.
Com a mesma facilidade peremptória, diz-se agora exatamente o contrário, que talvez a China esteja exaurindo o seu crescimento e que os Estados Unidos estão de volta, com a revolução tecnológica e energética promovida pelo xisto. Uma mudança radical em menos de três anos.
Fora dos EUA, tantos ressentimentos contra o chamado império criaram "wishful thinkings", tomando desejos por realidade. Simples: se não gostamos da grande potência do norte, então compramos a tese do seu declínio imediato.
O lugar-comum do mundo pós-americano serviu para vender livros, fazer gracejos e criar novas expectativas como a dos Brics. Agora, em refluxo, os mesmos analistas e consumidores de suas análises temem que o Brasil seja prejudicado pelo fim da exuberância chinesa e pela recuperação norte-americana.
Dizem que pode haver uma fuga de capitais em direção aos EUA e uma crise entre os emergentes, com os exageros de praxe. Mas, na realidade, a força de Washington perdurará em um mundo em deslocamento para o Pacífico, onde também fica a costa oeste americana.
A novidade é que a Europa já entendeu as mudanças em curso e, finalmente, pode realizar um acordo comercial com os EUA na tentativa de preservar a força do Atlântico Norte. A questão é quando o Brasil vai perceber esse cenário.
O Itamaraty tem demonstrado uma preocupante dissonância cognitiva, selecionando apenas os pedaços de informação que parecem mostrar que estamos bem, enquanto ignora dados mais relevantes. Esse é um traço da nossa cultura.
A política de prestígio da diplomacia brasileira valoriza excessivamente a conquista de um cargo na Organização Mundial do Comércio e menospreza o processo estrutural que nos torna dependentes da exportação de commodities. Pior, começam a se orgulhar disso.
Nos últimos cinco anos, Brasília dedicou-se a preparar uma política externa parecida com a era do café. Não é concebível como, em tão pouco tempo, jogamos no lixo décadas de uma luta pela diversificação industrial das relações internacionais.
Derrotado na OMC, o México e parceiros da Aliança do Pacífico "roubam" os investimentos que viriam para o Brasil. Os países da franja liberal da costa oeste latino-americana, como Peru, Chile e Colômbia, crescem mais com estabilidade econômica do que os estranhos desenvolvimentistas primário-exportadores do outro lado do continente.
Não obstante os discursos oficiais, a América do Sul é uma região partida. De um lado, temos democracias de mercado dinâmico com alternância de poder. De outro, regimes cada vez mais autoritários, com economias estatizadas e desorganizadas. Para variar, a posição do Brasil não é clara.
No século 19, já havia divisão. Os países mais bem-sucedidos até meados do século 20 foram aqueles que conseguiram conjugar alternância entre liberais e conservadores. Talvez vivamos outra bifurcação novamente que marcará o século 21.

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