A Copa e seu legado
Nem salvador da pátria nem responsável por todos os problemas, torneio evidencia nossos limites reais. O futebol, entre as exigências do alto rendimento e mercantilização excessiva, pode ser a maior vítima
Rubens Goyatá Campante
Estado de Minas 14/06/2014
‘‘A Copa do Mundo de futebol de 2014 deixará para este país um legado que irá muito além dos estádios de futebol, um legado de infraestrutura e bem-estar para a população”, afirmou, em 2011, o então ministro dos Esportes Orlando Silva. Quatro anos antes, em 2007, em discurso em Zurique, Suíça, na cerimônia oficial de anúncio do Brasil como sede da Copa de 2014, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou: “Realizar uma Copa do Mundo é uma tarefa imensa, (mas) essa não é uma responsabilidade apenas do atual presidente – que já não serei mais em 2014. No fundo, estamos aqui assumindo uma responsabilidade enquanto nação, enquanto Estado brasileiro”. E prometeu que, além dos jogos, dos estádios, das belezas naturais, o que mais empolgaria na Copa seria “o comportamento extraordinário do povo brasileiro”, pois “o futebol não é para nós apenas um esporte, é mais, é uma paixão nacional”
Iniciada a tão esperada e discutida Copa do Mundo, a questão é: haverá o prometido legado social e econômico positivo?. E a propalada “paixão pelo futebol” dos brasileiros trará o anunciado “comportamento exemplar” do povo? Lança dúvidas sobre isso a lembrança viva da onda de manifestações que varreu o país em junho do ano passado, durante a Copa das Confederações, tendo como um dos motes justamente o descontentamento com a maneira como o evento foi organizado – paira, ainda, a dúvida se tais manifestações se repetirão, com a mesma dimensão do ano passado.
Quanto ao legado da Copa, é difícil mensurar com precisão seus ganhos econômicos e sociais. Os custos e benefícios de uma Copa do Mundo de futebol comportam variáveis complexas e perspectivas e modos de avaliação diversos. Mas é indubitável que, nos últimos anos, tem crescido o investimento em custos e organização de um megaevento como este, e é de se notar que, de 2010 para cá, as Copas não se realizam mais em países ricos, desenvolvidos, mas naqueles em desenvolvimento – 2010 na África do Sul, 2014 no Brasil, 2018 na Rússia, e 2022 no Catar. E já foi decidido que a Eurocopa de 2020 não será sediada em um só país, mas será disputada em 13 deles – é certo que conta para isso a geografia da Europa, um continente de dimensões mais reduzidas comparativamente a outros.
Mesmo com essa demanda crescente de investimentos maciços, a tendência é que estudos e projeções prévios ao evento e de governos e grupos econômicos interessados no mesmo tendam a superestimar as benesses sociais e econômicas (antecipação e aceleração de investimentos em infraestrutura de transporte, turismo, telecomunicações, segurança, geração de empregos) e a menosprezar eventuais dificuldades como a gestão deficiente, as relações promíscuas entre as esferas pública e privada, o desvio de investimentos públicos de áreas mais carentes, a desnecessidade e obsolescência de certas obras em estádios e transportes, entre outros. Ou seja, tentam apresentar a Copa do Mundo como um divisor de águas no encaminhamento positivo do desenvolvimento de um país.
Como regra geral, o impacto social e econômico de uma Copa – ou de uma Olimpíada – será mais positivo quanto mais os investimentos concentrarem-se em obras de infraestrutura e renovação urbana, e menos em estádios, e tais obras devem se pautar pelas reais necessidades – a longo prazo e não somente na época do evento – da economia e da sociedade locais e regionais. A Olimpíada de Barcelona, em 1992, foi o grande paradigma nesse sentido: apenas 9% do investimento destinou-se a instalações esportivas. O restante foi encaminhado a melhorias urbanas que renovaram a metrópole catalã. Além disso, é crucial que haja uma alta capacidade de gestão e articulação dos investimentos, públicos e privados, para se evitar o desperdício e a corrupção.
No Brasil, segundo dados oficiais, mais de 30% do dinheiro (R$ 8 bilhões dos cerca de R$ 25,6 bilhões totais) foi gasto em estádios, inclusive dinheiro público – R$ 3,9 bilhões. E a articulação entre si dos poderes públicos federal, estadual e municipal (os dois últimos os principais responsáveis pela questão da infraestrutura e mobilidade urbana) e entre estes e a iniciativa privada foi marcada por problemas típicos e recorrentes da economia e da política brasileiras: excesso de burocracia, incompetência, privilégio de interesses privados em detrimento do interesse público. Além disso, houve violações dos direitos de famílias removidas para construção de obras de mobilidade e em estádios, e condescendência excessiva nas concessões e monopólios comerciais exigidos pela Fifa, entidade privada organizadora e, sem dúvida, maior beneficiária do evento. Tais concessões contrariaram, em vários pontos, direitos legalmente sedimentados dos trabalhadores e dos consumidores brasileiros.
Se não houvesse tais problemas, a Copa seria, como prometido, um divisor de águas no desenvolvimento social e econômico brasileiro? Para responder, tomemos a questão crucial dos transportes e da mobilidade urbana. Os problemas e distorções da infraestrutura neste âmbito são algo imenso, resultado de décadas de políticas de Estado que privilegiaram a matriz do transporte privado, rodoviário, automobilístico, em detrimento do transporte público e hidroferroviário. Some-se a isso um modelo urbano também privatista, formador de metrópoles que concentram, em suas periferias, populações carentes, e o resultado é que “mobilidade urbana” virou termo da moda porque as cidades brasileiras estão, literalmente, parando, entulhadas de automóveis e motocicletas. Isso sem contar os danos que a economia sofre ao ter a maior parte de sua produção (cerca de 70%) sendo transportada basicamente por caminhões, não raro por estradas ruins ou péssimas.
Já o turismo brasileiro, ao qual a Copa trouxe tantas promessas, certamente receberá um bom aporte durante estas quatro semanas do evento, mas, a longo prazo e de forma sistêmica, dificilmente irá deslanchar com esses gargalos na estrutura de transporte. Um relatório recente sobre competitividade no setor, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, coloca o Brasil em 51º lugar num rol de 140 países. É que, apesar das belezas naturais, da biodiversidade, da pujança e do patrimônio culturais, a qualidade de nossas estradas, portos, aeroportos e ferrovias, assim como a competitividade de preços e a qualificação da mão de obra, deixam muito a desejar.
Uma Copa do Mundo bem gerida poderia, sim, ter um papel importante na resolução de tais problemas, mas não seria ela, por mais importante e bem organizada que fosse, o carro-chefe, a causa principal. Uma Copa do Mundo de futebol não é, em si, panaceia. O fundamental é um projeto de Estado e de país que vise, realmente, ao interesse público e não aos benefícios privados e, dessa forma, responda realmente às carências da sociedade. No bojo desse projeto de Estado é que um evento como a Copa do Mundo deixaria um legado realmente positivo.
Social e cultural Mas se a Copa não é solução de todos os problemas, também não é a fonte de todos eles, como tentam fazer crer alguns. O discurso de que faltarão dinheiro e atenção para a saúde, a educação, segurança e outras obrigações do poder público federal, estadual e municipal, por conta dos investimentos na Copa, é ridículo. Tais obrigações demandam, além de um esforço sistemático e contínuo de organização do Estado, dezenas, centenas de bilhões de reais, muito mais do que foi gasto na preparação do torneio. Ou seja, o legado social e econômico da Copa é algo importante, sem dúvida, mas não é uma questão de vida ou morte para o país.
Alguns veem, entretanto, uma espécie de “legado cultural” traduzido no arrefecimento da “paixão nacional” pelo futebol, comprometida, segundo esse entendimento, pelo descontentamento com a Copa. Mesmo que, nos últimos dias, tenha aumentado o número de bandeiras nos automóveis e nas casas, de ruas enfeitadas etc., há, realmente, certa frieza em comparação aos campeonatos mundiais anteriores, em que a paixão pelo futebol se misturava com o orgulho nacional e o país mergulhava num frisson na esperança de ver a Seleção ganhar mais um título. Agora, essa frieza ocorre justamente quando o campeonato é disputado aqui – ou, quem sabe, exatamente por isso.
Não se deve confundir, contudo, esse distanciamento em relação à Copa – que pode, inclusive, se esfumar com o correr dos acontecimentos – com uma diminuição do gosto brasileiro pelo futebol.
O futebol brasileiro enfrenta ameaças sérias, algumas gerais, estruturais, atinentes ao esporte em nível mundial. A primeira é o perigo de o futebol se aproximar demasiadamente dos chamados “esportes de alto rendimento”, em que o cientificismo, a especialização, a importância da preparação técnica na busca constante da superação a qualquer custo retiram os elementos lúdicos e imprevisíveis do futebol que fazem dele o esporte mais atraente e mais bonito de todos, pois o mais parecido com a vida. A importância irreversível do condicionamento físico no futebol é sintoma desta aproximação – não retirou dele, ainda, a importância da técnica e do talento individual, mas foi fundamental para seu nivelamento.
A segunda ameaça é a dos rumos apontados por sua mercantilização. A mercantilização de algo tão atraente como o futebol é inevitável sob um sistema capitalista e não seria, em si, problema se ocorresse dentro de regras e princípios de lisura e honestidade. Mas o universo futebolístico tem convivido, cada vez mais, com esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, compra de resultados, extorsões. O desafio ético do negócio do futebol é o mesmo dos negócios do moderno capitalismo em geral.
Mas há, além disso, problemas específicos do futebol brasileiro. É lugar-comum dizer que o futebol reflete a sociedade – por ser lugar-comum não deixa de ser verdade. E nosso futebol reflete nossa sociedade na tensa combinação entre a excelência do elemento humano, individual, e a péssima institucionalidade. O nível dos jogadores, e do jogo em si, continua bom, mas a organização que circunda nosso futebol é sofrível. O resultado é que temos, com raras e honrosas exceções, clubes falidos, campeonatos desorganizados, aumento da violência, mídia conivente, ídolos autorreferentes e, sobretudo, dirigentes de péssimo nível, amadores e incompetentes, na melhor das hipóteses, quando não francamente corruptos e reacionários.
Mas talvez o futebol brasileiro seja, como já disse o escritor sobre nosso povo, antes de tudo um forte. Tem resistido a essas ameaças gerais e específicas e, certamente, resistirá ao eventual desencanto – justo ou não – com esta Copa do Mundo. Resta-nos, portanto, prestigiá-lo e torcer por nossa Seleção, sabendo que isso não significa aceitar injustiças, desmandos e manipulações.
Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT – 3ª Região.
Nem salvador da pátria nem responsável por todos os problemas, torneio evidencia nossos limites reais. O futebol, entre as exigências do alto rendimento e mercantilização excessiva, pode ser a maior vítima
Rubens Goyatá Campante
Estado de Minas 14/06/2014
Arena Corinthians, em São Paulo: obra necessária para o esporte brasileiro ou pauta afetiva para agradar à torcida do Coringão? |
‘‘A Copa do Mundo de futebol de 2014 deixará para este país um legado que irá muito além dos estádios de futebol, um legado de infraestrutura e bem-estar para a população”, afirmou, em 2011, o então ministro dos Esportes Orlando Silva. Quatro anos antes, em 2007, em discurso em Zurique, Suíça, na cerimônia oficial de anúncio do Brasil como sede da Copa de 2014, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou: “Realizar uma Copa do Mundo é uma tarefa imensa, (mas) essa não é uma responsabilidade apenas do atual presidente – que já não serei mais em 2014. No fundo, estamos aqui assumindo uma responsabilidade enquanto nação, enquanto Estado brasileiro”. E prometeu que, além dos jogos, dos estádios, das belezas naturais, o que mais empolgaria na Copa seria “o comportamento extraordinário do povo brasileiro”, pois “o futebol não é para nós apenas um esporte, é mais, é uma paixão nacional”
Iniciada a tão esperada e discutida Copa do Mundo, a questão é: haverá o prometido legado social e econômico positivo?. E a propalada “paixão pelo futebol” dos brasileiros trará o anunciado “comportamento exemplar” do povo? Lança dúvidas sobre isso a lembrança viva da onda de manifestações que varreu o país em junho do ano passado, durante a Copa das Confederações, tendo como um dos motes justamente o descontentamento com a maneira como o evento foi organizado – paira, ainda, a dúvida se tais manifestações se repetirão, com a mesma dimensão do ano passado.
Quanto ao legado da Copa, é difícil mensurar com precisão seus ganhos econômicos e sociais. Os custos e benefícios de uma Copa do Mundo de futebol comportam variáveis complexas e perspectivas e modos de avaliação diversos. Mas é indubitável que, nos últimos anos, tem crescido o investimento em custos e organização de um megaevento como este, e é de se notar que, de 2010 para cá, as Copas não se realizam mais em países ricos, desenvolvidos, mas naqueles em desenvolvimento – 2010 na África do Sul, 2014 no Brasil, 2018 na Rússia, e 2022 no Catar. E já foi decidido que a Eurocopa de 2020 não será sediada em um só país, mas será disputada em 13 deles – é certo que conta para isso a geografia da Europa, um continente de dimensões mais reduzidas comparativamente a outros.
Mesmo com essa demanda crescente de investimentos maciços, a tendência é que estudos e projeções prévios ao evento e de governos e grupos econômicos interessados no mesmo tendam a superestimar as benesses sociais e econômicas (antecipação e aceleração de investimentos em infraestrutura de transporte, turismo, telecomunicações, segurança, geração de empregos) e a menosprezar eventuais dificuldades como a gestão deficiente, as relações promíscuas entre as esferas pública e privada, o desvio de investimentos públicos de áreas mais carentes, a desnecessidade e obsolescência de certas obras em estádios e transportes, entre outros. Ou seja, tentam apresentar a Copa do Mundo como um divisor de águas no encaminhamento positivo do desenvolvimento de um país.
Como regra geral, o impacto social e econômico de uma Copa – ou de uma Olimpíada – será mais positivo quanto mais os investimentos concentrarem-se em obras de infraestrutura e renovação urbana, e menos em estádios, e tais obras devem se pautar pelas reais necessidades – a longo prazo e não somente na época do evento – da economia e da sociedade locais e regionais. A Olimpíada de Barcelona, em 1992, foi o grande paradigma nesse sentido: apenas 9% do investimento destinou-se a instalações esportivas. O restante foi encaminhado a melhorias urbanas que renovaram a metrópole catalã. Além disso, é crucial que haja uma alta capacidade de gestão e articulação dos investimentos, públicos e privados, para se evitar o desperdício e a corrupção.
No Brasil, segundo dados oficiais, mais de 30% do dinheiro (R$ 8 bilhões dos cerca de R$ 25,6 bilhões totais) foi gasto em estádios, inclusive dinheiro público – R$ 3,9 bilhões. E a articulação entre si dos poderes públicos federal, estadual e municipal (os dois últimos os principais responsáveis pela questão da infraestrutura e mobilidade urbana) e entre estes e a iniciativa privada foi marcada por problemas típicos e recorrentes da economia e da política brasileiras: excesso de burocracia, incompetência, privilégio de interesses privados em detrimento do interesse público. Além disso, houve violações dos direitos de famílias removidas para construção de obras de mobilidade e em estádios, e condescendência excessiva nas concessões e monopólios comerciais exigidos pela Fifa, entidade privada organizadora e, sem dúvida, maior beneficiária do evento. Tais concessões contrariaram, em vários pontos, direitos legalmente sedimentados dos trabalhadores e dos consumidores brasileiros.
Se não houvesse tais problemas, a Copa seria, como prometido, um divisor de águas no desenvolvimento social e econômico brasileiro? Para responder, tomemos a questão crucial dos transportes e da mobilidade urbana. Os problemas e distorções da infraestrutura neste âmbito são algo imenso, resultado de décadas de políticas de Estado que privilegiaram a matriz do transporte privado, rodoviário, automobilístico, em detrimento do transporte público e hidroferroviário. Some-se a isso um modelo urbano também privatista, formador de metrópoles que concentram, em suas periferias, populações carentes, e o resultado é que “mobilidade urbana” virou termo da moda porque as cidades brasileiras estão, literalmente, parando, entulhadas de automóveis e motocicletas. Isso sem contar os danos que a economia sofre ao ter a maior parte de sua produção (cerca de 70%) sendo transportada basicamente por caminhões, não raro por estradas ruins ou péssimas.
Já o turismo brasileiro, ao qual a Copa trouxe tantas promessas, certamente receberá um bom aporte durante estas quatro semanas do evento, mas, a longo prazo e de forma sistêmica, dificilmente irá deslanchar com esses gargalos na estrutura de transporte. Um relatório recente sobre competitividade no setor, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, coloca o Brasil em 51º lugar num rol de 140 países. É que, apesar das belezas naturais, da biodiversidade, da pujança e do patrimônio culturais, a qualidade de nossas estradas, portos, aeroportos e ferrovias, assim como a competitividade de preços e a qualificação da mão de obra, deixam muito a desejar.
Uma Copa do Mundo bem gerida poderia, sim, ter um papel importante na resolução de tais problemas, mas não seria ela, por mais importante e bem organizada que fosse, o carro-chefe, a causa principal. Uma Copa do Mundo de futebol não é, em si, panaceia. O fundamental é um projeto de Estado e de país que vise, realmente, ao interesse público e não aos benefícios privados e, dessa forma, responda realmente às carências da sociedade. No bojo desse projeto de Estado é que um evento como a Copa do Mundo deixaria um legado realmente positivo.
Social e cultural Mas se a Copa não é solução de todos os problemas, também não é a fonte de todos eles, como tentam fazer crer alguns. O discurso de que faltarão dinheiro e atenção para a saúde, a educação, segurança e outras obrigações do poder público federal, estadual e municipal, por conta dos investimentos na Copa, é ridículo. Tais obrigações demandam, além de um esforço sistemático e contínuo de organização do Estado, dezenas, centenas de bilhões de reais, muito mais do que foi gasto na preparação do torneio. Ou seja, o legado social e econômico da Copa é algo importante, sem dúvida, mas não é uma questão de vida ou morte para o país.
Alguns veem, entretanto, uma espécie de “legado cultural” traduzido no arrefecimento da “paixão nacional” pelo futebol, comprometida, segundo esse entendimento, pelo descontentamento com a Copa. Mesmo que, nos últimos dias, tenha aumentado o número de bandeiras nos automóveis e nas casas, de ruas enfeitadas etc., há, realmente, certa frieza em comparação aos campeonatos mundiais anteriores, em que a paixão pelo futebol se misturava com o orgulho nacional e o país mergulhava num frisson na esperança de ver a Seleção ganhar mais um título. Agora, essa frieza ocorre justamente quando o campeonato é disputado aqui – ou, quem sabe, exatamente por isso.
Não se deve confundir, contudo, esse distanciamento em relação à Copa – que pode, inclusive, se esfumar com o correr dos acontecimentos – com uma diminuição do gosto brasileiro pelo futebol.
O futebol brasileiro enfrenta ameaças sérias, algumas gerais, estruturais, atinentes ao esporte em nível mundial. A primeira é o perigo de o futebol se aproximar demasiadamente dos chamados “esportes de alto rendimento”, em que o cientificismo, a especialização, a importância da preparação técnica na busca constante da superação a qualquer custo retiram os elementos lúdicos e imprevisíveis do futebol que fazem dele o esporte mais atraente e mais bonito de todos, pois o mais parecido com a vida. A importância irreversível do condicionamento físico no futebol é sintoma desta aproximação – não retirou dele, ainda, a importância da técnica e do talento individual, mas foi fundamental para seu nivelamento.
A segunda ameaça é a dos rumos apontados por sua mercantilização. A mercantilização de algo tão atraente como o futebol é inevitável sob um sistema capitalista e não seria, em si, problema se ocorresse dentro de regras e princípios de lisura e honestidade. Mas o universo futebolístico tem convivido, cada vez mais, com esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, compra de resultados, extorsões. O desafio ético do negócio do futebol é o mesmo dos negócios do moderno capitalismo em geral.
Mas há, além disso, problemas específicos do futebol brasileiro. É lugar-comum dizer que o futebol reflete a sociedade – por ser lugar-comum não deixa de ser verdade. E nosso futebol reflete nossa sociedade na tensa combinação entre a excelência do elemento humano, individual, e a péssima institucionalidade. O nível dos jogadores, e do jogo em si, continua bom, mas a organização que circunda nosso futebol é sofrível. O resultado é que temos, com raras e honrosas exceções, clubes falidos, campeonatos desorganizados, aumento da violência, mídia conivente, ídolos autorreferentes e, sobretudo, dirigentes de péssimo nível, amadores e incompetentes, na melhor das hipóteses, quando não francamente corruptos e reacionários.
Mas talvez o futebol brasileiro seja, como já disse o escritor sobre nosso povo, antes de tudo um forte. Tem resistido a essas ameaças gerais e específicas e, certamente, resistirá ao eventual desencanto – justo ou não – com esta Copa do Mundo. Resta-nos, portanto, prestigiá-lo e torcer por nossa Seleção, sabendo que isso não significa aceitar injustiças, desmandos e manipulações.
Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT – 3ª Região.
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