Entre os temas urbanos e a sabedoria dos
homens simples do interior, crônicas de Rubem Braga são um marco na
literatura brasileira, ainda capazes de emocionar
Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza
Estado de Minas: 20/07/2013
Rubem Braga, o
capixaba-mineiro-carioca, se estivesse vivo (e está), teria feito 100
anos em janeiro. É um dos melhores cronistas do Brasil – senão o melhor.
Ele soube, segundo Alexandre Meirelles, fundamentar sua prosa “numa
poética capaz de transfigurar o menor dos acontecimentos em uma
experiência das mais significativas”. O conde e o passarinho, O Morro do
Isolamento, A cidade e a roça, Ai de ti, Copacabana, As boas coisas da
vida, Aventura, Cadernos de guerra e mais outras são antologias da mais
fina crônica brasileira.
Rubem Braga, “o bicho do mato
cosmopolita”, como o chamou Tônia Carrero, o “Urso”, como o apelidaram
seus amigos, “o máximo dos cronistas”, como o classificou Clarice
Lispector, merece para sempre ser louvado. A mim, particularmente,
deu-me um presente, justo no mês de seu centenário.
Foi assim.
Fomos a Boa Esperança, terra de minha mulher. Chovia muito. Dia e noite.
Não podendo ir logo para a roça, que se acha nos aclives da serra
imortalizada por Lamartine Babo, ficamos na cidade.
Na pequena
biblioteca que herdei dos sogros, procurei um livro para passar o tempo.
Nada melhor que ler em dia de chuva. Ou em qualquer dia.
Atraído
pela lombada alaranjada e descorada de um livro relativamente fino,
peguei-o. Era A cidade e a roça, de Rubem Braga, que eu presenteara a
meu sogro no Natal de 1964. Publicado em 1956, pela Editora do Autor
(Rio de Janeiro, 2ª edição), tem 32 crônicas a versarem preciosamente
sobre os dois ambientes mencionados em seu título: a cidade e a roça, os
dois objetivos de nossa rápida viagem.
Em 89 páginas, cujos
originais foram escritos de 1953 a 1955, o homem de Cachoeiro do
Itapemirim, o bacharel pela Casa de Afonso Pena, o correspondente de
guerra na Itália, o “solteiro feliz” de Ipanema deixou textos de humor,
de saudade, de tristeza, de amor e de sabedoria.
Associando-me às
homenagens que estão a se prestar ao grande cronista e, em retribuição
ao presente que ele me deu naqueles dias pluviosos, ofereço aos leitores
alguns belos trechos de A cidade e a roça
Em “Opala”, numa tarde-noite urbana, ele fala de amigos e da bela Joaquina:
“Vieram
alguns amigos. Um trouxe bebida, outros trouxeram a boca. Um trouxe
cigarros, outro apenas seu pulmão. Um deitou-se na rede, e outro
telefonava. E , Joaquina, de mão no queixo, olhando o céu, era quem mais
fazia: fazia olhos azuis. (...) À meia-noite, sentimos que o
apartamento estava mal apoiado no bairro e derivava suavemente em
direção da Lua. (...) Joaquina dormia inocente dentro de seus olhos
azuis; o pecado de sua carne era perdoado por uma luminescência mansa
que se filtrava nas cortinas antigas. Havia um tom de opala. Adormeci”.
Ainda
em cenário carioca, ao comentar reclamação de seu vizinho sobre
barulhos noturnos em seu apartamento, Rubem Braga, com a conhecida
verve, envia o seguinte “Recado ao senhor 903”:
“Eu, 1.003, me
limito a leste pelo 1.005, a oeste pelo 1.001, ao sul pelo Oceano
Atlântico, ao alto pelo 1.103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos
esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Atlântico
fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis (...). Prometo
sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um
comportamento de manso lago azul. (...) Mas que me seja permitido sonhar
com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e
dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa.
Aqui estou.’ E o outro respondesse: ‘Entra, vizinho, e come do meu pão e
bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois
descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’”.
Rio antigo
Com
triste saudade, porque existe saudade alegre... o cronista, em
“Lembranças”, escreve ao amigo Zico (Newton Freitas) e fala de um Rio de
Janeiro mais antigo:
“Aqui vamos pelejando neste largo verão.
Escrevo com janelas e portas abertas, e a fumaça de meu cigarro sobe
vertical. A única aragem é a das saudades. (...) sim, nós éramos
estranhos príncipes; e as aflições e humilhações da miséria nunca
estragaram os momentos bons que a gente podia surrupiar da vida – uma
boca fresca de mulher, a graça de um samba, a alegria de um banho de
mar, o gosto de tomar uma cachaça pela madrugada com um bom amigo, a
falar de amores e de sonhos. Assim aprendemos a amar esta cidade; se o
pobre tem aqui uma vida muito dura, e cada dia mais dura, ele sempre
encontra um momento de carinho e de prazer na alma desta cidade, que é
nobre e grande, sobretudo pelo que ela tem de leviana, gratuita,
inconsequente, boêmia e sentimental. (...) Ainda vale a pena ver o sol
nascer no mar; e que a vida poderia ser pior se esta cidade fosse menos
bela, insensata e frívola”.
Em “O lavrador”, ele viaja para a roça e admira o homem do campo. Assim:
“Esse
homem deve ser da minha idade – mas sabe muito mais coisas. (...) Olho
sua cara queimada de sol; parece com a minha, é esse mesmo tipo de
feiura triste do interior. Conversamos sobre a pescaria do piau, da
traíra. Volta a falar de sua terra e desconfia que sou do governo, diz
que precisa passar a escritura. Não sabe ler, mas sabe que essas coisas
escritas em um papel valem muito. Pergunta pela minha profissão, e tenho
vergonha de contar que vivo de escrever papéis que não valem nada; digo
que sou comerciante em Vitória, tenho um negocinho. Ele diz que o
comércio é melhor que a lavoura; que o lavrador se arrisca e o
comerciante é que lucra mais; mas ele foi criado na lavoura e não tem
nenhum preparo. Endireita para mim o cigarro de palha que estou
enrolando com o fumo todo maçarocado. Deve ser de minha idade – mas sabe
muito mais coisas”.
Ao terminar esta pequena seleção feita em
homenagem ao mestre da crônica, volto à cidade com “O gesso”, em que
Rubem Braga se refere à estátua de Bluma Wainer (ele não mencionava o
nome dela), sua grande paixão, que instalou no “quintal suspenso” de sua
cobertura em Ipanema. Leiam:
“Talvez um dia eu mande passar para
o bronze; mas me afeiçoei a essa cabeça de gesso encardido que é a
única lembrança material que tenho daquela que partiu. (...) Quantas
vezes vi esses olhos se rindo em plena luz ou brilhando suavemente na
penumbra, olhando os meus. Agora olham por cima de mim ou através de
mim, brancos, regressados com ela à sua substância de deusa. Agora
ninguém mais a poderá ferir; e todos nós, desta cidade, que a conhecemos
um dia; e, mais que todos, aquele que mais obstinada, mais
angustiosamente soube amá-la, aquele que hoje a contempla assim,
prisioneira do imóvel gesso, mas libertada de toda a dor e toda a paixão
tumultuária da vida – todos nós morremos um pouco na sua ausência.
(...) À noite, quando volto para casa, a cabeça de gesso me espera –
imemorial, neutra, severa, apenas quase triste. E minha ternura é toda
sossego e pureza”.
. Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza é integrante da Academia Mineira de Letras e do Grêmio Literário de Lisboa.
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