No campo de pouso abandonado do museu Aeroespacial do Rio, Tony Ramos desce de um avião da Força Aérea Brasileira (FAB). Mas não é uma missão com uso de dinheiro público para assistir ao jogo do Flamengo, que acontecerá dali a horas.
Estamos nas filmagens de "Os Últimos Dias de Getúlio", uma produção de R$ 6 milhões recontando o final da vida do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), que se matou no fim do seu segundo mandato (o primeiro por voto popular), em 1954, em meio a acusações de corrupção.
Tony desce por uma pequena escada de metal do avião, uma peça do museu.
Divulgação | ||
O diretor João Jardim capta Tony Ramos como Getúlio Vargas |
O ator está irreconhecível no papel de Getúlio. Usa uma roupa com enchimento que o deixa 30 quilos mais gordo, uma dentadura para imitar as feições do presidente e uma maquiagem que o presenteia com uma careca.
"Esse segundo corpo é pesado e passo um calor horrendo, mas eu sabia que seria assim", conta.
O ator foi perseguido pelo diretor João Jardim, que estreia na ficção após uma carreira feita de documentários ["Janela da Alma" e "Lixo Extraordinário"].
"Eu me assustei com o convite, não apenas porque me achava diferente fisicamente de Getúlio, mas pela ambiguidade dele. Mas, depois de algumas conversas, vi que o filme era sobre a alma daquele personagem."
A alma, neste caso, é analisada nos 19 dias entre o atentado ao jornalista e político Carlos Lacerda (1917-1977), em 5 de agosto de 1954, e o suicídio de Vargas.
"O desejo não era fazer uma biografia clássica, aquela do feto ao túmulo", brinca o roteirista George Moura ("Linha de Passe"), que se inspirou em dezenas de livros para criar o texto original.
INFLUÊNCIAS
"Tive a ideia de focar os 19 dias lendo 'Quem Matou Vargas', de Carlos Heitor Cony. Pensei como aquilo daria um bom thriller político e eu precisava de um recorte, porque Getúlio é uma figura ambígua e polêmica demais", conta o diretor, citando "Domingo Sangrento" (2002), de Paul Greengrass, "A Queda - As Últimas Horas de Hitler" (2004), de Oliver Hirschbiegel, e "O Sol" (2005), de Aleksandr Sokurov, como inspiração.
A sequência que a reportagem da Folha acompanha recria o momento em que Vargas, num dos poucos momentos em que deixa a residência oficial no Palácio do Catete nesses dias de crise, recebe a notícia da boca de Tancredo Neves (Michel Bercovitch) de que pessoas ligadas ao governo estariam por trás do atentado a Lacerda.
Tony Ramos diz que o "seu" presidente, tão explorado em filmes e minisséries, segue um caminho próprio. "A primeira coisa que falei para João foi que não me comprometeria a imitar Getúlio. Sempre me lembro de Frank Langella em 'Frost/Nixon', que não tem nada a ver com Nixon, mas que capturou como ninguém o personagem'", exemplifica, sem se desviar do fato de estar vivendo um ex-ditador em "Os Últimos Dias de Getúlio", previsto para estrear em 2014.
"O filme não é sobre o Getúlio ditador. Não estamos contando essa história, mas outros roteiros são bem-vindos. A polêmica está aberta."
'A voz do povo é soberana', diz Tony Ramos
Ator que encarna presidente da República em 'Os Últimos Dias de Getúlio' filmou a metros das manifestações no Rio
Ele diz que longa busca "encontrar a alma" de Getúlio e que não se pode esquecer faceta ditatorial do gaúcho
O ator se lembra do dia em que sua mãe chorou a morte do político e diz que o filme "busca encontrar sua alma", mas enfatiza a necessidade de cultivar distanciamento crítico em relação ao Getúlio ditador e repressor do Estado Novo (1937-1945).
A produção teve cenas rodadas no Palácio do Catete (antiga sede do Executivo federal, onde o presidente cometeu suicídio em 1954), a metros de onde aconteciam os protestos populares semanas atrás. "A voz do povo nas manifestações é sublime, soberana e decisiva. Desde que não venha acompanhada de uma balbúrdia descontrolada, porque aí aproveitadores de plantão poderão se utilizar disso", afirma Tony.
Um dos protagonistas da franquia cômica "Se Eu Fosse Você", grande sucesso de bilheteria nacional, ele acha que investidores e produtores devem buscar mais do que o riso. "Não podemos querer tudo muito mastigado, em forma de clipe [...] Vão com calma ao cinema e pensem que estão indo por uma boa ideia."
Leia os principais trechos da entrevista.
(RODRIGO SALEM)
Tony Ramos - Para mim, é muito fácil lembrar da morte dele. Meu aniversário é em 25 de agosto, e ele morreu no dia 24. Recordo que minha avó estava preparando um bolo para comemorar meus seis anos em nossa casa no interior de São Paulo [Ourinhos], quando ela colocou a tigela abruptamente no forno a lenha: "Minha Nossa Senhora, morreu doutor Getúlio". Perguntei quem era. Ela me falou que era o presidente do Brasil. Depois, minha mãe veio do quarto, chorando. É uma memória marcante. Quando mamãe soube que eu ia fazer o filme, perguntou se eu lembrava daquele dia. Getúlio era um homem com uma popularidade enorme.
Mas há o lado dele ditador, repressor...
Sim, isso não anula o que ele fez como ditador. O distanciamento crítico eu sei tê-lo, e muito bem. Mas não estamos contando essa história. Vamos contar como esse homem, eleito pelo povo anos depois [de ter comandado um regime ditatorial], tem a oportunidade de rasgar a Constituição pela terceira vez e se recusa a fazê-lo. Queremos encontrar a alma dele.
E como foi filmar como Getúlio no Palácio do Catete, enquanto o Rio se via às voltas com as manifestações populares a poucos metros dali?
Emocionante. Foi uma das coincidências mais enlouquecidas da minha carreira. É sempre bem-vindo ter histórias políticas em países que passaram por grandes momentos de fragilidade democrática. Sou da época em que fazíamos teatro político... Quantas perseguições e medos nos atormentaram. A democracia fica frágil quando querem se intrometer na imprensa e na liberdade das palavras. Por isso, acredito nas manifestações populares para demonstrar as insatisfações mais generalizadas. Agora, quando vira uma grande bagunça no fim, é algo que precisa ser estudado. Onde é a provocação? São provocadores profissionais? A voz do povo nas manifestações é sublime, soberana e decisiva. Desde que não venha acompanhada de uma balbúrdia descontrolada, porque aí aproveitadores de plantão poderão se utilizar disso. A liberdade de expressão é a mais preciosa arma que o indivíduo possui.
É difícil ver um filme grande no Brasil com tons políticos.
Eu faço "Se Eu Fosse Você" como faço "Tempos de Paz". O cinema e os investidores não podem se preocupar apenas com a pergunta "É pra rir?". Nosso filme é para rir, chorar e ficar com o bumbum grudado na poltrona, porque virou um grande thriller. Adoraria saber que os patrocinadores falaram que gostaram da ideia de um cinema político e sociológico. Não podemos querer tudo muito mastigado, em forma de clipe. Hoje em dia, uma cena com mais de dois minutos é um problema. Vão com calma ao cinema e pensem que estão indo por uma boa ideia. Adoro Super-homem, sou um cinéfilo, mas outro dia estava revendo "Amarcord", que é o filme da minha vida, e fiquei extasiado. Há momentos de pura emoção, mas a família toda sorri com ele.
Haverá um terceiro "Se Eu Fosse Você"?
Não deve acontecer. Passou o tempo. A gente acha que precisa ser uma grande história, no momento certo. Há uma ideia de fazer um musical no teatro, mas não sei se poderei fazer.
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