O GLOBO - 05/10/2013
Devemos prestar atenção à dor dos outros, para tentarmos atenuar a nossa
Semana
passada, andei uns dias por Marechal Deodoro, cidade histórica de
Alagoas, antiga capital do estado, acompanhando a IV Flimar (Festa
Literária de Marechal Deodoro), organizada pelo prefeito Cristiano
Matheus e por seu secretário de cultura Carlito Lima, meu amigo de
infância. Dias de reencontro com tanta coisa.
Durante a Flimar,
redescobri, graças a Ricardo Ramos Filho, seu neto, a extraordinária
carta de Graciliano Ramos a Cândido Portinari, publicada em 1946. Um
verdadeiro manifesto que, em nossa juventude de esquerda, líamos como
amargo chiste do velho Graça, ao qual não tínhamos que dar tanta
atenção. E no entanto devíamos ter levado mais a sério o que nosso
escritor dizia ao pintor seu amigo, para o bem de sua geração e das
gerações de artistas que os sucederam.
“Caríssimo Portinari”,
escreve Graciliano, “(...) receio que esta resposta já não o ache
fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno,
penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo
as deformações e miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que
nos censuram. (...) se elas desaparecessem, poderíamos continuar a
trabalhar? Desejamos realmente que elas desapareçam ou seremos também
uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos
desgraças? Dos quadros que você mostrou (...), o que mais me comoveu foi
aquela mãe com a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento
horrível: numa sociedade sem classes e sem miséria seria possível
fazer-se aquilo? Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte
surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor de rosa, e
isto me horroriza. Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha
amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão
dela (...).”
Gostaria muito de pensar, e faço sempre um grande
esforço para isso, como Bachelard, filósofo francês: “O mundo é belo
antes de ser verdadeiro, o mundo é admirado antes de ser verificado.” O
que significa que descobrir e se encantar com o que está à nossa volta
deve ter primazia sobre ouvir o que se diz sobre o que está à nossa
volta. Esse talvez seja o principal conflito da inteligência humana, a
disputa eterna entre cultura e conhecimento. Os artistas sofrem com
isso.
De que dor e de que mundo devemos falar quando nos
deparamos com um desastre como esse de Lampedusa? Mais de 300 imigrantes
ilegais, fugindo pelo Mediterrâneo de países africanos em crise, tentam
chegar ao sul da Itália e morrem no naufrágio previsível de um barco
sem condições de fazer os 350km da viagem, controlado por gerentes da
miséria humana que cobravam mais de 1.500 dólares por cada um dos 500
passageiros, número impossível de caber em seus poucos 20 metros de
extensão.
Eu sei que isso não é novo, nem raro. Eu sei que já
aconteceu com albaneses que tentavam chegar ao norte da Itália, com
mexicanos que atravessavam a fronteira para os Estados Unidos, com
cubanos que remavam em direção à Flórida. Eu sei que isso não deixará de
acontecer enquanto houver fome, miséria, opressão e guerra por aí
afora, enquanto houver seres humanos desejando com desespero viver outra
vida. Mas não quero me acostumar a isso, não vou me acostumar a isso.
A
dor a que Graciliano se refere e não deseja suprimir faz parte da
natureza humana, está sempre dentro de nós e no mundo ao nosso redor,
temos que contar com ela. Nascemos para parir e parimos com dor. Os
animais, as plantas, a terra toda, tudo à nossa volta vive fugindo dela,
viver é tentar escapar da dor. Mas a dor de Lampedusa, dos que morreram
sem conhecer a felicidade, dos que sobreviveram inutilmente e dos que,
como nós, assistem perplexos a esse espetáculo brutal, essa é uma
vergonha e pode muito bem ser suprimida. Como disse Francisco, acertando
mais uma vez, ela é o resultado da “globalização da indiferença”.
Devemos
prestar atenção à dor dos outros, para tentarmos atenuar a nossa. Vejo o
desastre de Lampedusa e penso, por exemplo, nessa irracional reação
corporativista aos médicos estrangeiros que querem trabalhar no Brasil.
Nossas corporações são mais importantes do que o bem-estar e a saúde dos
outros, num país miserável como esse? Como penso também em nossos
professores em greve. Destruir equipamentos públicos, como estação de
metrô, transportes coletivos, pontos de ônibus, placas de sinalização,
cabines de telefone, equipamentos que servem ao resto da população,
sobretudo aos mais pobres que não têm nada a ver com isso, faz parte de
suas reivindicações corporativas?
Nesse e em outros exemplos mais e menos modestos, que se dane o resto, aquele que não sou eu, o outro?
Uma
correção relativa ao artigo do outro sábado. O primeiro universitário
da PUC-RJ a ser eleito presidente da UNE foi o estudante de direito José
Baptista de Oliveira, durante o biênio 1956-57. Arthur Poener, em “O
poder jovem” (ed. Civilização Brasileira, 1968), escreveu que a gestão
de José Baptista “assinalou a formação da primeira frente única de
católicos e comunistas no movimento estudantil, autêntica precursora do
pensamento ecumênico em nosso país.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário