sábado, 14 de junho de 2014

Sem aviso prévio [ Praia do Futuro] - Gracie Santos

Sem aviso prévio
Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, escreve história de amor e descobertas e se inscreve como cinema potente com contornos revolucionários ao tratar a relação homossexual como deve ser, com respeito 
 
Gracie Santos
Estado de Minas 14/06/2014

Os atores Wagner Moura e Jesuíta Barbosa vivem irmãos em conflito no filme de Karim Aïnouz: sensibilidade que emociona e faz pensar   (Coração de Pedra/Divulgação)
Os atores Wagner Moura e Jesuíta Barbosa vivem irmãos em conflito no filme de Karim Aïnouz: sensibilidade que emociona e faz pensar

A polêmica que envolveu os ingressos marcados com o selo de “avisado” em João Pessoa, para quem fosse assistir ao filme Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, merece mais do que as bem-humoradas brincadeiras que circularam pelas redes sociais em defesa do longa. Primeiro, a Cinépolis escorregou, alegando não se tratar de prevenir o público sobre as cenas de homossexualismo masculino, e garantiu que o alerta referia-se à necessidade de apresentação dos documentos para confirmar a meia-entrada. Depois, acabou tratando o caso como isolado e garantiu que não se repetirá. De qualquer jeito, o ocorrido gerou discussões e reações.

Uma coisa é certa: Praia do Futuro, como outras obras da cinematografia recente envolvendo relações homossexuais, veio em momento oportuno. E no caso particular do filme de Karim, a grande sacada é exatamente partir do princípio de que a sociedade está pronta (ou pelo menos deveria estar) para lidar com o fato de duas pessoas do mesmo sexo se apaixonarem e viverem um romance, sem pedir licença, sem precisar de permissão ou aviso prévio. É esse o primeiro grande trunfo do filme, que tem vários outros.

O problema é que ainda que o mundo tenha girado e a humanidade dado muitas voltas, muitos não consigam perceber que “a moral e os bons costumes”, tal como foram desenhados, não cabem mais nas relações atuais. É o conjunto de regras sociais que deve ser revisto e questionado, não a sinopse ou a trama de Praia do Futuro. A sociedade do controle, que aceita (e gosta) de vigiar sem pudores uma casa onde pessoas vazias disputam na TV muita grana para humilhar o outro e serem humilhadas, não quer ser desafiada a enfrentar a realidade. Prefere viver no faz-de-conta. Por essas e outras, é que muita gente queria saber com antecedência que veria cenas de sexo entre um casal gay ou nus masculinos. Ou, mais grave ainda, um dos atores em questão é ninguém menos que Wagner Moura, o eterno capitão Nascimento dos Tropa de elite, símbolo de poder e masculinidade. Logo ele – por que não dizer? –, o herói brasileiro contemporâneo. Assim é que “desavisados” vêm deixando as salas de exibição, perdendo o melhor da festa.

Na contramão de tudo isso, Praia do Futuro aponta para o hoje; o futuro do título é apenas o nome da praia de Fortaleza onde trabalha o salva-vidas interpretado por Wagner Moura (ele sim, ainda bem, deixou seu capitão Nascimento no passado). O personagem não está em conflito com sua sexualidade. Parece bem resolvido e, se não estiver, não é essa a questão fundamental da trama de Karim. O grande conflito de Donato, que move a história, é mais o profissional. Ele tem orgulho de seu trabalho e pela primeira vez foi malsucedido.

Afogado É a perda de um afogado, uma vida que escapa de suas mãos, que o atormenta. E é nesse momento de fragilidade que Donato se envolve com alguém. Ao mesmo tempo em que se sente incapaz para continuar salvando vidas, ele é movido pela paixão (não por acaso pelo homem que era companheiro daquele que “deixou” morrer, elemento que pode – vai entender a psique humana – ter ligação com seu interesse pelo alemão Konrad.). E são exatamente esses dois fatos: a culpa de errar e permitir que uma vida se fosse e essa paixão repentina que injetam energia no lugar em que poderia se instalar a depressão, e que alimentam o salva-vidas em sua busca por si mesmo e pelo novo.

Donato abandona o trabalho e se deixa levar por outro futuro. Tudo isso e muito mais é revelado devagar, que é como o cinema de Karim se desenha, sem pressa, com poucas palavras. O diretor prefere trabalhar com o não dito e com boas interpretações. E também, acima de tudo, com a plasticidade e a força das imagens, de um primor que encanta, embaladas por afinada trilha sonora. A Karim não interessa explicar a quantas anda a relação dos dois amantes um tempo depois. Afinal, podemos nos perguntar (e também imaginar) o que se passou entre eles.

Praia do Futuro tem muitas reticências, pausas que levam à reflexão e à leitura particular da trama. O filme vai ao que interessa, à riqueza de relações verdadeiras, construídas em cima de sentimentos que podem ou não durar, mas que, fundamentalmente, vão deixar marcas e ficar para sempre em algum lugar da vida daquelas pessoas (e nas nossas). Karim escreve sua história simples, mas potente, nas entrelinhas e o filme ganha contornos revolucionários por tratar o amor homossexual como deve, sem amarras e sem a necessidade de ser explicado. Karim não levanta bandeiras, apenas conta história que parece bem real. E talvez seja esse o maior incômodo trazido pelo filme. Afinal, as cenas de sexo são bonitas e, ao contrário do que podem imaginar, não são nada explícitas. São imagens românticas de um casal que se conheceu, apaixonou-se e decidiu viver esse amor que terá lugar especial em suas vidas.

A pergunta que fica é poderosa. Afinal, Donato se perdoou e se encontrou depois do episódio terrível que o marcou profundamente? As pessoas conseguem se perdoar por erros cometidos e se sentem no direito de seguir em frente, tocar a vida e ser felizes? As perdas deixam um buraco que, mesmo não sedimentado, deve pertencer ao passado. Quem não perdoa (o outro e a si mesmo), envelhece, endurece, amarga.

O que claramente se vê em Praia do Futuro é que o mote do filme de Karim não é, como querem pensar alguns, a homossexualidade. O filme não é como telenovelas que procuram discutir (e isso não é demérito) a questão de gênero na sociedade atual. Praia do Futuro não quer saber se o Félix de Mateus Solano pode beijar o companheiro ou se a Marina de Tainá Müller tem o direito de lutar pelo amor de outra mulher. Claro que tais tramas levadas ao ar às 21h são importantes, principalmente quando deixam de lado a visão apenas estereotipada das minorias. Afinal, se todo mundo quer usar o esmalte da Giovana Antonelli, muito mais gente vai ter chance de compreender que ela pode deixar o marido gato para viver outro amor, não é verdade?

Incômodo O que ocorre no filme de Karim, na verdade, e esse é certamente outro incômodo gerado por Praia do Futuro, é que o longa não pede permissão para nada. Parte do princípio de que as pessoas são adultas e vivem no mundo atual. Já compreenderam (e aceitaram) fato inegável do cotidiano: as relações homossexuais são relações como quaisquer outras. Podem ser apenas sexuais; podem também ser românticas; podem também ser bonitas; podem também não ser. Ponto. O que não pode é ter que avisar ao espectador que ele vai assistir a uma história de amor, mas terá que ver dois homens se beijando. Os tempos de censura estão (ou não) enterrados?

Que a censura fique por conta de quem sai da sala de cinema exasperado (não seria bom que essas pessoas se perguntassem o que tanto as incomoda?). Que fique para quem não compreende a poesia de uma história de busca e amor bem contada. Para quem prefere fechar os olhos para ao que ocorre em pleno século 21, nas noites da Praça da Savassi e no mundo, na casa do vizinho ou em sua própria residência, nas novas configurações das famílias. Para pessoas que, independentemente de suas religiões e credos, ainda não conseguiram compreender que não é mais necessário pedir permissão para beijar. As novas gerações (e não as do futuro, mas as de hoje) já escrevem suas histórias de outra forma, ainda que muitos tenham que lutar pela liberdade, exatamente por causa de quem sai no meio da sessão.

É nas histórias escritas hoje que Praia do Futuro se inspira. O filme parte daqui pra frente. Karim evita conversas desnecessárias. Há, é verdade, uma cena em que o irmão provoca Donato, insinuando que ele fugiu do Brasil para viver sua sexualidade escondido da família, na Alemanha. Pode até ser. Afinal, estar num país em que as pessoas não conseguem assistir a um romance que não tenha o “casal margarina” em cena e só aceitem na TV gay estereotipado como mordomo de madame. Será que nos resta pedir licença ao poeta e dizer que a melhor saída é o aeroporto?

Amor Foi o que fez Donato e é o que faz Karim, que roda o mundo com seus filmes. Praia do Futuro é bem maior que as polêmicas que suscitou, que os incômodos que provoca. Trafega ao lado de outros longas importantes da produção recente, que também causaram burburinho: Amor (2013, França, Alemanha, Áustria), de Michael Haneke, e Azul é a cor mais quente (2013, França), de Abdellatif Kechiche. No primeiro, um casal octogenário vive os últimos momentos do que se percebe ter sido uma bela história de amor e cumplicidade. Não há flashbacks que permitam conhecer detalhes do passado dos dois, mas é possível saber, a cada gesto, que eles tiveram como poucos a chance de viver um grande amor e, certamente, fazer seus pactos bons e ruins.

Em Azul é a cor mais quente (que tem tórrida cena de sexo explícito entre duas mulheres, o que é obviamente mais aceito que o envolvimento de dois homens – teve muito marmanjo indo ao cinema ver as atrizes esculturais nuas, sem qualquer incômodo), o casal feminino tem a mesma sorte, encontra o amor. O filme não se limita a abordar as questões de gênero, o preconceito e o bullying que vêm no pacote da opção homossexual. A trama tem interessante discussão sobre até que ponto o amor é capaz de vencer barreiras socioculturais. Independentemente de todos os problemas enfrentados na relação, é possível perceber que a experiência de amor (e não apenas a sexual) vivida por aquelas duas mulheres marcará a vida delas para sempre, da mesma maneira como ocorreu com os octogenários de Amor e com Donato e o alemão Konrad de Praia do Futuro.

Praia do Futuro está em cartaz no Belas 1 às 14h, às 17h40 e 21h30 (Hoje não haverá a última sessão)

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