João Paulo
Estado de Minas: 05/10/2013
Leminski selecionou bem suas companhias, escolhendo seus personagens da vida real entre poetas, profetas e revolucionários |
Paulo Leminski (1944-1989) foi um poeta e tanto. Não fosse tanto, seria quase. Em vida, fez de tudo: versos, prosa, letra de canções. Ajudou a popularizar o haikai no Brasil, traduziu do japonês, inglês, francês, e latim. De sua base em Curitiba, fez chover no piquenique da literatura brasileira. Meio polaco, meio negro, foi também judoca, faixa preta. De todas as aventuras que viveu, uma das mais impressionantes foi levar a poesia à lista dos livros mais vendidos. E, para ficar ainda mais difícil, fez isso 24 anos depois de morto. O livro Toda poesia, lançado este ano, não foi apenas um acerto de contas, mas uma pequena revolução no mais conservador dos mercados.
Jogador em meio a referências múltiplas, a obra de Leminski criou um tenso diálogo com o concretismo, com o tropicalismo, com a poesia japonesa, com as correntes teóricas que brotavam da semiótica e da filosofia de Pierce. Em cada um desses elementos a obra do poeta parecia encontrar pegadas produtivas: a capacidade de invenção gozosa, a conversa com a indústria cultural, a fuga do nacional-popular, a concisão ancorada numa filosofia quase religiosa, a aventura da interpretação sem fim.
Pop, Leminski fez ainda o exercício pouco comum em nossas letras de juntar sofisticação com capacidade de diálogo. É um dos poetas mais populares entre os jovens e um dos mais incensados pelos eruditos. Rigor sem rigidez ou, para usar sua própria definição, que estampou na capa de um de seus livros, Caprichos e relaxos. Além da poesia, sua literatura de invenção gerou ainda dois romances importantes, Catatau, que se tornou um mito (mais comentado que lidio) e o pouco valorizado Agora é que são elas, que está a merecer nova edição e leitura mais atenta.
Na esteira do sucesso das poesias completas, a Editora Companhia das Letras reúne as quatro biografias escritas por Paulo Leminski no livro Vida. O volume enfeixa os ensaios biográficos dedicados a personagens que nada parecem ter em comum, além da radicalidade do destino que cumpriram: Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski. Os três primeiros foram objeto de livrinhos de uma coleção que marcou época, Encanto Radical, da Editora Brasiliense, nos anos 1980. O livro dedicado a Trótski é mais ambicioso e sai do campo da literatura – mesmo Jesus é lido como um poeta-profeta – para se aventurar na política e na história cultural.
As biografias andam em alta hoje em dia. Quase sempre, no entanto, são construídas com a preocupação de esgotar o personagem, de pesquisar os vários momentos de sua vida, de conversar com os todos que conviveram com ele. Além disso, sinal dos tempos, há um interesse exagerado em marcas da vida pessoal, em revelar segredos, em fazer o inventário de amores e desamores. Por fim, as biografias se tornaram uma indústria, feita a muitas mãos, e que miram o interesse do mercado para dispor nas livrarias seus produtos com o máximo de rapidez. Quem, em sã consciência, perderia tempo lendo uma “biografia” de Justin Bieber ou de Lady Gaga? O comércio reponde: milhões de pessoas. E dá-lhe livros e árvores derrubadas.
O trabalho de Paulo Leminski vai na contramão de todos esses caminhos. O poeta curitibano tem como método soberano a inteligência. Ele lê seus personagens, em obras e atitudes, para dar ao leitor um repertório maior de compreensão do mundo, da arte e da política. Herdeiro das vanguardas, Leminski sabe que a experiência conta tanto quanto a razão. Seus biografados não se perdem no tempo nem são personagens datados. O nome do livro, Vida, é uma síntese desse propósito: o biógrafo só se interessa pelo que pulsa.
Sonoplasta
A primeira biografia publicada por Leminski foi Cruz e Souza, o negro branco, lançada originalmente em 1983. O biógrafo já começa mostrando suas armas. Em vez de se perder na conhecida linha dos estilos de época e reforçar o simbolismo do poeta negro, ele busca outras filiações, inspirado mais pela intuição que pela historiografia literária. Assim, Cruz e Souza é apresentado como um poeta que chegou ao soneto porque não era americano. Sua poesia soturna permite a Leminski uma leitura afiada: “Fosse negro norte-americano, Cruz e Sousa teria inventado o blues”. Blues e Sousa.
A pesquisa prossegue. Homem triste, o poeta leva o parceiro em busca do sentimento histórico da tristeza. E assim, banzando ou mergulhado no spleen, Cruz e Sousa é medido pela arte e Baudelaire, dos cantores de spirituals, das grandes damas do blues. Leminski traz ainda para sua leitura signos visuais das publicações da época e até do vestuário do poeta, “um dândi fantasista e caprichoso em suas roupas, africanamente escandalosas, dentro dos padrões da vestuária europeia e branca do século XIX”.
Mas o melhor está mesmo na leitura dos poemas de Cruz e Sousa. Leminski destaca seu erotismo, “uma linguagem em ereção”. Para o biógrafo, com suas imagens profusas e aveludadas, Cruz e Sousa foi um poeta priápico, que se valia de uma musa ninfomaníaca, provavelmente lésbica, com furor uterino. E completa, com exatidão: “uma musa, é claro, expressionista”. Para confirmar sua leitura, lança mão de téoricos como Edmund Wilson e Pierce, mais uma vez passando por cima da cronologia para fazer valer o sentido.
Por fim, num ensaio livre de estilística, Leminski analisa a poesia de Cruz e Sousa em seu aspecto linguístico e musical, mostrando como, por artes do simbolismo, o sentido no poeta deixa o olho para habitar o ouvido. Para o biógrafo, mais que poeta, Cruz e Sousa foi um sonoplasta. E dá-lhe leituras criativas, com uso do confesso método “pound-faustino-paideumático”. E o leitor, além de conhecer melhor Cruz e Sousa, aprende a ler poemas como “Acrobata da dor”, “O assinalado”, “Caveira”, “Dupla via láctea”, “Esquecimento” e “Rir!”.
Samurai
Bashô, a lágrima do peixe, também de 1983, deu sequência ao trabalho do biógrafo. Mais um poeta, só que desta vez um japonês, ex-samurai, do século 17. Matsuó Bashô (o nome, ensina Leminski, quer dizer bananeira) viveu até os 23 anos a serviço de seu senhor, que, depois de alcançar a iluminação, libera seus samurais. Bashô cai na estrada. Daí em diante, o biógrafo procura entender como o jovem rônin se tornou o maior poeta japonês. Como pouco se sabe do homem, Leminski mergulha na poesia.
E não pode haver melhor introdução à cultura japonesa e ao haikai do que o pequeno ensaio do poeta. Ele sintetiza a ética dos samurais, explica o caminhos das diversas artes que levam ao conhecimento, apresenta a rica tradição dos poetas japoneses, se aproxima do budismo, do zen, do paradoxal exercício do koan, revela o sentido profundo do teatro nô. Tudo para criar uma atmosfera em que a poesia e a vida de Bashô ganhem sentido para o leitor.
Mais uma vez o biógrafo deixa de lado o rigor da cronologia para propor comparações ricas. Entram em cena os filósofos romanos, Goethe e até Euclides da Cunha, que tem seu Os sertões traduzido para a linguagem poética do haikai: “A terra/ o homem/ a luta”. O grande esforço do livro é dar ao leitor a experiência da poesia. Leminski procura afastar com a mão os rigores do cartesianismo para pôr em seu lugar a consagração do instante.
Rico em informações e sacadas, Bashô, o olho do peixe é também aproximação à poesia do próprio Leminski e de seu método de leitura. Assim como seu mestre, o poeta de Curitiba transformou os momentos mais banais em uma forma de exercício espiritual, um caminho para a iluminação.
Profeta
Depois de um poeta negro e um samurai retirante, chega a vez de um profeta judeu. Jesus a. C., lançado em 1984, é lido como um signo e como um homem. O signo permite interpretar os vários sinais que são lançados ao vento, o homem manda para escanteio os mitos e devoções. O Jesus de Leminski é gente como a gente e merece o que um poeta tem de melhor a dar: uma leitura lírica.
O biógrafo sintetiza as raízes da história do Oriente Médio, passeia pela babel de línguas e histórias, analisa os modelos literários das parábolas até chegar ao que interessa: a voz dos profetas e, entre elas, a de Jesus. Como quem desenrola pergaminhos, Leminski responde perguntas que evitamos fazer sobre uma tradição que fingimos conhecer. Fala dos fariseus, da lei mosaica, da raízes judaicas de JC.
Mas o que instiga o biógrafo é o que chama de “escritura crística”. O poeta nos apresenta os recursos retóricos do despistamento, da revelação e da epifania. Mostra como um texto pode ser objeto de idolatria e apresenta as astúcias da cabala. No mais polêmico capítulo de seu livro, mostra o lado masculino e feminino de Jesus e de sua tendência para “namorar” as mulheres à sua volta. Do sexo à política, o profeta é tratado como jacobino, e, em mais uma das comparações extemporâneas do biógrafo, é colocado ao lado de Robespierre. E Leminski confessa que se estranha em não ver Jesus alinhado entre os mais radicais dos socialistas. “O programa de Jesus é uma utopia”, resume.
Revolucionário
Dando sequência à inspiração política, o quatro e último livro de Leminski reunido em Vida é Trótski, a paixão segundo a revolução, de 1986. Trabalho que exigiu maior dedicação do poeta, a biografia se preocupa em entender a alma russa (a partir da chave dostoieviskiana de Os irmãos karamázov), a história da região e os complexos movimentos políticos que se dão entre o fim do século 19 e primeira metade do século 20.
Não se entende Trótski sem o movimento comunista, a revolução de outubro, a ação de Lênin, a luta contra Stálin. Mas Leminski mostra que, ao lado da política, a biografia do revolucionário foi também feita a partir sua sensibilidade para a cultura. Sem falar do grande momento dramático da vida de Trótski, de líder da maior revolução da história de seu tempo a proscrito e renegado, expulso do país que ajudou a criar.
Como artista e ligado às vanguardas, Leminski termina seu livro sobre Trótski com reflexões sobre a arte e política, acerca da poesia de Maiakóvski, sobre realismo socialista e arte revolucionária. Homem de cultura, o revolucionário estava atento aos movimentos de seu tempo, do futurismo ao surrealismo. Certo dos descaminhos da política, morreu com a crença de que a arte era a maior aliada da revolução. Leminski assinaria em baixo.
VIDA
. De Paulo Leminski
. Editora Companhia das Letras, 390 páginas, R$ 46
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