Zero Hora - 05/10/2013
Pessoas supersticiosas são aquelas que não suportam o vazio de sentido. É
preciso preencher todos os espaços, inclusive e principalmente o do
acaso, com o véu apaziguador da circunstância cósmica inescapável. Um
raio cai a dois metros de distância de alguém, e aquele elemento da
natureza se transforma imediatamente em algum tipo de mensageiro de
sinais ocultos.
Se o raio acerta em cheio e pulveriza o azarado, haverá uma alma
inocente para dizer que era para ser, que ninguém escapa da própria
sorte e coisa e tal. Em 100% dos casos, porém, um raio é apenas um raio –
e podemos nos dar por muito satisfeitos, enquanto espécie, por termos
aprendido uma ou duas coisas que nos ajudam a evitar que eles caiam
sobre nossas cabeças com mais frequência ainda.
O filósofo-cientista-poeta romano Lucrécio, que viveu no século 1
AC, foi um dos primeiros pensadores da nossa era a sacudir o coreto da
superstição que corria solta em sua época. No poema Sobre a Natureza das
Coisas, que ecoa ideias de Epicuro e de outros filósofos gregos,
Lucrécio propõe que a humanidade deixe as superstições para trás e corra
de braços abertos para a lógica, a razão e a ciência. Ou seja: em vez
de ficar acreditando que raios são castigo dos céus, tratar de descobrir
por que caem e como dar no pé quando eles se aproximam.
O delicioso A Virada – O Nascimento do Mundo Moderno, do historiador
americano Stephen Greenblatt, conta as aventuras do caçador de livros
que encontrou os manuscritos de Lucrécio em uma empoeirada prateleira de
um mosteiro na Alemanha, em 1417. O historiador defende a tese de que a
descoberta, mais ou menos acidental, foi decisiva para a história da
humanidade.
Ao afirmar que o universo funciona sem o auxílio de forças
sobrenaturais, o livro de Lucrécio, argumenta Greenblatt, pode ter dado o
impulso que faltava para a Europa sair da trevosa e amedrontada Idade
Média, dando início ao processo histórico que desembocaria na
modernidade e na nova ordem social simbolizada pelo 14 de julho.
Uma das ideias de Lucrécio era exatamente a de que tudo que existe é
fruto de uma “virada”, um pequeno desvio que resulta em algo novo e
revolucionário. Para Greenblatt, o livro de Lucrécio marcou uma dessas
“viradas” – definitiva e luminosa.
Em 1988, um livro de capa verde e amarela veio à luz no Brasil sob a
expectativa de uma virada não menos dramática, ainda que de alcance
mais restrito: encerrar o ciclo de desigualdades, de fato e de direitos,
que marcou os primeiros 500 anos de história do nosso país. As
reportagens sobre os 25 anos da Constituição de 1988, porém, dividiram
espaço nos jornais desta semana com os resultados das investigações
sobre a morte do pedreiro Amarildo, torturado e morto pela polícia do
Rio como se a chamada “Constituição cidadã” nunca tivesse existido – ou
valesse apenas parte do tempo, para apenas parte das pessoas.
Talvez 25 anos seja um tempo muito curto para uma “virada” radical e
definitiva. Talvez a nossa esteja ali na esquina, bem perto, quase ao
alcance dos olhos. Por enquanto, não deixa de ser uma circunstância
cósmica irônica, se não inescapável, que a morte em nada excepcional ou
revolucionária de Amarildo tenha acontecido justamente num 14 de julho.
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