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Um programa completo de governo traduzido na linguagem estética e política das ruas |
O
Brasil chega hoje, véspera do segundo turno da eleição presidencial,
com o mais acirrado cenário de disputa desde o restabelecimento da
democracia no país. O que é ótimo. Apesar da guerra de nervos e das
interpretações que falam em divisão e ódio de classes, a situação
precisa ser festejada: os cidadãos sabem o que querem. E, de forma
plural e salutar, desejam coisas muito diferentes.
É disso que
trata uma eleição, da disputa de projetos, ancorados no desejo dos
cidadãos e na história de quem os propõe. O dissenso, nesse momento, é
única garantia democrática que temos. Dele advém a governabilidade, por
um lado, e a oposição responsável, por outro. A comemoração da vitória
ou o lamento da derrota serão apenas a sombra da responsabilidade que
deve se seguir aos resultados de amanhã.
O fato de a reforma
política ter entrado com tanta força nessa eleição é também sinal de
maturidade. Impulsionada pela sociedade em junho do ano passado, nas
ruas de todo o país, a descrença com as regras que hoje viciam o jogo
político se tornou ponto de honra, uma convocação ao compromisso com a
mudança.
Sem uma profunda transformação das regras
institucionais no campo da política, aí incluídos o financiamento e o
papel dos meios de comunicação, o risco é de perpetuação de tudo que foi
atacado como perverso na cena política. A reforma, na verdade, é a
única saída para o fim do “pemedebismo” que tomou conta da política
nacional, conforme analisou o cientista político Marcos Nobre.
A
democracia existe exatamente para isso, dar capacidade política de
exercício da vontade da maioria, traduzida em expansão de direitos,
competência no exercício da administração e na abertura à participação
na vida pública. A democracia não se encerra com a eleição, começa com
seus resultados.
Com relação aos projetos em disputa, como foi
repetido inúmeras vezes durante a campanha, o Brasil viu, da
redemocratização para cá, o surgimento e amadurecimento de duas
possibilidades: o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo. Cada lado
tem sua cota de ideologia, perspectiva política, ação administrativa,
entendimento da participação popular e prioridades. Para a primeira, o
Estado mínimo; para a segunda, o papel indutor e popular.
Não é
mais hora de repisar os argumentos que, de certa maneira, trouxeram de
volta a divisão entre esquerda e direita na política brasileira. Não é
bom ter medo das palavras. Ainda que muitos defendam que não faz mais
sentido falar nesse tipo de polaridade no mundo contemporâneo, a
campanha deixou claro que os conceitos não são apenas operacionais, como
elucidativos.
Esquerda e direita têm projetos para a saúde,
educação, habitação, inflação, moradia, segurança, participação popular,
inclusão social, políticas sociais, direitos humanos e cultura, entre
outras. São propostas distintas, cada qual com sua racionalidade. Há,
por exemplo, um jeito de prover saúde que se aproxima dos valores
igualitários, outra que atende aos interesses do mercado. Cabe ao
cidadão, por meio das campanhas dos candidatos, conhecer e debater as
propostas, traduzindo sua compreensão e desejo em voto.
O outro
fato definidor do voto é a trajetória dos candidatos. Por isso a ideia
de desconstrução, tão atacada durante essa campanha por um falso
moralismo, tem seu potencial politizador. É preciso saber com quem
estamos lidando, já que o testemunho da imprensa não se mostrou
imparcial. O jornalismo brasileiro voltou ao século 19 em sua paixão
ideológica inequívoca.
Este é o lado A da democracia.
O
lado B é a tradução do resultado eleitoral em ações de governo. Elas
devem ser exercidas por meio de políticas públicas, por um funcionalismo
profissionalizado, com a provisão de serviços de qualidade, gerência
eficiente dos projetos prioritários e controle severo dos desvios.
O
lado mais complexo da democracia não é a escolha do governante, mas a
realização do desejo popular em formas legais, legítimas e competentes.
E, o que é essencial, passível a todo tempo de crítica, fiscalização e
controle. Democracia supõe ordem, mas não vive nem se desenvolve sem
conflito.
Universal Mas há uma questão
fundamental: os projetos, ainda que diferentes, precisam ser alimentados
pela mesma lógica democrática que sustenta o sistema. Não se pode, por
exemplo, julgar que é legítimo lançar mão de ideias e propostas que
atentem contra as conquistas da humanidade. No campo da democracia não
há espaço para o preconceito, para a violência contra minorias, para a
discriminação de qualquer natureza.
O mesmo princípio vale para
os direitos sociais. Não é democrático, no atual estágio da sociedade
brasileira, por exemplo, propor que questões como educação, saúde e
direitos trabalhistas sejam tratadas com a lógica do mercado. Direitos
não se traduzem em serviços. Estamos no estágio superior da consagração
dos direitos civis, não da reivindicação de ações tópicas ou
compensatórias.
Sempre que se defende a retirada do Estado do
campo dos direitos constituídos (ainda que com a marca das parcerias
privadas ou chanceladas pelo selo falso da “modernização”), seja para
dar espaço ao mercado, seja para justificar a regressão nas regras –
como flexibilização dos direitos conquistados pelos trabalhadores) –, é
preciso alertar para o déficit de democracia envolvido no processo.
A
reinvindicação de direitos sociais já conquistados, em todos os campos,
passa hoje por um momento de universalização que não permite mais
retrocessos individualizantes. Não se pode barganhar algo que é da
esfera da sociedade para o âmbito restrito da pessoa. Os direitos
sociais não são concessões ao cidadão, mas princípios de funcionamento
da sociedade.
Essas afirmações, aparentemente óbvias, na
realidade apontam para um risco que parece rondar o mundo, definido pelo
pensador francês Jacques Rancière em seu livro, recentemente lançado, O
ódio à democracia. Ainda que seja constituída como um valor de
exportação pelos países mais ricos do mundo, a democracia vem sendo
submetida a um juízo de valor que, na maioria das vezes, se traduz como
certo horror ao povo.
Há um inegável mal-estar dos privilegiados,
não apenas no Brasil (que assistiu às cenas patéticas de desagrado com a
chegada dos trabalhadores aos aeroportos, tomado como invasão de seu
território quando a venda de passagens saltou de 30 milhões para mais de
100 milhões), mas em todo o mundo. Com a desqualificação dos mais
pobres, as políticas que se destinam às maiorias foram consideradas
populistas e as que defendem as minorias tidas como autoritárias.
Essa
situação evidencia um duplo prejuízo, que atenta por um lado contra o
povo para em seguida atacar os direitos humanos. A chegada do povo ao
consumo, à cidadania, aos espaços sociais antes vedados e à política,
não apenas como mais um voto, mas como um índice de participação, é a
melhor notícia da democracia brasileira dos últimos anos. Mesmo que
sociólogos experientes ainda teimem em desqualificar suas escolhas, numa
melancólica memória dos tempos do voto censitário. Saudades da
casa-grande.
A retomada das discussões em torno da participação
direta (prevista na Constituição Federal, como muitos se esquecem), pode
ser o elemento decisivo para derrotar o “ódio à democracia” com uma
dose, digamos, insolente e participativa de democracia popular, que
tanta falta faz ao mundo.
E é em nome dessa requalificação
política, com suas consequências em termos de projeto de governo, que a
opção pela candidatura de Dilma Rousseff (PT) se afigura mais
democrática que a de Aécio Neves (PSDB). Há um índice de ampliação, de
escala, que aponta para esse novo campo democrático que vem desafiando
os pensadores políticos em todo o mundo: como democratizar a democracia
num cenário de ameaça da regressão popular por razões ideológicas. A
oligarquia satisfeita e pacífica sempre fez da paixão democrática um
campo de realização individual, onde o bem comum não estava presente.
São as democracias sem povo. Aqui, a história é outra.
Escala O
Brasil mudou muito. A sequência dos governos do PSDB e do PT formaram
um momento histórico de transformação, sem dúvida, mas que incidiu de
forma diferenciada na vida da maioria da população nos dois tempos de
governo. De tal maneira a sociedade brasileira foi formada sob o tacão
da desigualdade que só muito recentemente passamos a nos horrorizar de
verdade com as marcas do passado. Mesmo assim, nem todos. Os mais iguais
ainda rondam.
A saída que permitiu, no âmbito psicológico, que
suportássemos tanta injustiça social foi certo entorpecimento da culpa
em nome de forças que iam além de nossas escolhas. Assim, criou-se uma
falsa sensação de que a vitória sobre a desigualdade seria resultado de
um conjunto de ações que somariam a conquista da riqueza social, por um
lado, com o empenho individual, por outro. Numa mão o crescimento do
bolo, ainda que à custa do trabalhador que não tinha sua fatia; de outro
o reconhecimento dos talentos, numa ideologia meritocrática de
fancaria, que nada mais fez que naturalizar os privilégios.
É
preciso uma inflexão destemida em direção ao combate à injustiça social.
E, no estágio brasileiro de séculos de concentração, isso impõe uma
agenda de políticas de intervenção do Estado na regulação e na oferta de
condições de realização aos mais pobres, tendo como parâmetro a noção
de igualdade.
É preciso investir mais onde falta mais. Como se
trata de uma dívida histórica de longo prazo, o ideário liberal não é
capaz, por si próprio, de cumprir sua ficção igualitária, mesmo em
longuíssimo prazo. Os privilégios não são um acaso em nossa formação,
mas uma ferramenta.
Por isso se torna importante, nesse momento,
seguir políticas públicas que tenham escala, que sejam exercidas na
casa dos milhões. A dívida social é antiga, grande e profunda. Na
educação, por exemplo, é isso que apontam números como a inclusão de
mais 1,5 milhão de jovens na universidade; o investimento em escolas
técnicas (também num patamar de crescimento que ultrapassa quatro
dígitos de crescimento); o acesso de jovens ao melhor ensino do mundo,
por meio de bolsas em universidades de ponta; a mudança das formas de
seleção para o ensino universitário; a política de cotas; a linha de
crédito real para financiamento da formação.
No campo da saúde,
além do incremento de gastos no setor, é preciso destacar a inclusão de
50 milhões de pessoas na atenção médica, com a contratação de 14 mil
médicos estrangeiros, que cobrem um vácuo deixado pelo modelo liberal de
formação de profissionais de saúde brasileiros. A criação de novos
cursos de medicina vai impactar ainda o mercado, direcionando recursos
para as áreas de atenção básica, clínica e medicina social. Deixada ao
sabor do mercado, a saúde exclui pelos altos custos, discrimina pela
porta de entrada, e se torna limitada tecnicamente na opção pelo uso
intensivo de tecnologia e pelo modelo de formação distanciado das
necessidades da população.
Saúde e educação são apenas sinais
mais expressivos da tradução dos intentos efetivamente populares. Outros
dados podem ser agregados, como a diminuição do índice de desemprego,
aumento real do salário mínimo, melhoria do Índice de Desenvolvimento
Humano, retirada de milhões de pessoas da miséria extrema, crescimento
da classe média.
Mesmo assim, esses e outros indicadores apenas
tangenciam a desigualdade social brasileira. A eleição de amanhã, nesse
sentido, precisa ser compreendida como uma ação para o futuro, como um
aprofundamento no caminho que se mostrou historicamente mais viável para
a universalização de direitos e para a conquista da igualdade. O outro
caminho é a retomada, em via regressiva, de um trajeto que é limitado em
suas próprias bases pela ação livre do mercado.
Crescer,
distribuir renda, respeitar direitos sociais, ampliar a participação
popular, incluir, proteger os direitos humanos, melhorar os serviços
públicos, representar de forma altaneira os interesses nacionais no
cenário internacional e combater sem tréguas a corrupção. A esses itens
se resumem os dois projetos.
O que os diferencia, e parece óbvio,
ponto a ponto, nas propostas dos dois candidatos, é o quanto de
democracia cada um desses aspectos carrega. E democracia não pode ser
apenas a condição de possibilidade do voto. Precisa ser a expressão de
sua verdade. É disso que trata uma eleição: do dia seguinte.