Livro-reportagem sobre o caso do goleiro Bruno mergulha no drama humano e na investigação policial que mobilizou o país
Jefferson da Fonseca Coutin
Estado de Minas 14/06/2014
Pés do ex-goleiro Bruno, durante depoimento no Fórum de Contagem: mentiras e revelações |
Nada de perfumaria. Indefensável – O goleiro Bruno e a história da morte de Eliza Samudio, de Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho, é jornalismo de profundidade, daquele que não se vê nos releases e nas coletivas de imprensa. É a apuração em detalhes, sem a preguiça tão comum das pautas de redes sociais. No livro-reportagem, já em segunda tiragem e rumo ao topo dos mais vendidos, o passo a passo de uma tragédia anunciada. Do estrelato de menino pobre à glória roubada por assassinato, a pauta triste traz à luz algumas das muitas sombras do mundo da bola.
Não é de hoje que a não ficção faz sucesso entre os aficionados por bons livros. A sangue-frio, de Truman Capote (1924-1984), contou a história de uma chacina nos Estados Unidos. O autor chegou a passar um ano entre personagens e vizinhos do endereço do crime, morando no vilarejo, palco da tragédia. Tornou-se um clássico. Uma forma de romance de não ficção, com igual peso na apuração dos fatos, reconstituição da atmosfera e acabamento literário.
No trabalho de imersão do trio de repórteres de Indefensável, no melhor estilo romance policial, personagens em carne e osso e cenários da vida real arrebatam as plateias mais bem informadas. Em cada um dos 10 capítulos, entre um ponto e uma vírgula há algo mais que passou despercebido dos periódicos de plantão. Até mesmo o que já era sabido ganha tratamento diferenciado, com escrita de requinte e estilos que se confundem. Chama a atenção ao longo das mais de 260 páginas a unidade do texto objetivo, cuidadoso e amarrado, com apartes sempre contundentes.
Boas reportagens, de acordo com o talento dos repórteres, podem render bons livros. Temos exemplos no Brasil. Em 1993, Caco Barcelos ganhou projeção internacional com Rota 66, a história da polícia que mata – vencedor do Prêmio Jabuti e de outros tantos na categoria direitos humanos. Em 2004, o jornalista-escritor voltou a vencer o Jabuti com Abusado, o dono do Morro Dona Marta. Nos dois títulos, fruto de excelente trabalho de reportagem, Caco mergulha no submundo de dois temas movediços e continuados no país: ética policial e o tráfico de drogas. Indefensável, com seus autores experimentados profissionais da imprensa, bebe do bom jornalismo investigativo: é para quem não tem medo da notícia.
No elenco de tipos da narrativa de Leslie, Paula e Paulo, mocinhas bisonhas embevecidas de amor e advogados canastrões dispostos a dançar com o vento. Ali, são muitos coadjuvantes a roubar a cena. A amizade cravada na carne e um corpo invisível devorado por cães famintos fazem de Nelson Rodrigues um grandissíssimo amador da vida como ela é no caos da desgraça e do fracasso. Diálogos e frases garimpados de depoimentos aos borbotões para costurar a trama de sequestro e morte que tirou de campo o capitão-astro do Flamengo – hexacampeão brasileiro, na mira de cartolas internacionais.
De ré a mulher apaixonada. Entre tantas particularidades das peças da trama de ascensão, sequestro e morte, o livro-reportagem de Leslie, Paula e Paulo mostra o céu e o inferno de uma figura companheira, mãe dedicada, capaz de quase tudo para ajudar e fazer vencer o grande amor. O amor é piegas. Dayanne Rodrigues do Carmo Souza, absolvida da acusação de sequestro e cárcere privado, é destaque em páginas de paixão, entrega e fé na família – núcleo que batalhou desde menina para construir. Só o romance, os acertos e desacertos, de Bruno e Dayanne daria um filme de final menos infeliz.
“Estava longe de casa, sozinha, sofria calada. Às vezes, Bruno se concentrava no sábado, jogava no domingo e só aparecia na segunda. Perdoei tantas vezes, mas, depois de certo tempo, não aguentei mais”, diz Dayanne em trecho do capítulo dedicado ao surgimento do craque, o “paredão rubro-negro”. Os autores revisitaram Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, para falar do “campinho de grama rala”, tablado para os pés descalços de Bruno, aos 10 anos, “muito magrinho, com cabeça pequena e orelhas de abano”. Quatro anos mais tarde, em 1999, o namoro adolescente: ele, aos 14. Dayanne, com 12.
Foi no município vizinho, pobre de marré deci, que Bruno firmaria amizade para uma vida: Luiz Henrique, o Macarrão. Indefensável seduz. Mesmo com o fim trágico conhecido, o leitor não deve se surpreender se for pego torcendo para outro desfecho. São envolventes as passagens de o goleiro e a mulher, ambos de passado sofrido, juntos, comendo o pão que o diabo amassou pelo sonho de futuro melhor – cúmplices nos trocados para a gasolina em dias de treino no Atlético Mineiro. Por que não um desdobramento de glória para o casal batalhador e os filhos inocentes? A resposta é evidente ao final de descompasso: a vida não é um conto de fadas.
Vítima
Do outro lado da linha, em passagem definitiva pela carreira do “melhor goleiro do Brasil”, a vítima. Em Indefensável, ainda que chamada de “típica ‘maria-chuteira’”, Eliza Samudio é tratada com o respeito que não parece ter encontrado em vida. O livro-reportagem remonta de ponta-cabeça a trajetória da paranaense de Foz do Iguaçu, a partir do seu envolvimento com o ex-capitão do Flamengo. “Aquela noite só passaria a ter contornos dramáticos quase três meses depois, no começo de agosto, quando Eliza confirmou a gravidez”. A mulher estava sentenciada.
Depois de “A vítima”, terceiro capítulo da obra do trio de jornalistas, o ritmo da narrativa é ainda mais cinematográfico, com vários pontos de virada – como ensinou Syd Field, o “guru” dos roteiros em Hollywood, só que na vida real. O sequestro de Eliza e o bebê, assim com o cativeiro e a execução pelas mãos de matador de aluguel, são alinhavados com trabalho admirável de apuração e análise de investigação. Detalhes cruzados, repassados e confirmados por fontes de todos os lados da trama dão conta da “materialidade do fato e a autoria”, expressão tão batida até a leitura da pena dos condenados.
Indefensável trata da sorte de famílias em pedaços, escangalhadas pelo sonho de fama, a qualquer preço, no mundo da bola. Um astro que apagou a própria estrela. Arrebatadora, a obra de Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho traz ainda às páginas em papel off-white sexo, boatos, mentiras e contradições; ameaças e fofocas de presídio; tentativas de assassinato e de suicídio; testemunhas mortas; familiares oportunistas em busca de holofotes e plantel inacreditável de canastrões. Ingredientes para um thriller absurdo de sucesso. Na real, um crime macabro. Lamentável.
INDEFENSÁVEL – o Goleiro Bruno e a História da Morte de Eliza Samudio
. De Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho
. Editora Record, 266 páginas, R$ 32
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