Obra do escritor e compositor Luís
Capucho revigorou a literatura gay brasileira. Os três romances do
capixaba emocionam pelo lirismo brutal e por sua apurada linguagem
Paulo Bentancur
Estado de Minas: 20/07/2013
No
começo de 1990, Luís Capucho despontava como um compositor dos mais
desafiadores, capaz de chamar a atenção de Ney Matogrosso e Nana Caymmi,
e de levar Cássia Eller a gravar sua canção Maluca. Gravado em 1995 no
extinto Café Laranjeiras, no Rio de Janeiro (voz e violão, mais
intérprete que cantor no restrito sentido técnico), seu show seria
aparição meteórica se o coma a que foi levado por uma toxoplasmose em
consequência do vírus HIV o impedisse de voltar à tona e de gravar dois
CDs, Lua singela (2003) e Cinema Íris (2012), e ainda publicar três
romances, Cinema Orly (Interlúdio, 1999), Rato (Rocco, 2007) e Mamãe me
adora (Vermelho Marinho, 2012). Nascido em Cachoeiro do Itapemirim, em
1962, o capixaba Capucho reside em Niterói há 37 anos. Artista na linha
da geração beat, dispensando inclusive selos como esse, o escritor, com
apenas três narrativas longas (novelas, para sermos específicos),
sacudiria a bem comportada literatura gay, se compararmos escritores
como os que a ela se filiam, mesmo em suas diversidades.
Cinema
Orly Quando estreou na ficção com Cinema Orly, Capucho não pediu licença
ao literato que poderia ser, e fez de sua condição extrema verdade
humana sem contemplações, um espetáculo despido de qualquer artifício –
sobretudo se considerarmos que o gênero atende todas as vozes (prosa,
poesia, teatro) e, no entanto, raramente consegue se despir de uma
afetação inversamente proporcional à literatura feita por machos que
pensam em fêmeas durante 24 horas por dia. Esse surpreendente escritor
arquitetou sua narrativa como se a beleza fosse o blefe que, aliás, a
beleza costuma ser. Um capricho, uma convenção confortável.
Bem
ao contrário, em Cinema Orly temos afinal uma espécie de Jean Genet dos
trópicos. E para que se ampliem as correlações estéticas, um Rabelais
(1494 –1553) não glutão, mas luxurioso, com uma perversão que quase não
seria exagero chamar de santa, adorando falos num cinema pornô onde os
tipos mais estranhos do Rio de Janeiro, em plena Cinelândia, vão fugir
do tédio e da loucura para se entregar ao que parece vício, mas antes de
mais nada é libertação. Ninguém ali está de brincadeira. Mentira alguma
encontrará espaço.
Do aparente voyeurismo parte-se para a
pegação, ninguém é de ninguém e nem por isso todos são de todos. Há
rígidos códigos de conduta, e quem os rege é a legitimidade que só o
desejo individual sustenta. Dessa forma, Cinema Orly tem a tensa e densa
atmosfera de um inferno. Entretanto, é o paraíso do qual o frequentador
quase diário não consegue se afastar.
O que marca,
fundamentalmente, nesse romance de estreia é a linguagem. Luís Capucho
não quer nem saber. Diz tudo o que sente e pensa com todas as letras,
todas as palavras, numa espécie de acintoso despudor que, na forma e no
fundo, nada mais é que a poesia (ainda que negra) de uma prosa que goza
em dissolver-se no mais brutal dos lirismos. Estilo de quem, por
absoluta coragem, não tem razões para usar o freio numa hora tão
reveladora.
Rato Morando numa cabeça de porco, expressão carioca
para cortiço, o narrador e a mãe (no segundo volume, elementos
autobiográficos são tão evidentes que até nos parece frágil dar-lhe o
nome de literatura de confissão) foram deixados administrando uma casa
onde se alugam quartos para os sujeitos menos recomendáveis. A mãe de
Luís – sim, eis uma autoficção e, assim, o narrador só pode mesmo ter o
nome do autor e viver, talvez com algumas outras palavras, o que este
vive –, a mãe de Luís, fundamental que se frise, é uma figura quase
anódina não fosse a generosidade de uma alma jamais invasiva. O
protagonista se perturba, página a página, ante a visão de homens que
espia ensaboando-se no banheiro e, até nesse caso, sente o peito
estilhaçar-se ainda que frente a figuras decadentes, distraídas,
ausentes mesmo, desde que possa entrever nelas – ou adivinhar, pela
fantasia – um sexo talvez disponível.
Trata-se do melhor livro de
Capucho, o mais bem-estruturado e escrito. Nele, a fluência da
linguagem coleia menos, segue rumo mais direto. Nele, enfim uma relação
de namoro se dá. O afeto não se perde na milleriana disposição esfaimada
para o gozo (o Henry Miller dos anos 1960). Em Cinema Orly, os
frequentadores anônimos na penumbra do cinema eram chamados de répteis.
Aqui, são ratos que ocupam a cabeça de porco até que mãe e filho acabem
enxotados do próprio negócio e vão morar num porão cedido pela
compreensão de um amigo.
Ironicamente, nesse livro não se faz
presente nenhuma espécie de ressentimento. Os que levam a vida ou a vida
a levar aqueles que nela estão à mercê, cavando suas oportunidades, são
da mesma natureza. Ratos. Uma ninhada. Mas só um deles tem voz para
contar.
Mamãe me adora No terceiro e mais recente livro de
Capucho, o drama da Aids, do coma sofrido e do qual se recuperou não sem
sequelas (mancando de uma perna, a dicção comprometida), os limites
entre o que é narrado e as vivências do escritor definitivamente provam
que estavam dissolvidos desde o livro de estreia. Mais poético que Rato,
mais liberto que Cinema Orly, Mamãe me adora é novela para a qual é
fundamental ir-se de alma aberta. Atravessa-a, quase metade dela, uma
viagem do Rio de Janeiro a Aparecida do Norte. A mãe fez 75 anos. O
filho nota os primeiros sinais de cansaço dela, sua decadência física.
Talvez familiarizado com a própria, tornou o imenso amor que sente pela
mãe uma forma de força adicional que, esta sim, o ajuda a auxiliá-la com
o peso de uma existência, quando sempre quem o carregou foi ela – e o
peso dos dois.
A descrição da viagem de ônibus: os inúmeros fatos
que a compõem, desde os passageiros, o motorista sedutor, a mãe e seu
alheamento crescente, os campos em redor, as cidades por que passam à
margem, as rodoviárias com pausas para eventuais lanches, e
destacadamente a figura de Nossa Senhora Aparecida, encontrada no mar
por pescadores e, desde então, figura mítica ligada às águas.
Quando
ao final chegam à cidade, descem antes da última parada para acompanhar
a procissão. A mãe leva um tombo. Nem o narrador nem o leitor dão-se
conta; tudo parece tão somente um acidente de percurso, uma trapalhada
em meio à multidão somada à sensibilidade, tocada agora de outra forma.
No
hotel, destinados ao quarto dos fundos, são convidados por um casal com
quarto de frente para a catedral e os romeiros. Assistem a tudo. Até a
manhã seguinte, quando, sem tomar o café da manhã, a mãe inapetente
respeita apenas o horário de seus remédios. A seguir, vão ver a imagem
da santa. Banhados de luz que naturalmente é filtrada pelos vitrais, mas
que, para Luís e a figura materna, representa a aura de algo mais. Ele
declara acreditar em tudo, tudo, tudo. Menos em Deus.
Em tudo, tudo, tudo. Menos em Deus.
A
mãe lhe pede que compre umas velas. Ele sai apressado. Na volta, já a
encontra agonizante, os olhos sem vida. Pede ajuda, numa das cenas mais
marcantes da literatura contemporânea. O impacto reside na cena
propriamente, e não caberia aqui reproduzi-la.
Lida em
retrospecto, a sensação que nos dá é que a literatura de Capucho se
liquefez. Que ele buscou sempre o sumo onde tantos outros inventaram
amores, deuses, tramas e até personagens que os superassem. Luís
declarou em dois de seus três livros: “Sou um fodido”. Despido de medo,
enriqueceu uma literatura acovardada, viciada em se esconder em
performances por meio das quais sempre acreditou dizer enfim a sua
verdade. Não era.
Paulo Bentancur é escritor e crítico
CONFIRA
emc 7R112
Interlúdio/reprodução
. CINEMA ORLY
Editora Interlúdio
144 páginas, R$ 56
emc 7R113
Vermelho Marinho/reprodução
. MAMÃE ME ADORA
Editora Vermelho Marinho
120 páginas, R$ 36
emc 7R114
Rocco/reprodução
. RATO
Editora Rocco
128 páginas, R$ 26
Distribuição do autor. Informações: luiscapucho11@gmail.com
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