Lembrando Juan Gelman
Affonso Romano de Sant'Anna
Estado de Minas: 19/01/2014
Mexo em meus guardados e encontro estas anotações feitas em 2000 sobre Juan Gelman, poeta-mártir da ditadura no Cone Sul:
“Esta sua estória é já roteiro para um filme” – disse ao poeta Juan Gelman naquela conversa no aeroporto de Oaxaca (México), ao final do Encontro de Poetas do Mundo Latino.
Triste. Patético filme, é verdade. Mas emblemático daqueles anos de chumbo e sangue em torno de 1960, 1970 e 1980, quando Brasil, Chile, Argentina e Uruguai institucionalizaram a violência ditatorial. Por aí, diz-se, “desapareceram” 30 mil pessoas.
Havia estado com Gelman alguns anos antes em outro festival de poesia, não sei se na Colômbia ou na Costa Rica. Ele já era um personagem não só emblemático, mas trágico e lírico, de nossas ditaduras recentes. Agora, no claustro do convento barroco de São Domingos, no crepúsculo dessa cidade colonial mexicana, diante do público sentado sob os arcos dos corredores, dizíamos poemas. E Gelman, justamente homenageado, revelava que foi a partir de Oaxaca, há um ano, que ganhou força o movimento internacional para localizar e recuperar sua neta, cujos pais foram aniquilados pelos militares argentinos e uruguaios.
No aeroporto, talvez porque sendo o aeroporto espaço de partida e isso lhe possibilitasse breve ou nenhuma resposta, perguntei a Gelman: “E como ficou a estória de sua neta?”. O avião se atrasou e a conversa se prolongou, prolongou-se como só se prolonga nossa perplexidade diante da estupidez humana ou, ao contrário, de nossa alma diante da esperança.
No fim do livro Notas, escrito em 1979, Gelman dizia: “El 26 de agosto de 1976 mi hijo Marcelo Ariel y su mujer Claudia, encinta, fueran secuestrados en Buenos Aires por un comando militar. El hijo de ambos nació y murió en el campo de concentración. Como en decenas de miles de otros casos, la dictadura militar reconoció oficialmente a estos ‘desaparecidos’. Habló de ‘los ausentes para siempre’. Hasta que no vea sus cadávares o a sus asesinos, nunca los daré por muertos”.
Marcelo, o filho de Gelman, foi um dos oito cadávares com um tiro na nuca largados dentro de caixotes e latões cheios de pedra nos arredores de Buenos Aires. Essa insólita mercadoria chamou a atenção de outros setores da repressão e dos próprios coveiros por várias razões. Entre elas, porque um dos cadáveres era o de uma mulher grávida. E esta, em vez de um tiro na nuca, levara um tiro no ventre.
Os coveiros, mesmo acostumados às variantes da morte, não esqueceram aquilo. E quando, anos depois, iniciaram-se as investigações, puderam indicar onde os corpos estavam clandestinamente sepultados. Gelman, então, narra que foi fundamental a colaboração da memória de vizinhos, de ex-terroristas e até mesmo de alguns considerados traidores para que se retraçasse o percurso da fatalidade. Um verdadeiro quebra-cabeças, ao melhor estilo romanesco policial. Por isso falei de roteiro cinematográfico, aludindo a como foram se aglutinando informações, por exemplo, de prisioneiros que ouviam o choro de um bebê na cela ao lado, a data em que isso ocorreu, a passagem por ali da nora de Gelman até os recentes exames de DNA, que confirmaram tudo.
O policial que adotou a recém-nascida morreu há pouco. Sua esposa não teve filhos e, aos 48 anos, recebeu aquele presente dos céus. Ou do inferno. Pergunto, então, já convertido em repórter, sobre essa mulher que adotou a garota. Ela entendeu a nova situação melhor do que se esperava. Desenvolveu-se entre ela e a segunda mulher de Gelman, a psicanalista Mara, uma relação de confiança. Pergunto pela menina, hoje uma jovem de 23 anos. Não deve ser fácil, a essa altura da vida, levar um solavanco desses. Não apenas pelo fato em si, já desestabilizador, mas porque seu avô é uma personalidade internacional e o fato extrapolou os limites domésticos.
Leio um poema de Gelman chamado “La economia es una ciencia”:
“ En el decenio que siguió a la crisis/ se notó la declinación del coeficiente de ternura/ en todos los países considerados/ o sea/ tu país/ mi país/ los países que crecían entre tu alma e mi alma de repente”.
Affonso Romano de Sant'Anna
Estado de Minas: 19/01/2014
O poeta Juan Gelman e a neta, Macarena |
“Esta sua estória é já roteiro para um filme” – disse ao poeta Juan Gelman naquela conversa no aeroporto de Oaxaca (México), ao final do Encontro de Poetas do Mundo Latino.
Triste. Patético filme, é verdade. Mas emblemático daqueles anos de chumbo e sangue em torno de 1960, 1970 e 1980, quando Brasil, Chile, Argentina e Uruguai institucionalizaram a violência ditatorial. Por aí, diz-se, “desapareceram” 30 mil pessoas.
Havia estado com Gelman alguns anos antes em outro festival de poesia, não sei se na Colômbia ou na Costa Rica. Ele já era um personagem não só emblemático, mas trágico e lírico, de nossas ditaduras recentes. Agora, no claustro do convento barroco de São Domingos, no crepúsculo dessa cidade colonial mexicana, diante do público sentado sob os arcos dos corredores, dizíamos poemas. E Gelman, justamente homenageado, revelava que foi a partir de Oaxaca, há um ano, que ganhou força o movimento internacional para localizar e recuperar sua neta, cujos pais foram aniquilados pelos militares argentinos e uruguaios.
No aeroporto, talvez porque sendo o aeroporto espaço de partida e isso lhe possibilitasse breve ou nenhuma resposta, perguntei a Gelman: “E como ficou a estória de sua neta?”. O avião se atrasou e a conversa se prolongou, prolongou-se como só se prolonga nossa perplexidade diante da estupidez humana ou, ao contrário, de nossa alma diante da esperança.
No fim do livro Notas, escrito em 1979, Gelman dizia: “El 26 de agosto de 1976 mi hijo Marcelo Ariel y su mujer Claudia, encinta, fueran secuestrados en Buenos Aires por un comando militar. El hijo de ambos nació y murió en el campo de concentración. Como en decenas de miles de otros casos, la dictadura militar reconoció oficialmente a estos ‘desaparecidos’. Habló de ‘los ausentes para siempre’. Hasta que no vea sus cadávares o a sus asesinos, nunca los daré por muertos”.
Marcelo, o filho de Gelman, foi um dos oito cadávares com um tiro na nuca largados dentro de caixotes e latões cheios de pedra nos arredores de Buenos Aires. Essa insólita mercadoria chamou a atenção de outros setores da repressão e dos próprios coveiros por várias razões. Entre elas, porque um dos cadáveres era o de uma mulher grávida. E esta, em vez de um tiro na nuca, levara um tiro no ventre.
Os coveiros, mesmo acostumados às variantes da morte, não esqueceram aquilo. E quando, anos depois, iniciaram-se as investigações, puderam indicar onde os corpos estavam clandestinamente sepultados. Gelman, então, narra que foi fundamental a colaboração da memória de vizinhos, de ex-terroristas e até mesmo de alguns considerados traidores para que se retraçasse o percurso da fatalidade. Um verdadeiro quebra-cabeças, ao melhor estilo romanesco policial. Por isso falei de roteiro cinematográfico, aludindo a como foram se aglutinando informações, por exemplo, de prisioneiros que ouviam o choro de um bebê na cela ao lado, a data em que isso ocorreu, a passagem por ali da nora de Gelman até os recentes exames de DNA, que confirmaram tudo.
O policial que adotou a recém-nascida morreu há pouco. Sua esposa não teve filhos e, aos 48 anos, recebeu aquele presente dos céus. Ou do inferno. Pergunto, então, já convertido em repórter, sobre essa mulher que adotou a garota. Ela entendeu a nova situação melhor do que se esperava. Desenvolveu-se entre ela e a segunda mulher de Gelman, a psicanalista Mara, uma relação de confiança. Pergunto pela menina, hoje uma jovem de 23 anos. Não deve ser fácil, a essa altura da vida, levar um solavanco desses. Não apenas pelo fato em si, já desestabilizador, mas porque seu avô é uma personalidade internacional e o fato extrapolou os limites domésticos.
Leio um poema de Gelman chamado “La economia es una ciencia”:
“ En el decenio que siguió a la crisis/ se notó la declinación del coeficiente de ternura/ en todos los países considerados/ o sea/ tu país/ mi país/ los países que crecían entre tu alma e mi alma de repente”.
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