Zero Hora - 23/02/2014
Através do artigo de Antônio Goulart, Literatura Enganosa?, publicado na
Zero Hora de 08/02, fiquei sabendo de uma opinião que o escritor
norte-americano Ben Greenman tem alardeado: a de que a literatura de
ficção não deveria se basear em fatos reais, sob pena de estar enganando
o leitor. Segundo ele, ficção é uma prosa que trata sobre eventos e
pessoas imaginárias, e fim de papo. Greenman resolveu processar
escritores e editoras que não cumprem essa definição básica.
Só pode ser brincadeira. Em tudo – e em todos – há uma porcentagem
de invenção. Inventamos não só o nosso amor, mas inclusive a nossa dor.
Somos seres perplexos tentando encontrar nosso lugar no universo e
procurando viver de um jeito civilizado e sensato, o que exige alguma
elaboração intelectual. Usar apenas o instinto nos conduziria à
selvageria. Temos que nos narrar – para os outros e para nós mesmos – a
fim de sermos compreendidos. Quando eu conto algo que aconteceu comigo
para uma amiga, estou criando uma história, é a minha versão daquele
fato, é a maneira que encontrei de expressar o que vivi. Tivesse
acontecido a mesmíssima coisa com outra pessoa, seria contada de forma e
intensidade diferentes.
Somos todos escritores, só que uns escrevem e outros não, já dizia José Saramago.
Assim como pessoas reais podem experimentar emoções fantasiosas, o
inverso se dá na literatura: tudo o que parece inventado flerta com a
verdade. É ingenuidade acreditar que um personagem de romance possa ser
totalmente fictício, sem considerar a bagagem psicológica de quem o
criou, sem levar em conta a pulsão interna que estimulou o escritor a
dedicar-se dias, meses ou até anos àquele projeto. Ele não está
escrevendo sobre ele mesmo em sentido literal, seus personagens não são
autobiográficos por definição, mas é claro que quem escreve se revela de
alguma forma, velada ou nem tanto.
“Madame Bovary sou eu”, dizia Flaubert. Então não era ficção? Ora.
Em defesa de Ben Greenman, reconheço que os livros andam bastante
umbilicais, reflexo de um mundo voltado para o próprio ego. Nenhum crime
nisso. Dramas intimistas possuem o mesmo valor artístico das aventuras
de suspense, das sagas épicas, das ficções científicas,
independentemente de serem inspirados por algo que aconteceu. O leitor
não deve se preocupar com essa ligação, e sim entregar-se ao livro sem
dar a mínima para o escritor.
O que interessa é se o livro é bom ou ruim. O conteúdo fala por si. O
escritor é apenas um ser obscuro que dá entrevistas para divulgar seu
ofício, mas sua vida privada não importa nada. O que importa é o
resultado de suas fantasias, sejam elas totalmente inventadas ou
inventadas mais ou menos ou descaradamente inspiradas no que ele pensa
que foi real.
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