quarta-feira, 2 de julho de 2014

Gaza em crise: Hamas tem uma voz forte feminina

Gaza em crise: Hamas tem uma voz forte feminina

Isra al-Mudallal é a nova porta-voz franca e determinada do governo do Hamas em Gaza. O objetivo dela é se tornar um modelo para as meninas – mas primeiro ela precisa superar as tradições conservadoras da região.

Dê-me um minuto, disse a mulher de aparência delicada atrás da mesa gigante. Com a mão direita, Isra al-Mudallal tira um tapete de orações da bolsa, e com a esquerda levanta sua filha do chão e a coloca no colo. Ela põe uma folha de papel e giz de cera na frente da criança, beija-a na têmpora e então a primeira porta-voz feminina da organização islâmica Hamas desaparece na sala ao lado para rezar.

Mas eu tenho um compromisso, diz um funcionário de terno cinza da Fundação Friedrich Ebert, uma fundação política alemã de centro-esquerda, enquanto ela passa por ele. "Você terá que esperar", diz Mudallal, e deixa o homem sentado lá em seu escritório no terceiro andar de um prédio alto e poeirento na Cidade de Gaza.

Quando a oração termina e o homem consegue se apresentar, ele fala sobre o ex-chanceler alemão Gerhard Schroeder, que inaugurou o escritório da fundação em Gaza. Ele pergunta se ela sabe que o ministro das Relações Exteriores Frank-Walter Steinmeier tinha feito uma visita recente.

"Interessante", disse Mudallal, com um jeito bem britânico. Seu smartphone vibra. Ela tem 23 anos, usa um blazer azul, uma saia apertada de jersey e óculos de sol Ray-Ban.

Como ela vê a situação atual? Pergunta o homem, agora gaguejando um pouco.

Mudallal levanta as sobrancelhas até a borda de seu hijab. "Estamos no meio de uma crise humanitária aqui desde 2007", diz ela, mas a situação nos últimos meses tem sido catastrófica, principalmente por causa do Egito.

Uma nova reconciliação
Durante o governo de um ano do presidente Mohammed Morsi, o Egito foi um aliado próximo do Hamas, que é um braço da Irmandade Muçulmana. Mas desde o golpe militar, Cairo e o Hamas se tornaram inimigos, e o outro aliado importante do último, o Irã, alienou o Hamas quando a organização ficou do lado dos rebeldes na Síria.

Recentemente, o Hamas isolado teve de fazer concessões. Ele tem impedido que grupos de radicais lancem foguetes em Israel, e há poucas semanas, o grupo se reconciliou com a moderada Fatah, na Cisjordânia. A nomeação de Isra al-Mudallal como porta-voz do governo do Hamas em Gaza foi, igualmente, uma tentativa de os islamitas criarem uma imagem mais amigável.

Isra al-Mudallal senta-se na beirada de sua cadeira, com as costas eretas e palmas sobre a mesa. O acordo de reconciliação com a Fatah, que governa a Cisjordânia, foi assinado depois de anos de rivalidade com o Hamas e poderia por um fim ao sofrimento, diz ela. Ambos os lados libertaram prisioneiros políticos desde então e agora os jornais da Fatah podem mais uma vez ser lidos na Faixa de Gaza. Mas de outra forma, pouca coisa mudou – o Hamas continua governando Gaza e Mudallal ainda é a porta-voz do governo, um governo que não deveria mais existir. 
Mudallal postou uma foto de si mesma com seu colega em Ramallah em sua página no Facebook, ambos sorrindo. Todas as coisas relacionadas ao governo de transição ficam a cargo de seu colega na Cisjordânia. O governo inclui quatro ministros de Gaza, mas eles não são membros nem do Hamas nem da Fatah. De fato, fazer parte do gabinete é muito mais um gesto de boa vontade; os ministros de Gaza não têm permissão para viajar para Ramallah.

Hamas em crise
O presidente palestino Mahmoud Abbas prometeu que o novo governo reconheceria Israel, mas o Hamas continua resistindo. "Eles prendem nossas crianças e destroem nossos lares", disse Mudallal, cuja família fugiu de um vilarejo não distante da cidade israelense de Ashdod em 1948. Ela está convencida de que os israelenses nunca permitirão um estado palestino. Para ela, o Hamas é a parte dominante do novo governo de transição. A Autoridade Palestina de Abbas está dialogando com os israelenses há anos, diz ela, mas não conseguiu nada. As negociações, ensina Mudallal, não têm sentido.

"Você entende?", ela pergunta ao homem da Fundação Friedrich Ebert, que também é palestino. Ele está em pé diante dela como um aluno na escola. Quando ela se irrita, normalmente fala inglês e sua voz endurece.

O homem assente e oferece a ela seu cartão de visita; ela aperta sua mão em troca. Então, pela primeira vez naquela tarde, Mudallal se recosta na cadeira.

Naquele momento, o ar condicionado para de funcionar - falta energia. Como o diesel de Israel é caro, o Hamas desligou a única usina de energia de Gaza e só há eletricidade durante algumas horas por dia.

O Qatar está atualmente pagando pelo combustível porque o Hamas está praticamente falido. Ele ficou particularmente sem dinheiro desde que o exército egípcio destruiu túneis usados para contrabando; a economia do túnel era a principal fonte de renda dos islamitas. A falta de renda advinda das mercadorias se traduziu em perdas de cerca de US$ 15 milhões por mês para o Hamas no ano passado. Para a população, isso significa falta de itens alimentares básicos, gasolina, materiais de construção e outros itens necessários.

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Morte de jovens reacende conflito Israel-palestinos36 fotos 34 / 36
1°.jul.2014 - Avi e Rachel Fraenkel, pais de Naftali Frenkel, um dos três jovens israelenses sequestrados em junho, participam de seu funeral no assentamento de Nof Ayalon, região central de Israel. Os corpos de Gilad Shaer, 16, Naftali Frenkel, 16, e Eyal Ifrach, 19, foram encontrados nesta segunda-feira (30). Israel responsabiliza o Hamas pelo sequestro e pela morte dos jovens e diz que haverá retaliação. Shaer, Frenkel and Ifrach serão velados e sepultados em cerimônia conjunta em Modiín, região central de Israel 

"Ela é tão arrogante"
Na manhã seguinte, um comitê focado em fortalecer os direitos das mulheres se reuniu no Ministério de Interior e Mudallal foi convidada a participar. Sete mulheres e dois homens sentavam-se em torno de uma mesa sob uma sura do Alcorão emoldurada. Havia biscoitos de chocolate e chá adoçado sobre a mesa. O comitê apresentou um relatório de 50 páginas detalhando seus planos para um jornal, um site e filmes para mulheres.

"Não precisamos de outra reunião de blá-blá-blá", interrompeu Mudallal, bruscamente. O grupo deveria tratar de problemas específicos em vez disso, ela argumentou. Como pode ser, por exemplo, que a mulher de um palestino assassinado seja obrigada a casar com o irmão dele?
Uma das mulheres sobre a mesa virou os olhos sob o véu dobrado. "Ela é tão arrogante", sussurrou outra.

Isra al-Mudallal sabe que ofende os outros. "Não são muitas as pessoas que gostam de mim", disse depois da reunião e isso não parece incomodá-la muito. Ela aperta as mãos dos homens e dá ordens para eles em inglês. Ela estudou em Bradford, Inglaterra, por cinco anos, onde seu pai fez Ph.D. "Lá, havia neve, cores, shoppings", diz ela. "Aqui as crianças brincam com lixo." Diferente de seu irmão e irmã, ela voltou para Gaza. Ela gostava da vida na Inglaterra, mas não era a vida dela. Mesmo assim, seus primeiros meses depois de voltar foram difíceis e ela com frequência se perguntava como as pessoas podiam viver sem o mínimo de conforto - e, às vezes, sem itens de necessidade básica.

Ela estudou comunicações na Universidade Islâmica e foi apresentadora de um canal de televisão religioso. O Hamas a havia chamado outras duas vezes antes para trabalhar para o movimento, e ela havia recusado em ambas. Nem Mudallal nem seus pais são membros de um partido político. "Então eu pensei, por que não?" Os desafios estão aí para serem aceitos, diz ela. Isso foi em novembro de 2013. Ela enfatiza que fala pelo governo, não pelo Hamas. Quando Mudallal menciona seus empregadores, ela nunca diz "nós".

Conheça os pontos da negociação entre Israel e palestinos

Estado palestino 
Os palestinos querem um Estado plenamente soberano e independente na Cisjordânia e na faixa de Gaza, com a capital em Jerusalém Oriental. Israel quer um Estado palestino desmilitarizado, presença militar no Vale da Cisjordânia da Jordânia e manutenção do controle de seu espaço aéreo e das fronteiras exteriores

Fronteiras e assentamentos judeus 
Os palestinos querem que Israel saia dos territórios que ocupou após a Guerra dos Seis Dias (1967) e desmantele por completo os assentamentos judeus. Qualquer área dada aos israelenses seria recompensada. Israel descarta voltar às fronteiras anteriores a 1967, mas aceita deixar partes da Cisjordânia se puder anexar os maiores assentamentos. Israel já retirou tropas e população da faixa de Gaza.

Jerusalém 
Israel anexou a área árabe da Jordânia após 1967 e não aceita a dividir Jerusalém por considerar o local o centro político e religioso da população judia. Já os palestinos querem o leste de Jerusalém como capital do futuro Estado da Palestina. O leste de Jerusalém é considerado um dos lugares sagrados do Islã. A comunidade não reconhece a anexação feita por Israel.

Refugiados 
Há cerca de 5 milhões de refugiados palestinos, a maioria deles descendentes dos 760 mil palestinos que foram expulsos de suas terras na criação do Estado de Israel, em 1948. Os palestinos exigem que Israel reconheça seu "direito ao retorno", o que Israel rejeita por temer a destruição do Estado de Israel pela demografia. Já Israel quer que os palestinos reconheçam seu Estado.

Segurança 
Israel teme que um Estado palestino caia nas mãos do grupo extremista Hamas e seja usado para atacar os judeus. Por isso, insiste em manter medidas de segurança no vale do rio Jordão e pedem que o Estado palestino seja amplamente desmilitarizado. Já os palestinos querem que seu Estado tenha o máximo de atributos de um Estado comum.

Água 
Israel controla a maioria das fontes subterrâneas da Cisjordânia. Os palestinos querem uma distribuição mais igualitária do recurso.
Tentando ser um modelo
Depois da reunião do comitê, ela carregou a filha, dormindo, até um táxi para ir para casa, em Rafah, no extremo-sul da Faixa de Gaza. Durante o inverno, os egípcios fecharam a travessia da fronteira por 48 dias consecutivos e milhares de palestinos foram obrigados a esperar semanas para poder sair. Esta punição coletiva, diz Isra al-Mudallal, é um abuso aos direitos humanos - o tipo de atitude raivosa que costumava ser dirigida apenas para Israel. Mas agora, algumas pessoas - ainda que em silêncio – lembram-se da época em que os israelenses controlavam a Faixa de Gaza. Na época, ainda havia liberdade de movimento e os salários eram pagos.

O táxi sacode ao longo da estrada costeira, passando por crianças sentadas em frente a barracões Quonset, fogueiras feitas em barris abertos. A filha de quatro anos de Mudallal, Mariam, na verdade mora com o ex-marido de Mudallal e a família dele na Cidade de Gaza, mas a cada duas semanas, Mudallal a pega para passar dois dias. Agora ela até comprou um apartamento em um novo prédio na Cidade de Gaza, embora ainda não esteja terminado por causa da falta de cimento.

"Eu simplesmente trabalho muito", diz Mudallal. Mas ela também diz que sua filha é o motivo pelo qual ela está fazendo tudo isso. Ela quer ser um modelo: uma mulher independente e trabalhadora, até onde for possível, em Gaza. Ainda assim, as mulheres palestinas têm uma situação melhor do que as mulheres de outros países árabes; elas podem dirigir, andar livremente e trabalhar. O problema não é o governo ou a lei, diz ela, mas a tradição. Mesmo que as meninas saibam andar de bicicleta, os pais não permitirão isso, diz.

Mariam poderá andar de bicicleta quando ficar mais velha?

"Não, não quero que as pessoas digam coisas ruins sobre ela."

Mudallal se casou aos 18 anos com um programador de computadores, mas ela disse que ele não a respeitava. "Ele só queria me controlar." Quando ela percebeu que não gostava de sua vida como esposa, divorciou-se.

Embora Mudallal diga que não é seu dever mudar a sociedade, ela recentemente confrontou o ministro de interior, um linha-dura do Hamas, quando ele só queria que mulheres com véu estivessem presentes em sua coletiva de imprensa. Uma jornalista não precisa usar véu, rebateu. Sim, disse o ministro. Não, disse Mudallal. No final, ela venceu.




Sonhos cercados
Ela sabe como é a vida fora da Faixa de Gaza. Ela sabe que às vezes há pouca diferença entre ser um modelo e ser uma camuflagem. Algumas pessoas pensam que o Hamas só se tornou mais liberal por fora enquanto se radicalizou internamente, especialmente no que diz respeito às opiniões divergentes entre seus próprios partidários.

"Todo governo comete erros, inclusive o meu", diz Mudallal. Ela não gosta da forma como o Hamas trata os manifestantes ou do fato de ele não permitir opiniões divergentes. Ela fez um acordo com seus supervisores de que, caso ela não aprove alguma coisa, não será obrigada a comentar sobre. Nesses casos, outro porta-voz assumirá.

Quando ela finalmente chegou a Rafah, descarregou caixas do porta-malas contendo uma torradeira e um liquidificador. Sua família mora em uma casa espaçosa com um jardim com grama curta e verde que parece quase britânico. Seu pai, Walid al-Mudallal, um professor de história de 50 anos, está sentado na varanda. Um homem calmo e equilibrado usando um paletó de tweed, ele sempre se manteve distante da política palestina, diz. De que vale a política se não há espaço para apoiar a mudança? Em Gaza, ele acrescenta, até os sonhadores são cercados. 

Ele conta como aconselhou sua filha a não aceitar o emprego de porta-voz do Hamas. É muito difícil, ele argumentou. Não para sua filha, mas para a sociedade palestina que não está acostumada a uma mulher como ela.

Tradutor: Eloise De Vylder

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