sábado, 5 de outubro de 2013

João Paulo - Imprensa de efeito moral‏

Estado de Minas: 05/10/2013 



Cobertura de manifestação na Praça Sete pela Mídia Ninja: outro olhar? (Mídia Ninja/Divulgação)
Cobertura de manifestação na Praça Sete pela Mídia Ninja: outro olhar?

Falar da imprensa é sempre um campo minado. As críticas caminham na lâmina de uma adaga: de um lado a acusação paranoica do golpismo; de outro o risco permanente da censura. O que deveria ser um alerta para a inteligência acaba se tornando, no entanto, a impossibilidade do debate. Para alguns, não há saída com o modelo de jornalismo vigente; para outros, sem ele nada vale a pena quando se preza a democracia. Mesmo assim, o mal-estar parece permear o cenário. Os leitores já não confiam tanto nos jornais. Mas seguem precisando, cada vez mais, de informação de qualidade para tomar suas decisões.

É por isso que é necessário sempre manter o acicate da desconfiança em funcionamento. O bom jornalismo, que é uma criação da sociedade, não dos meios de comunicação, continua sendo uma das garantias de liberdade e crítica nas sociedades contemporâneas. E é em nome dele que é preciso entender tanto os limites do modelo tradicional – que parece mergulhar numa crise econômica e de valores – quanto a transformação surgida em razão das novas tecnologias e da multiplicação dos polos de enunciação do discurso social. Há uma questão devida à aceleração da técnica que se tornou metáfora social: não precisamos mais esperar o jornal do dia seguinte para começar a viver.

Alguns fatos recentes e seu tratamento pelos meios de comunicação acendem a luz de alerta. A tendência à espetacularização do mundo, que Guy Debord dissecou em seu A sociedade do espetáculo, transforma tudo em imagens. Não se trata apenas de uma forma de simplificação do mundo, mas está em marcha uma operação nitidamente interessada: a criação de padrões que valorizam mais a representação do que a vida. O livro, de 1967, parece um espelho de nossos dias. Para Debord, assim como na economia há a tendência à acumulação de capital, na vida social se observa uma inclinação à acumulação de imagens. A realidade, despida de sua substância e concretude, se torna uma coleção de imagens. A onipresença dos meios de comunicação, guiados por essa lógica, substitui a realidade pela representação. Vivemos num mundo de sombras animadas.

O que isso significa na prática é um desvio epistemológico, ou, em outras palavras, um esvaziamento do campo do saber em proveito da ideologia. Os jornais em vez de noticiarem a realidade se esforçam para manter a dinâmica do espetáculo, o que atende mais à sensibilidade do que à razão. Num contexto com tal padrão de funcionamento, a verdade é barganhada pelo simulacro. Em tal realidade social, aparecer é o mais importante. O que o “jornalismo” de celebridades dita para o mundo social acaba se tornando padrão para todos os campos da informação, da política à economia, passando pela cultura e esporte. Em todos os campos, as notícias parecem prescindir da realidade, elas cumprem apenas sua dança em torno dos mesmos personagens e valores (quase sempre o dinheiro, o poder e a fama).

Falta de educação A forma como a imprensa vem cobrindo nos últimos meses as manifestações sociais é um bom exemplo dessa fábrica de simulacros. Mesmo com o grande investimento nas coberturas, com dezenas de repórteres e analistas de vários campos do saber, o que parece vingar é mais um efeito prévio de julgamento do que a capacidade de ir às raízes das situações. Ninguém se sente à vontade com o novo, que quase sempre é denegado, como a Mídia Ninja, por exemplo. A grande notícia foi o tumulto, não o que ele aponta. Assim como as forças repressivas possuem suas bombas de efeito moral, o jornalismo parece ter se armado de notícias de efeito moral, que fazem muito barulho e geram pouca inteligência.

A recente greve dos professores do Rio de Janeiro (como ocorreu em outras greves do setor, inclusive em Minas) se torna muito mais um campo de confrontação de corpos do que de ideias. O jornalismo, em vez de caminhar em direção ao urgente tema da melhoria da educação, se basta em noticiar manifestações e suas consequências. Como numa evidência de esquizofrenia política, a mesma imprensa que sempre foi aliada das causas da educação e ajudou a denunciar as condições dramáticas do setor deixa de lado seu patrimônio de esclarecimento social e crítica para assumir uma postura de realismo estrito e evasivo das questões de fundo. A sociedade, caso se informasse apenas pelos meios de comunicação tradicionais, teria apenas que ser contra ou a favor da repressão policial ou das estratégias de ação dos grevistas.

Mais que despolitizar, a cobertura espetacularizada torna as questões políticas em sucedâneos policiais. A mesma operação é visível em outros momentos de confronto social no Brasil e no mundo. Assim, ocupações rurais são vistas como ameaça à propriedade privada, e não como realização política da função social; a luta pelos direitos indígenas é tratada num misto de falsa condescendência (que infantiliza o debate) e decretação de atraso e afronta a interesses econômicos tradicionais; a crise do sistema de saúde é colocada na conta da universalização e dos propósitos mais generosos, e não da oposição do setor privado em defesa de seu negócio. Por outro lado, o desemprego nos países europeus, em vez de demonstrar a crise econômica, é a contraparte punitiva pela falta de radicalismo neoliberal: a culpa, mais uma vez, é das vítimas.

Índios e laranjas Para cada um desses “espetáculos” há vilões, mocinhos e cenas de apelo emocional: destruição de pobres pés de laranja de multinacionais (que ocupam indevidamente terras públicas); médicos cubanos a disputar um mercado de profissionais brasileiros (que não se interessaram por ele nem por seus pacientes); populações indígenas como defensoras de bagres e valores animistas. Voltando a Debord, é importante distinguir de que forma essa vindicação da imagem como elemento de constituição social se realiza entre nós. Para ele, havia duas maneiras de criação do poder a partir do exercício da espetacularização. A primeira era a estratégia concentrada, típica das ditaduras. A segunda, que nos diz respeito, é difusa, e assume a defesa de um modo de vida que se espalha por todos os poros da sociedade, sem que pareça fluir de um núcleo. Nesse padrão de pensamento único, o liberalismo é o nec plus ultra das pessoas responsáveis.

O pensador francês vai além: na plena vigência da sociedade do espetáculo, não é preciso sequer esconder a realidade e seus problemas mais candentes, apenas direcionar o discurso sobre a verdade para as demandas do sentimento. Assim, é possível mostrar que nosso padrão de consumo é inviável, que os salários dos professores são baixos, que a saúde pública está em crise, sem, contudo, atacar o coração do sistema. Os meios de comunicação estariam mais interessados em discutir números e dados, como se tudo não passasse de uma inevitabilidade civilizacional. Há certa convicção alienada nos rumos da história, que se compraz em indulgência política.

Outro setor em que tal lógica opera na mesma pasmaceira é a cobertura das campanhas políticas. Os candidatos já postos para a próxima eleição presidencial e para os governos de estado não precisam se manifestar em torno de projetos para os diversos setores da administração e das políticas públicas. As campanhas se tornaram território da desfaçatez: os jornalistas sabem que os candidatos não são o que apresentam em suas campanhas, mesmo assim analisam seus discursos e estratégias tendo como pano de fundo o resultado eleitoral. Jornalismo de resultados. Ou seja, se tornam peças das próprias estratégias de campanha, testando os balões de ensaio e variando, a cada dia, em torno do mesmo chorrilho de alianças, siglas e projetos pessoais. E, o pior, se acham espertos e bem informados.

O jornalismo de efeito moral gosta de jogar gás de pimenta nos olhos do leitor, acreditando que a turvação da inteligência é permanente. O que ele começa a aprender é que o efeito passa e que há outras fontes de informação. A imprensa séria pode até perder público, mas não pode perder a relevância, sob o risco de deixar o mundo mais pobre. 

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