Frederico Zeymer Feu de Carvalho
Estado de Minas: 05/10/2013
Se a dor psíquica se relaciona com todas as dimensões do sujeito, por que seria possível estancá-la com uma pílula mágica? |
“– Então, como foi a consulta?
– Foi bem... Ele me explicou que o que tenho é depressão, por causa de uma substância que falta no cérebro.
– E você falou com ele do que te aborrece?
– Não deu pra falar muito não. Ele me disse para tomar a medicação e não ficar falando muito dessas coisas que nos aborrecem.”
Esse pequeno fragmento, ouvido por acaso dentro de um ônibus, nos serve aqui de paradigma para algumas questões que dizem respeito ao tratamento do mal-estar na contemporaneidade. Nas últimas décadas, com o avanço das neurociências e das pesquisas sobre a biologia do cérebro, muito se tem propagado sobre o “tratamento científico” do sofrimento psíquico. Novos diagnósticos, como a “síndrome do pânico”, o “transtorno de déficit de atenção e hiperatividade”, o “transtorno afetivo bipolar” e outros saíram dos manuais de psiquiatria para ganhar o domínio público. Uma parte expressiva de nossa infelicidade cotidiana ganhou, assim, um nome científico. Embora afirme a existência de fronteiras entre o normal e o patológico, que nunca sabemos situar com precisão, o discurso da ciência de nossa época acaba contribuindo para a localização cerebral daquilo que pertence à esfera de nossa responsabilidade ética e para a redução da singularidade de cada um à universalidade do funcionamento cerebral.
Impulsionado pelo lobby da indústria farmacêutica, o discurso da ciência pode ser caracterizado, nesse sentido, por suas alianças com o capitalismo. É preciso, contudo, fazer a diferença entre a ciência, como uma forma discursiva que emerge na história do pensamento ocidental por volta da segunda metade do século 17, e o que resulta de seus efeitos na cultura, ou seja, uma série de falsos saberes que se servem da ciência, aos quais poderíamos emprestar o termo genérico de cientificismo.
O fragmento em epígrafe comporta, certamente, uma versão reducionista das contribuições que a ciência pode oferecer ao tratamento de nosso mal-estar, especialmente se pensarmos nos benefícios de uma boa prescrição. O ato de falar de si e narrar os seus aborrecimentos se encontra, no entanto, completamente desvalorizado, nesse caso, diante do ato de engolir a pílula.
Nossa época repercute, como nunca, essa exclusão da subjetividade. Isso pode ser constatado a cada vez que se negligencia o sujeito que existe na criança, no doente ou na loucura, ou quando o corpo é manipulado, medicalizado e modificado sem que se considerem os efeitos subjetivos desses procedimentos.
O risco da visão reducionista da ciência é de, em nome da cientificidade, tomar a própria ciência por um mito, fazendo-nos crer que o funcionamento do cérebro é a causa de nosso comportamento e de nossos humores, esquecendo que o fundamento biológico é somente o substrato de nosso ser e que sobre esse ser se derramam e se depositam as palavras e os discursos que nos formaram. A palavra pode tanto ferir quanto aliviar; ela provoca no corpo alterações fisiológicas e se liga às emoções e afetos. Antes mesmo que possamos falar ou entender o que nos é dito, somos “falados” pelo meio social que nos cerca e nos destina um lugar no mundo. A linguagem é como um órgão exterior ao nosso corpo, mesmo que seu exercício dependa do cérebro. Mas, como tal, obedece a regras socialmente compartilhadas e não uma lei natural.
O aparelho psíquico, tal como Freud o concebe, inclui o laço social e não pode ser pensado sem as parcerias sintomáticas que ligam o sujeito a um modo particular de viver e de satisfazer a pulsão sexual. Em outros termos, a realidade psíquica inclui sempre o outro, em sentido amplo, seja como parceiro, rival, objeto ou ideal. Somos um efeito tanto dos nossos laços sociais quanto dos nossos fundamentos biológico-genéticos. Como corpos vivos, somos atravessados pela linguagem e é isso que torna impossível, para o ser falante, recuperar a sua relação com uma suposta “natureza humana”.
O psiquiatra e psicanalista suíço François Ansermet – que tem trabalhado ativamente as conexões e as desconexões entre psicanálise e neurociências – lembra que é do lado daquilo que falha que se deve buscar o humano em sua possível liberdade e que, se o humano rateia mais que o rato, é também porque ele perdeu o saber instintual do animal. Essa perda instintual própria ao humano resulta do fato da linguagem: “Ser submetido à linguagem faz do homem um animal desnaturado, um animal desprogramado”. Em todo caso, prossegue Ansermet, “nada é simples no humano entre a sua suposta base biológica e o que ele é. Não há superposição possível, não há inferência direta entre uma estrutura neuronal ou genética e uma função psíquica”.
Escuta
É esse campo da palavra que se abre na experiência de uma psicanálise. Desde sua invenção por Freud, a psicanálise recolhe aquilo que o discurso da ciência não consegue acolher. Foi assim com a histeria no final do século 19; continua sendo assim no século 21. Reduzida ao mínimo, uma psicanálise se limita a dois sujeitos que trocam palavras em posição assimétrica, dado que um deles se oferece como analista para aquele que lhe dirige a palavra. Mas o que faz um analista? Ele escuta a palavra que o analisante lhe endereça e que se desenrola a partir da porta aberta pelo dispositivo analítico. O analista estimula e interpreta a fala do analisante, pontuando as suas associações, religando-as ao fio da narrativa em geral esburacada e descontínua de cada história individual.
É a partir desse depósito de palavras que, aos poucos, é possível extrair a fantasia que o sintoma envelopa. É um engano pensar que a interpretação do analista visa dar uma explicação causal ao que é dito a partir de determinações inconscientes. O que uma psicanálise visa é a invenção, própria a cada um, que lhe permita viver um pouco melhor. É esse ganho de saber que está ausente no efeito farmacológico, mesmo quando um alívio dos sintomas é obtido. No fundo, uma análise está voltada para o futuro e para a possibilidade dada a todo aquele que nela se aventura de se rearranjar com seu modo singular de vida, de maneira a torná-lo mais razoável e compatível com os laços sociais. Disso depende o ato de tomar a palavra a fim de bem dizer o que se pode dizer.
Nossa época, no entanto, se caracteriza pela oferta de objetos de consumo que prometem sempre mais satisfação, levando ao infinito essa busca que a psicanálise define como impossível: o reencontro com a satisfação perdida. É esse impossível que caracteriza o real em jogo na experiência analítica. Como se expressa Jacques Lacan, “nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para o que, no coração da experiência, é o núcleo do real”.
Os avanços das neurociências interessam aos psicanalistas, especialmente se consideramos o uso de psicofármacos, muitas vezes essenciais à clínica psicanalítica. Mas as neurociências incorrem no risco de resvalarem para o delírio cientificista ao confundirem realidade psíquica com realidade cerebral, mantendo intacta a problemática do sujeito.
Ciência e psicanálise
Qual é o lugar da psicanálise entre as ciências? Ou, nas palavras de Lacan: “O que seria uma ciência que incluísse a psicanálise?”. São esses pontos de relação e de não relação entre psicanálise e ciência que a 18ª Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais (EBP-MG) vaiá discutir nos dias 18 e 19. Para saber mais sobre a jornada: www.jornadaebpmg.blogspot.com
. Frederico Zeymer Feu de Carvalho é psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise, mestre em filosofia e doutor em estudos linguísticos pela UFMG.
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