Seguindo a trilha do escritor tcheco
Franz Kafka, o autor mineiro Hugo de Lara conduz o leitor por caminhos
tortuosos da vida, do sofrimento humano e da angustiante solidão
Marco Antônio Souza
Estado de Minas: 20/07/2013
Já nos acostumamos
com Franz Kafka (1883 – 1924), que saiu de Praga, na atual República
Tcheca, para a Weltliteratur (literatura universal). Formou-se em
direito em 1906. Foi advogado. Doutorou-se. Quis criar, na prática dos
propósitos da fraternidade universal, um kibutz onde todos viveriam em
harmonia, partilha e paz. Mas ainda não nos acostumamos com Hugo de
Lara. O escritor mineiro de Relicário do inferno, Certidão da terra,
Pastores da esperança, Argemiro e Rosalinda e O sujeito e o verbo sempre
urgiu viver com personagens de pessoalização amarga, destemida, de
olhos graves e de insofismável lucidez, por onde vem até nós o corpus
atávico e quase metafísico de uma Minas Gerais centrada na estupefação
dos fatos e das confabulações entre o sofrimento, o absurdo e uma
linhagem existencial de falsa redenção humana. Nessa Minas que se faz do
mais fino sentido ou do mais puro sentido. Sentido e sistema. Ou da
busca de sentidos...
Convém destacar: não é porque a excelência
quase absoluta está em Kafka, destacando-se especialmente a novela “O
veredicto”, que deixaremos de trazer, situar, estudar, analisar,
problematizar e ressignificar o trabalho ficcional de Hugo de Lara,
dando mais luz ao conto “Guinaldo e Ritoca”, cuja temática é um percurso
pelos esteios da maldade humana – em ambos os textos fica claro que o
suicídio dos filhos vem pela ação doentia dos pais, e isso ilustra bem a
influência dos maus contra as mais convincentes e boas loquelas da
condição humana.
Kafka e Hugo dialogam. Ou duelam. Eles sabem, e
muito bem, tal qual Shakespeare em Hamlet e Macbeth: o maior inimigo dos
mortais é confiar demais; os anseios devem vir com juras leais e honras
livres; é importante dar carne às mesas e sono às noites; as bruxas da
morte fazem o que nunca tem nome; atos e medos nos fazem traidores;
muitas vezes, o mal é louvável e o bem uma loucura perigosa; menos
felizes somos felizes. Sobretudo, que tudo neste momento – que seja mau
momento – tem seu tempo e sua hora. Aliás, isso se dá ficcionalmente,
sim, como se se dissesse (em Macbeth): “A fatal flecha ainda não pousou e
o mais seguro é evitar o alvo”.
Kafka não evita o alvo. Que
alvo? O alvo é o embate do ser contra o ser na vida malfadada,
kafkianamente, uma vez que o autor atravessa o alvo sem retórica
palaciana e mantém o clima tenebroso ao redor do próprio alvo, com
metafísica dos propósitos de verter álcool em qualquer ferida-alvo
aberta.
Nessa abstração, surgem inopinados os homens que são os
homens das dores. Eis, assim, a divisa kafkiana da condição estreita do
humano, que vai até a ficção do autor tcheco com estrita e indefectível
verdade do coração – ou, melhor, das mais duras trevas do coração
solitário.
Esse valoroso coração – coração é escritura,
linguagem, sentido – diz e rediz que, em Kafka, as ideias abstratas da
ficção não são fonte dos maiores erros no que se refere ao status da
real verdade ficcional, pois se compreende que o escritor traçou um
breviário dos desméritos humanos e do desquerer o bem ou qualquer
realidade relacionada ao bem. Ainda: que não escusamos das verdades do
coração-signo do eu kafkiano, para dizer, decisivamente, com senso de
equilíbrio e proporção, que Hugo de Lara, em sua trajetória de busca das
coisas grandes dentro das coisas pequenas, e dentro das grandes, as
maiores e as mais elevadas, faz um percurso que vai da longa luta pela
suspeição de uma racionalidade – essencialmente ficcionalizada –
inserida ao rés da realidade circundante em Certidão da terra e Argemiro
e Rosalinda – sem romper com Relicário do inferno –, até a mais viva e
celebrada metafísica sobre o homem e o destino das criaturas humanas.
Assim, tal metafísica pode ser vista como lei abismal de uma
viagem-fatum do ser em Hugo e Kafka.
Divinópolis
Hugo
poderia ser um clown shakespeariano. É jornalista e mestre em
filosofia. Inventor de susceptibilidades. Divinópolis é seu berço. A sua
seara de vida sempre fora o sofrer. A sua maior imagem é a de si
próprio. Uma pessoalidade única no deserto de personalidades únicas,
Hugo é o mais pessimista de todos os realistas pessimistas. Estudou para
ser tudo – e foi algo além. Sensibilidade, a dele, é de madeira, ouro e
prata: variada. Escreve para ser eterno e depois morrer – como o
escritor-personagem de Acossado, filme de Jean-Luc Godard. Hugo tem no
seu ateísmo o máximo de fé em Deus, por mais paradoxal que isso seja. Vê
Deus como rocha sisífica que, pelo peso bruto do real, dobra o corpo do
mundo em estado permanente de dor. Mas Hugo vê a existência como uma
esfera de luz – e não queria Deus, porque Deus o desafiava no que tange à
busca das respostas para as verdadeiras questões da existência; e agora
que ele tem Deus – por fé pessoal –, ambos se tornaram grandes amigos.
É
explícito que a literatura de Hugo não é fogo-fátuo. Pode ser ele lido
como um infatigável e robusto artista, que vai do ser in regress ao ser
in progress espiritualmente – sem que se mencione conteúdo religioso, a
não ser em Pastores da esperança e O sujeito e o verbo. Diferentemente
de Kafka, que, na dinâmica dos contrapostos, bem discordaria de Hugo,
pois seus personagens são seres estranhos, decadentes e decaídos.
Sinistras figuras problemáticas e de ação estupefaciente,
permanentemente insatisfeitas e com alma e corpo tão in fieri. Talvez,
digamo-lo sem azedume, uma pessoa de simplicidade convincente não
compreenda a condição vexatória do ser representado por Kafka em sua
obra mais extensa. O autor representa ficcionalmente o sofrer e o
“ressofrer”. E jamais deu importância aos “desensofridos”.
Diante
disso, Hugo já se fez de uma leveza torturada. Para começo de conversa,
seus personagens fazem a aspiração e a desaspiração existenciais do eu
sofrente, já que não é de seu feitio dar azo ou razão ao tema da
transcendência genuína e santificadora, porque não acredita nos homens.
Pode-se observar que a existência hugo-kafkiana é um constructo de
trilhas escuras para quem tem uns e outros caminhos que se configuram na
encruzilhada dos (des)propósitos. Hugo e Kafka veem os homens como
postes vivos na perspectivação e presentificação do mal, que já não
reconhece os limites da condição humana e a sujeição dos homens ao
sofrimento a ela inerente.
Assim, com a luz de lanterna de um
texto, mais este foco: Kafka opta pelo desespero e pelo leitmotiv da
vida arrebentada, aquém e além dos emaranhados existenciais, rendida e
aos pedaços, achatada, inconclusa por vertigens sem limites, totalmente a
descoberto e frágil, não a salvo de tantas ilusões e desvios. Vida
constantemente em movimento, que dá voltas infalíveis sobre o nada, esse
lugar e domicílio tão incerto, imenso farfalhar de medos, engano geral
espalhado pelas vias da decepção geral, que nos induz a reparar nestes
exemplos: os suicidas Georg e Guinaldo, em “O veredicto” e “Guinaldo e
Ritoca”, foram vítimas do ser cruamente doentio (pais e sogro do
nonsense): o ser sem medo que o contivesse, chafurdado na vergonha, no
deslize psicológico delirante, no estouvamento e na leviandade, na
ausência de compostura e na monstruosidade moral e psíquica. Logo,
pode-se dizer que tais personagens suicidas eram dos homens mais doces
do mundo ficcional de Kafka e Hugo.
Trevas
Há
uma dupla espécie de redenção nos dois artistas. Em Kafka, a redenção é
viagem dentro do escuro, que se alastra goeldianamente no silêncio das
próprias trevas. O autor usa das muitas medidas para fazer a falta de
medida, uma vez que, entre existenciários do mundo ficcional, isso
signifique a mais ampla intussuscepção do ser em liberdade prisioneira.
Assim, tal redenção vige como ausência crassa de predições de amor sobre
as esperanças do ser, porque este está sujeito às intempéries de uma
existência que, para revelar Deus, se vá impor – diante de sentinelas,
numes, avatares quaisquer; ou dos poderes do mistério constituído, por
exemplo – uma tarefa de caserna e de réprobos para esse ser-no-mundo.
Aliás, a redenção kafkiana é uma espécie de clareza meridional, mas
entre peçonhas, coisas desordenadas e más, sob o efeito da ordem da
desordem do ser ora agradável à vista, ora desagradável. Nesse sentido,
se forçarmos a voz, a redenção em Kafka é uma prisão: o espaço-tempo do
amor (aqui e além) não está acessível nem para aqueles que têm fé. O que
para Kafka está bendito ou maldito na força corrente do dia é a
desestabilização do status quo do ser.
Quanto à redenção em Hugo,
eis um lastro de vida que pulsa perfeitamente lúdica – pois esta, para o
autor, é ludus, louvável ou não. Hugo procura elevar-se, sair-se do
ordinário de uma existência em que “vivemos na fé como se Deus não
existisse”, para lembrarmos Dietrich Bonhöeffer. Larga e longa é a
redenção hugoana, uma vez que o autor sai do aviltamento do ser para
outras verdades ficcionais de forma reconciliável, retirando do ser o
cárcere de si próprio, longe de argumentos e queixas que negativamente
dele possam surgir e afetar toda inquietude e inquietação escorchante e
pesada desse ser de pesadelos e sonhos, que, como uma névoa, deverá ver
tudo isso dissipado pelo sol da vontade, do juízo, do mistério da cruz
significativamente aberta da condição humana. Assim, sem propriamente
uma base cristã, mas agindo cristãmente, Hugo se dá em conformidade com a
esperança, seguro de si, vitorioso, longe de desejar uma saída fácil
para a nada elementar situação do homem na existência.
Observa-se
que, não isoladamente, Kafka e Hugo preocupam-se com a fatuidade grave
da angústia na voz subterrânea dos mais simples, dos indefesos, dos que
figuram no mundo com seus grilhões e seus pesadelos abomináveis sob um
it prestigitador da morte vil, sob os clarões terríveis do mal,
visitante dos estamentos que equilibram o bem, sob o calor sufocante da
angústia e do tédio e sob a mais grave overture da solidão.
Mais
difícil talvez seja dizer que, para não contrariarmos esses exemplos de
extraordinária flexibilidade existencial, levamos o homem – mesmo na
sua condição mais precária – ao cume da montanha altíssima, onde, para
ele, é viável a redenção diminuta, etérea, inconsútil e eterna no aqui e
agora, lembrando, pois, que Kafka e Hugo haveriam de admitir que a
realidade que mais se aproxima do “corpo” de Deus é o silêncio. Isso se
daria, realmente, de uma forma que nós, quase incautos, não ficássemos
perplexos diante dos dois artistas e da tão concreta ou tão abstrata
noção-imagem da fisicalidade total de Deus.
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