Novo romance de Luiz Ruffato, Flores artificiais parte do conhecido artifício do livro dentro do livro, para surpreender o leitor com narrativa recheada de boas histórias, que se oferecem entre a ficção e a realidade
André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas 14/06/2014
Autor do já clássico Eles eram muitos cavalos, Ruffato constrói suas tramas com olhar atento ao homem marcado pelos desafios de seu tempo |
Autor do aclamado Eles eram muitos cavalos, o mineiro Luiz Ruffato acaba de lançar, pela Editora Companhia das Letras, Flores artificiais. É um livro dentro de outro livro. As cenas começam a se desenrolar de forma inusitada: Ruffato recebe em sua casa a correspondência de um desconhecido. Trata-se de um manuscrito, uma compilação de memórias que Dório Finetto, funcionário graduado do Banco Mundial, redigiu a partir de suas muitas viagens de trabalho. Como consultor de projetos na área de infraestrutura, Finetto percorreu boa parte do mundo numa sucessão de simpósios, reuniões e congressos. Esperto, dono de uma alma ativa, ele reuniu histórias, muitas histórias.
De Beirute a Havana, passando por Hamburgo, Timor-Leste, Buenos Aires e incontáveis lugares mundo afora, Finetto soube, com sensibilidade única, reconhecer a grandeza de pequenos acontecimentos. Cada pessoa é um sol, com luas e estrelas encarnadas. Em suas andanças, este homem singular, mesmo que por alguns momentos, fez parte da vida dessas pessoas. Em outros, foi protagonista involuntário do drama alheio. Às vezes, assistiu a essas realidades quase como de um periscópio.
Foi a partir dessas observações que Finetto compôs seu Viagens à terra alheia, o manuscrito que mandou ao conterrâneo Luiz Ruffato. E é este livro que Ruffato transformou no romance Flores artificiais. Partindo de um esqueleto ficcional, Ruffato – o autor, e não o personagem do próprio livro – irá embaralhar as fronteiras entre ficção e realidade, sem jamais perder de vista a força literária, que é a grande marca de sua obra.
Fernando Pessoa, no Livro do desassossego, disse: “A minha vida é como se me batessem com ela”, anotou Luiz Ruffato, num bom momento de seu livro, nos finalmentes. O bom poeta Iacyr Anderson Freitas abre a história: “caminho nenhum/ é caminho de volta”. Daí surgem histórias tristes, repletas de idas e vindas, inverossímeis, como a de Robert (Bobby) William Clarke. Daí surge a história de uma mulher fascinante, “magra, mas não muito, cabelos pretos, olhos castanho-esverdeados”, uma professora que transitava cinza num dia a dia banal, sendo feliz dentro de sua mediocridade, que encontra na dança sinais, indícios de um fogo infinito, entre outras aventuras. Luiz Ruffato escreve com domínio, com um prazer que transparece no seu estilo despojado, perto do refinado, mas não menos profundo.
Porque a vida é feita de pedidos e impedimentos. Quando um homem, quando um escritor deixa de ser ele para ser eles, para com todo amor, com todo jeito possível, poder contar plenamente. Só assim. Todo artista, todo bom escritor sofre de luminosidades, sofre de uma lucidez absurda. É o caso de Luiz Ruffato. Estas suas flores artificiais nos levam a enxergar, como se caminhássemos. Ler Ruffato é como chegar perto de si mesmo, é uma espécie de encontro. Todo bom livro tem esse poder de persuasão. Todo bom escritor é também um perfumista. Livro, leitor, escritor, as piores companhias, o melhor bando, a mais perigosa quadrilha, trindade que inicia, pois sem isso não existem outros. Luiz Ruffato sabe como poucos utilizar as armas que inventou.
E este belo escritor ensina que não existem palavras artificiais. Palavra, verbo é dom, de dar e possuir. Luiz Ruffato distribui, como poucos, suas flores líricas. Um escritor, um livro é meio mundo, o leitor completa este carrossel, esta solidão invisível, esse tanto de azuis, que tanto atormentam, que inauguram, poderia dizer céus e mares. É estranho, estranhíssimo, mas escritores gostam de palavras do porte de árvores, tais como arguto, febre, frio, trilhos, sujidades. Cada artista tem as suas fagulhas, os seus periscópios. Somos todos felizes, e nem sequer sabemos dessa farsa maravilhosa. Ruffato ensina suas sutilezas.
Solidão
Ruffato amplia, generoso, sua voz, que reverbera outras vozes. A leitura flui fácil e o leitor acaba se comovendo com os destinos que a vida arma. “Quão irônico é o deus que outros chamam destino…” O leitor torna-se um observador privilegiado. A vida mostra-se é e muito mais que asfalto, terra, caminho e jardim, ela vai para muito além de meros encontros e desencontros. Nesse meio-termo, nesse abismo existe a intransigência e a demanda de almas e corações selvagens por vocação e medo. Essa coisa da “escuridão engolindo as manhãs”. A solidão dos personagens de Flores artificiais se parece com um bicho perigoso que fere e atua, e cumpre exemplarmente sua parte, e cumpre a sua função seguindo a ordem de um acordo firmado sem contratos e assinaturas. Não há negociação possível diante da fúrias das águas dentro dos acontecimentos que forjam perdas e algumas redenções.
Contudo, também existem, não poderia deixar de ser, arrebatamentos, magia, puro movimento. Como no tango. Trata-se da história daquela professora que encontrou um amplo desejo e uma forma luminosa de enxergar a vida por meio da arte. Tango, um par de pássaros dentro de uma solidão a dois, que pode ser fascinante. “Eu contemplava aquele homem e aquela mulher movimentando-se harmoniosos à minha frente e percebia que de alguma maneira eles encontravam-se em outra… outra dimensão… Os corpos estavam ali, compreende?, mas a alma… a alma havia migrado para um espaço sem tempo…”
Por isso, talvez, essa beleza que surge de flores inigualáveis, artificiais, quando não existem previsões de primavera e sementes, quando existe uma música que faz nascer em nós anjos e delícias. Até os bichos gostam de carinho, ainda que venha forrado de distância e plástico. Viver tem lá os seus mistérios. Creio que foi a literatura que inventou a beleza. Por isso, talvez, a importância dos livros físicos, que são carne para fomes saciadas. Literatura é sonho, um outro incêndio: este “presente absoluto”, naqueles “acentos tônicos finais”. Eu nada mais sou do que um misturado de coisas, Luiz Ruffato nada mais é do que uma porção de livros, como Walt Whitman. “Sou contraditório, sou muitos, existem multidões dentro de mim”.
Não parece óbvio. Todo bom livro carrega dentro de suas páginas palavras. Todo bom livro carrega dentro de suas páginas cargas (leves) de um drama único, de todos nós, juntos ou separados. É o ponto de se perguntar: deu certo, em que sentido?. Sim, deu certo, ao ponto de existirem livros, fábulas… e flores artificiais. Uma ideia que existe. A delicadeza às vezes extrapola: aquele que compra, que aceita como simples a existência de flores artificiais, atinge um certo ápice de refinamento e sensibilidade que pode ser ternura. Suspiros que podem, quando muito, significar muita coisa, ou reorganizar, ou implodir, ou salvar muitas coisas, alheias ou próprias, alheias e próprias, sem resignação. Como se fosse, mesmo, um outro tipo de incêndio.
Não é o tempo, é a vida que não para, que nunca parou. Até a mentira pode ser profunda (estão aí os livros e as suas fábulas). Ruffato é dono de uma sabedoria exemplar para ensinamentos: em seu texto, na sua história, ele parte do princípio, viaja pelo meio, e termina no fim (mas fica a saudade de um próximo livro), deixando brechas para continuidades e recomeços.
Luiz Ruffato nasceu em Cataguases, em 1961. Formado em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, publicou vários livros, entre eles a pentalogia Inferno provisório, composta dos romances Mamma, son tanto felice, O mundo inimigo, Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e Domingos sem Deus. Eles eram muito cavalos recebeu o prêmio APCA e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.
FLORES ARTIFICIAIS
. De Luiz Ruffato
. Editora Companhia das Letras, 152 páginas, R$ 34
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