Estado de Minas: 18/07/2013
O elevador desce, o
casal que entra é jovem, ela de vestido florido, ele coberto de
tatuagens. Conheço desde menino esse rapaz que agora porta namorada.
“Você está mais estampado do que ela”, brinco. Ela ri, ele olha os
braços desenhados. Eu penso que à noite ela pode tirar o vestido e ficar
nua, ele não. Penso, mas não digo.
Mesmo elevador, mesmo rapaz, outro dia, meu marido sobe com ele. Comenta as tatuagens, são bonitas, pergunta quanto demora, se doeu – todo mundo pergunta sobre dor, mesmo quem não tem a menor intenção de se tatuar. Depois pergunta se ele não tem medo de se arrepender, tatuagem nessa proporção é indelével. “Tenho não, eu gosto”. “Gosta agora, mas e com 40 anos? ”. “Com 40, não sei. Não tenho 40 anos”. “Pois é, as pessoas mudam”. “Por isso mesmo fiz agora.”
Teria eu tatuado um dragão bafejando-me a nuca aos 20 anos? Ou aos 40? Aos 20, teria ficado tentada, não mais do que tentada, se não fosse moda mas gesto único, exótico, oriental. Seria salva pela presunção da juventude, por considerar que a única coisa indelével em mim haveria de ser eu mesma.
Aos 40, certamente não. A vida já havia começado a imprimir em mim suas tatuagens, marcas, vincos, cicatrizes. O discurso do tempo e da batalha ia sendo escrito na pele e pedia campo livre.
A moça que trabalha para uma das minhas filhas tem mais de 40 anos. Há tempos fez-se loura, de lisos cabelos. Gosta de moda, de marca, de tudo o que reluz. Não podia passar sem uma tatuagem. Mas, como se tatuar fosse rito de passagem para outro andar, ou outra categoria social, não enfrentou sozinha a cerimônia. Convenceu a família e, dia marcado, foram todos juntos à loja do tatuador. Certamente, planejaram em conjunto o que cada qual desenharia no corpo, e onde. Estudaram possibilidades, os pais proibiram a caveira que o filho havia escolhido, a filha quis uma frase, a mãe ficou com rosas a espalhar ombro acima. Agora, ela vai ao trabalho levando a tatuagem sob a roupa com o mesmo orgulho com que carregaria uma bolsa Vuitton.
Na Praça Djemaa el Fna, em Marrakesh, fiz um desenho de henna na mão. Que renda delicada traça o corante vermelho avançando sobre os dedos. Pode ser na palma, e é mais secreta. Pode ser no dorso, e a fala é aberta. Arabescos, joias feitas de traço naquela cor que sendo terra é sangue. Depois, ao longo dos dias, desbota, e se vai. E é bonito esse desmaiar progressivo que nos livra da perenidade e do tédio. As noivas desenham as mãos inteiras no dia das bodas, para fazer com elas as primeiras carícias do amor. Os bordados estarão desaparecendo quando as carícias se fizerem mais espertas.
Os olhos de M. – ela até gostaria que escrevesse o seu nome, eu é que não quero lhe dar divulgação – não vão desbotar. O branco dos seus olhos, que foi recém- tatuado de escarlate, nunca mais voltará a ser branco. Como ela mesma diz: “Doeu bastante. Mas a dor é rápida e a tinta fica para sempre”. M. tem 21 anos. Não sabe se vai se arrepender aos 40 ou antes disso, se vai chorar na tentativa de desgastar o escarlate. Sabe, isso sim, que no próximo fim de semana será realizada em São Paulo a Tatoo Week, e que ela quer fazer muito, muito sucesso com seus angustiantes olhos de morta-viva.
Mesmo elevador, mesmo rapaz, outro dia, meu marido sobe com ele. Comenta as tatuagens, são bonitas, pergunta quanto demora, se doeu – todo mundo pergunta sobre dor, mesmo quem não tem a menor intenção de se tatuar. Depois pergunta se ele não tem medo de se arrepender, tatuagem nessa proporção é indelével. “Tenho não, eu gosto”. “Gosta agora, mas e com 40 anos? ”. “Com 40, não sei. Não tenho 40 anos”. “Pois é, as pessoas mudam”. “Por isso mesmo fiz agora.”
Teria eu tatuado um dragão bafejando-me a nuca aos 20 anos? Ou aos 40? Aos 20, teria ficado tentada, não mais do que tentada, se não fosse moda mas gesto único, exótico, oriental. Seria salva pela presunção da juventude, por considerar que a única coisa indelével em mim haveria de ser eu mesma.
Aos 40, certamente não. A vida já havia começado a imprimir em mim suas tatuagens, marcas, vincos, cicatrizes. O discurso do tempo e da batalha ia sendo escrito na pele e pedia campo livre.
A moça que trabalha para uma das minhas filhas tem mais de 40 anos. Há tempos fez-se loura, de lisos cabelos. Gosta de moda, de marca, de tudo o que reluz. Não podia passar sem uma tatuagem. Mas, como se tatuar fosse rito de passagem para outro andar, ou outra categoria social, não enfrentou sozinha a cerimônia. Convenceu a família e, dia marcado, foram todos juntos à loja do tatuador. Certamente, planejaram em conjunto o que cada qual desenharia no corpo, e onde. Estudaram possibilidades, os pais proibiram a caveira que o filho havia escolhido, a filha quis uma frase, a mãe ficou com rosas a espalhar ombro acima. Agora, ela vai ao trabalho levando a tatuagem sob a roupa com o mesmo orgulho com que carregaria uma bolsa Vuitton.
Na Praça Djemaa el Fna, em Marrakesh, fiz um desenho de henna na mão. Que renda delicada traça o corante vermelho avançando sobre os dedos. Pode ser na palma, e é mais secreta. Pode ser no dorso, e a fala é aberta. Arabescos, joias feitas de traço naquela cor que sendo terra é sangue. Depois, ao longo dos dias, desbota, e se vai. E é bonito esse desmaiar progressivo que nos livra da perenidade e do tédio. As noivas desenham as mãos inteiras no dia das bodas, para fazer com elas as primeiras carícias do amor. Os bordados estarão desaparecendo quando as carícias se fizerem mais espertas.
Os olhos de M. – ela até gostaria que escrevesse o seu nome, eu é que não quero lhe dar divulgação – não vão desbotar. O branco dos seus olhos, que foi recém- tatuado de escarlate, nunca mais voltará a ser branco. Como ela mesma diz: “Doeu bastante. Mas a dor é rápida e a tinta fica para sempre”. M. tem 21 anos. Não sabe se vai se arrepender aos 40 ou antes disso, se vai chorar na tentativa de desgastar o escarlate. Sabe, isso sim, que no próximo fim de semana será realizada em São Paulo a Tatoo Week, e que ela quer fazer muito, muito sucesso com seus angustiantes olhos de morta-viva.
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