sábado, 20 de julho de 2013

Uma redenção escura - Marco Antônio Souza‏

Seguindo a trilha do escritor tcheco Franz Kafka, o autor mineiro Hugo de Lara conduz o leitor por caminhos tortuosos da vida, do sofrimento humano e da angustiante solidão 


Marco Antônio Souza

Estado de Minas: 20/07/2013 


Já nos acostumamos com Franz Kafka (1883 – 1924), que saiu de Praga, na atual República Tcheca, para a Weltliteratur (literatura universal). Formou-se em direito em 1906. Foi advogado. Doutorou-se. Quis criar, na prática dos propósitos da fraternidade universal, um kibutz onde todos viveriam em harmonia, partilha e paz. Mas ainda não nos acostumamos com Hugo de Lara. O escritor mineiro de Relicário do inferno, Certidão da terra, Pastores da esperança, Argemiro e Rosalinda e O sujeito e o verbo sempre urgiu viver com personagens de pessoalização amarga, destemida, de olhos graves e de insofismável lucidez, por onde vem até nós o corpus atávico e quase metafísico de uma Minas Gerais centrada na estupefação dos fatos e das confabulações entre o sofrimento, o absurdo e uma linhagem existencial de falsa redenção humana. Nessa Minas que se faz do mais fino sentido ou do mais puro sentido. Sentido e sistema. Ou da busca de sentidos...

Convém destacar: não é porque a excelência quase absoluta está em Kafka, destacando-se especialmente a novela “O veredicto”, que deixaremos de trazer, situar, estudar, analisar, problematizar e ressignificar o trabalho ficcional de Hugo de Lara, dando mais luz ao conto “Guinaldo e Ritoca”, cuja temática é um percurso pelos esteios da maldade humana – em ambos os textos fica claro que o suicídio dos filhos vem pela ação doentia dos pais, e isso ilustra bem a influência dos maus contra as mais convincentes e boas loquelas da condição humana.

Kafka e Hugo dialogam. Ou duelam. Eles sabem, e muito bem, tal qual Shakespeare em Hamlet e Macbeth: o maior inimigo dos mortais é confiar demais; os anseios devem vir com juras leais e honras livres; é importante dar carne às mesas e sono às noites; as bruxas da morte fazem o que nunca tem nome; atos e medos nos fazem traidores; muitas vezes, o mal é louvável e o bem uma loucura perigosa; menos felizes somos felizes. Sobretudo, que tudo neste momento – que seja mau momento – tem seu tempo e sua hora. Aliás, isso se dá ficcionalmente, sim, como se se dissesse (em Macbeth): “A fatal flecha ainda não pousou e o mais seguro é evitar o alvo”.

Kafka não evita o alvo. Que alvo? O alvo é o embate do ser contra o ser na vida malfadada, kafkianamente, uma vez que o autor atravessa o alvo sem retórica palaciana e mantém o clima tenebroso ao redor do próprio alvo, com metafísica dos propósitos de verter álcool em qualquer ferida-alvo aberta.

Nessa abstração, surgem inopinados os homens que são os homens das dores. Eis, assim, a divisa kafkiana da condição estreita do humano, que vai até a ficção do autor tcheco com estrita e indefectível verdade do coração – ou, melhor, das mais duras trevas do coração solitário.

Esse valoroso coração – coração é escritura, linguagem, sentido – diz e rediz que, em Kafka, as ideias abstratas da ficção não são fonte dos maiores erros no que se refere ao status da real verdade ficcional, pois se compreende que o escritor traçou um breviário dos desméritos humanos e do desquerer o bem ou qualquer realidade relacionada ao bem. Ainda: que não escusamos das verdades do coração-signo do eu kafkiano, para dizer, decisivamente, com senso de equilíbrio e proporção, que Hugo de Lara, em sua trajetória de busca das coisas grandes dentro das coisas pequenas, e dentro das grandes, as maiores e as mais elevadas, faz um percurso que vai da longa luta pela suspeição de uma racionalidade – essencialmente ficcionalizada – inserida ao rés da realidade circundante em Certidão da terra e Argemiro e Rosalinda – sem romper com Relicário do inferno –, até a mais viva e celebrada metafísica sobre o homem e o destino das criaturas humanas. Assim, tal metafísica pode ser vista como lei abismal de uma viagem-fatum do ser em Hugo e Kafka.

Divinópolis

Hugo poderia ser um clown shakespeariano. É jornalista e mestre em filosofia. Inventor de susceptibilidades. Divinópolis é seu berço. A sua seara de vida sempre fora o sofrer. A sua maior imagem é a de si próprio. Uma pessoalidade única no deserto de personalidades únicas, Hugo é o mais pessimista de todos os realistas pessimistas. Estudou para ser tudo – e foi algo além. Sensibilidade, a dele, é de madeira, ouro e prata: variada. Escreve para ser eterno e depois morrer – como o escritor-personagem de Acossado, filme de Jean-Luc Godard. Hugo tem no seu ateísmo o máximo de fé em Deus, por mais paradoxal que isso seja. Vê Deus como rocha sisífica que, pelo peso bruto do real, dobra o corpo do mundo em estado permanente de dor. Mas Hugo vê a existência como uma esfera de luz – e não queria Deus, porque Deus o desafiava no que tange à busca das respostas para as verdadeiras questões da existência; e agora que ele tem Deus – por fé pessoal –, ambos se tornaram grandes amigos.

É explícito que a literatura de Hugo não é fogo-fátuo. Pode ser ele lido como um infatigável e robusto artista, que vai do ser in regress ao ser in progress espiritualmente – sem que se mencione conteúdo religioso, a não ser em Pastores da esperança e O sujeito e o verbo. Diferentemente de Kafka, que, na dinâmica dos contrapostos, bem discordaria de Hugo, pois seus personagens são seres estranhos, decadentes e decaídos. Sinistras figuras problemáticas e de ação estupefaciente, permanentemente insatisfeitas e com alma e corpo tão in fieri. Talvez, digamo-lo sem azedume, uma pessoa de simplicidade convincente não compreenda a condição vexatória do ser representado por Kafka em sua obra mais extensa. O autor representa ficcionalmente o sofrer e o “ressofrer”. E jamais deu importância aos “desensofridos”.

Diante disso, Hugo já se fez de uma leveza torturada. Para começo de conversa, seus personagens fazem a aspiração e a desaspiração existenciais do eu sofrente, já que não é de seu feitio dar azo ou razão ao tema da transcendência genuína e santificadora, porque não acredita nos homens. Pode-se observar que a existência hugo-kafkiana é um constructo de trilhas escuras para quem tem uns e outros caminhos que se configuram na encruzilhada dos (des)propósitos. Hugo e Kafka veem os homens como postes vivos na perspectivação e presentificação do mal, que já não reconhece os limites da condição humana e a sujeição dos homens ao sofrimento a ela inerente.

Assim, com a luz de lanterna de um texto, mais este foco: Kafka opta pelo desespero e pelo leitmotiv da vida arrebentada, aquém e além dos emaranhados existenciais, rendida e aos pedaços, achatada, inconclusa por vertigens sem limites, totalmente a descoberto e frágil, não a salvo de tantas ilusões e desvios. Vida constantemente em movimento, que dá voltas infalíveis sobre o nada, esse lugar e domicílio tão incerto, imenso farfalhar de medos, engano geral espalhado pelas vias da decepção geral, que nos induz a reparar nestes exemplos: os suicidas Georg e Guinaldo, em “O veredicto” e “Guinaldo e Ritoca”, foram vítimas do ser cruamente doentio (pais e sogro do nonsense): o ser sem medo que o contivesse, chafurdado na vergonha, no deslize psicológico delirante, no estouvamento e na leviandade, na ausência de compostura e na monstruosidade moral e psíquica. Logo, pode-se dizer que tais personagens suicidas eram dos homens mais doces do mundo ficcional de Kafka e Hugo.

Trevas

Há uma dupla espécie de redenção nos dois artistas. Em Kafka, a redenção é viagem dentro do escuro, que se alastra goeldianamente no silêncio das próprias trevas. O autor usa das muitas medidas para fazer a falta de medida, uma vez que, entre existenciários do mundo ficcional, isso signifique a mais ampla intussuscepção do ser em liberdade prisioneira. Assim, tal redenção vige como ausência crassa de predições de amor sobre as esperanças do ser, porque este está sujeito às intempéries de uma existência que, para revelar Deus, se vá impor – diante de sentinelas, numes, avatares quaisquer; ou dos poderes do mistério constituído, por exemplo – uma tarefa de caserna e de réprobos para esse ser-no-mundo. Aliás, a redenção kafkiana é uma espécie de clareza meridional, mas entre peçonhas, coisas desordenadas e más, sob o efeito da ordem da desordem do ser ora agradável à vista, ora desagradável. Nesse sentido, se forçarmos a voz, a redenção em Kafka é uma prisão: o espaço-tempo do amor (aqui e além) não está acessível nem para aqueles que têm fé. O que para Kafka está bendito ou maldito na força corrente do dia é a desestabilização do status quo do ser.

Quanto à redenção em Hugo, eis um lastro de vida que pulsa perfeitamente lúdica – pois esta, para o autor, é ludus, louvável ou não. Hugo procura elevar-se, sair-se do ordinário de uma existência em que “vivemos na fé como se Deus não existisse”, para lembrarmos Dietrich Bonhöeffer. Larga e longa é a redenção hugoana, uma vez que o autor sai do aviltamento do ser para outras verdades ficcionais de forma reconciliável, retirando do ser o cárcere de si próprio, longe de argumentos e queixas que negativamente dele possam surgir e afetar toda inquietude e inquietação escorchante e pesada desse ser de pesadelos e sonhos, que, como uma névoa, deverá ver tudo isso dissipado pelo sol da vontade, do juízo, do mistério da cruz significativamente aberta da condição humana. Assim, sem propriamente uma base cristã, mas agindo cristãmente, Hugo se dá em conformidade com a esperança, seguro de si, vitorioso, longe de desejar uma saída fácil para a nada elementar situação do homem na existência.

Observa-se que, não isoladamente, Kafka e Hugo preocupam-se com a fatuidade grave da angústia na voz subterrânea dos mais simples, dos indefesos, dos que figuram no mundo com seus grilhões e seus pesadelos abomináveis sob um it prestigitador da morte vil, sob os clarões terríveis do mal, visitante dos estamentos que equilibram o bem, sob o calor sufocante da angústia e do tédio e sob a mais grave overture da solidão.

Mais difícil talvez seja dizer que, para não contrariarmos esses exemplos de extraordinária flexibilidade existencial, levamos o homem – mesmo na sua condição mais precária – ao cume da montanha altíssima, onde, para ele, é viável a redenção diminuta, etérea, inconsútil e eterna no aqui e agora, lembrando, pois, que Kafka e Hugo haveriam de admitir que a realidade que mais se aproxima do “corpo” de Deus é o silêncio. Isso se daria, realmente, de uma forma que nós, quase incautos, não ficássemos perplexos diante dos dois artistas e da tão concreta ou tão abstrata noção-imagem da fisicalidade total de Deus.

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