Mostrando postagens com marcador Luli Radfahrer. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Luli Radfahrer. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O caminho do bem - Luli Radfahrer

folha de são paulo
Sob muitos aspectos, a internet se parece com uma favela. Poderia usar aqui o eufemismo politicamente correto "comunidade", mas isso aumentaria a confusão, já que o termo é utilizado extensivamente sempre que se fala de mídias sociais. Por isso a preferência por "favela", palavra inconfundível, com tudo o que ela tem de característico.
Como toda favela em geral e nenhuma em particular, na rede há muita gente de bem que se vira como pode nas condições precárias oferecidas. Para quem está do lado de fora, o caos é mais aparente do que a ordem, e a ausência de parâmetros mínimos de infraestrutura chama a atenção e causa horror. Há muita sujeira, é inegável. Mas há também uma boa dose de ordem, caso contrário a estrutura entraria em colapso.
Como em uma favela, a presença do governo na internet é quase virtual, enquanto a das corporações e multinacionais é ostensiva, seja nos mercadinhos, nos chips de celulares, nas motocicletas, dentro e fora das televisões. A falta de investimentos em infraestrutura torna os serviços públicos precários, o que estimula a criação de estruturas paralelas para ocupar as lacunas, oferecendo serviços para quem, pragmático, não é de fazer muitas perguntas.
A ausência de estruturas formais e de limites estabelecidos leva ao surgimento de grupos independentes, que ao mesmo tempo sustentam e ameaçam o aspecto utópico do gigante auto-organizado. A vida não é tão linda nem tão inocente no território livre e anárquico. Boa parte dela é ocupada por grupos de interesses escusos, que recrutam desocupados na promessa de dinheiro fácil e, na forma de camelôs ou servidores de spam, acabam por fazer mais mal do que bem.
O pecado mora literalmente ao lado nas comunidades, sejam elas físicas ou digitais. Há tentações para todos os gostos, do furto de sinal da TV a cabo a esquemas de lavagem de dinheiro. Boa parte dos crimes e dos tráficos passam por ali, mesmo que não tenham ali sua origem ou destino. O ambiente, neutro, não é favorável nem contrário à ilegalidade. Anda paralelo a ela, reconhecendo sua presença como parte da paisagem.
É natural. Comunidades emergentes costumam ter uma relação mais flexível com as leis, para dizer o mínimo. A voz do grupo e suas regras implícitas costumam valer mais do que as determinações impostas, pouco importa sua sensatez ou legalidade. Igrejas ortodoxas, clubes de ultra-ricos e presídios, nesse aspecto, têm muito em comum com favelas e com a internet.
A presença da polícia é sempre controversa nos ambientes auto-intitulados "livres", sejam eles favelas ou universidades. Por mais que todos concordem que não devam ser invadidas, ocupadas, vigiadas ou "pacificadas", é de senso comum que não podem ser versões contemporâneas do Faroeste, em que as únicas leis que valem são as de Darwin e Newton.
Na falta de meios-termos, o que sobra são confinamentos e toques de recolher. Como em todo território ocupado, as áreas são demarcadas, policiadas por milícias informais. Nem toda rua é acessível e nem todo horário é recomendável. Ai daquele que se meter aonde não deve, que entrar aonde não for chamado ou que dar uma de turista, passeando de camisa florida e câmara no pescoço por áreas fronteiriças.
A dinâmica social complexa das comunidades, físicas ou virtuais, é fruto da interação contínua e crescente de regras simples e comportamentos pragmáticos em sua superfície. Seja na forma de celulares piratas com múltiplos chips, puxadinhos de arquitetura Gaudí, festas de playboys na laje, gambiarras em geral e interpretações variadas da Cauda Longa, a estrutura é ao mesmo tempo fascinante e rotineira como um gigantesco formigueiro, que ocupa terrenos rejeitados pelas grandes estruturas, caindo de vez em quando e se reconstruindo silenciosamente.
O resultado é um ambiente fascinante, muitas vezes criativo e alegre apesar da carência extrema de recursos. A efervescência é tamanha que é comum sua influência sobre a grande mídia e sobre a sociedade em geral, na forma de expressões, vestimentas, comportamentos e outros memes.
O final do filme "Cidade de Deus" mostra como a vida nessas estruturas segue e se recompõe, em seus vários caminhos. Sob a trilha sonora de Tim Maia, a narrativa sugere seguir "o caminho do bem", que leva a uma vida modesta e fecunda, no amor de um doce paraíso. Basta que para isso se compreenda, sem ingenuidade, a estrutura em que se habita.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Luli Radfahrer

folha de são paulo

As novas mentes da Renascença

Ouvir o texto

Você já deve tê-los visto por aí. Jovens criativos, cujos talentos distribuídos entre áreas tão diversas quanto música e sociologia não parecem se encaixar nas gavetinhas reservadas para a arte. Eles são vistos com desconfiança e desprezo pelos mais velhos. Quem se diz cineasta e bailarino precisa ser medíocre em ao menos uma das áreas, para conforto dos egos alheios.
No entanto, florescem. Criados livres de um aprendizado restrito, compartimentalizado e unidisciplinar, jovens que cresceram com a internet tiveram, pela primeira vez na história, tutores incansáveis, de capacidades infinitas, oscilando entre canais quando necessário.
Não é fácil ser polivalente hoje em dia. O conhecimento necessário para ser especialista em uma área é formidável, a ponto de praticamente não sobrar tempo para outros interesses. Para piorar, quanto mais sofisticado é o conhecimento, mais difíceis são os conceitos e os jargões.
Nada de novo para a geração Pokémon, que enfrenta desafios com o empenho dedicado a games. Curiosos e incansáveis, esses monstrinhos crescidos rodeados de estímulos e opções têm em si um pouco de médico e de louco. Sua forma de pensar é chamada de "mente da Renascença", em referência a um período em que, depois de séculos isoladas, as pessoas voltaram a compartilhar conhecimento.
A visão multimídia não é exclusiva da Renascença. Pitágoras, na Grécia antiga, cresceu na ilha de Samos entre tutores e navios, e sua curiosidade e formação vasta o ajudaram a influenciar áreas tão diversas quanto filosofia, ética, política, matemática, religião e música.
No século 18, Goethe teve aulas de diversas línguas ainda na infância. Bom desenhista e leitor ávido, virou poeta, novelista, dramaturgo, cientista, filósofo e diplomata. Sua teoria sobre a natureza das cores, seus textos científicos e obras literárias, como "Fausto" e "Werther", encantaram o mundo e inspiraram composições de Mozart, Beethoven, Schubert, Mahler e tantos outros. Seus ensaios filosóficos influenciaram Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Jung e Wittgenstein. Até Darwin se deixou levar por suas ideias.
O símbolo do raciocínio da Renascença é, naturalmente, Leonardo da Vinci. Pintor, escultor, arquiteto, músico, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, geólogo, cartógrafo, botânico e escritor, ele imaginou helicópteros, tanques, calculadoras e baterias solares em seus cadernos, sem se preocupar em publicá-los, ou mesmo se os protótipos poderiam ser executados.
Exceções em suas épocas, esses tipos são cada vez mais comuns. Munidos de pensamento crítico, multidisciplinar e inquisitivo, falando um créole multimídia que impressionaria James Joyce, são eles que construirão novas formas de arte, ciência e entretenimento, cada vez mais integradas, humanas.
Parte cientistas, parte humanistas, parte artistas e parte empresários, eles retratam uma geração desconfortável por não se adequar a modelos arcaicos de aprendizado e prática profissional.
Seu desconforto alerta para uma realidade em que ninguém pode mais se dar ao luxo de se isolar em sua especialidade. Como na vida, o aprendizado surge da colisão de ideias, por mais disparatadas que pareçam ser no início.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Os dois lados do livro digital - Luli Radfahrer

folha de são paulo
Poucas invenções humanas foram tão importantes para o desenvolvimento da espécie quanto a Escrita. Alfabetos, desde o cuneiforme, se responsabilizaram pela nobre tarefa de preservar e perpetuar as ideias e histórias além das restrições de tempo e espaço.
Para transportar essas descobertas surgiu outra ideia grandiosa: o livro encadernado. Descobertas científicas, textos sagrados, tratados comerciais, leis e documentos cartoriais diversos foram acumulados ao longo dos anos, transformando bibliotecas de meros depósitos a verdadeiros santuários, cultuados e temidos. Não há regime fechado que não tenha seu índex de livros proibidos.
A edição bibliográfica sempre foi uma indústria parcialmente democrática. Se por um lado qualquer pessoa poderia submeter seu manuscrito para publicação, a produção e distribuição era um negócio de risco. Na forma de cópias caligráficas em pergaminhos de pele de ovelha ou, mais tarde, impressa em tipos móveis, fotolitos ou chapas digitais, a produção era cara e precisava se pagar.
Para minimizar o risco surge o conselho editorial, que decide o que seria publicado. Se é verdade que alguns de seus erros relegaram histórias e invenções brilhantes ao anonimato, não se pode negar seu valor em buscar exatidão científica e apuro literário.
Livros, no entanto, nunca foram perfeitos. Como toda invenção, sempre estiveram sujeitos a críticas. Durante muito tempo suas melhorias estiveram no processo de impressão, buscando legibilidade, qualidade de imagens e cores. As árvores mortas para produzir papel, o cloro necessário para alvejar páginas e a toxicidade da tinta eram considerados efeitos colaterais, males necessários. O impacto ambiental do seu transporte o desperdício de encalhes não-recicláveis nem eram levados em consideração.
Símbolos de status intelectual, estantes de livros em casa são cultuadas, a ponto de decoradores buscarem as encadernações mais belas em sebos para adornar as bibliotecas de abastados cuja profundidade literária não costuma ir além das revistas de celebridades. Livros de mesa, pesados, enormes e vistosos com suas fotos de castelos e flores, adornam mesinhas de centro e servem de apoio para taças de vinho daqueles que nunca tiveram a intenção de lê-los e os avaliaram pela capa. Ou pela cor.
Fazendas de ácaros e cupins, livros acumulam poeira e ocupam espaço. Suas páginas mofam, enrugam, rasgam, amarelam e incham com água. Qualquer texto destacado ou anotado nelas passa a fazer parte do livro, maculando o objeto, obstruindo a leitura posterior, inacessível para quem o anotou se não lembrar a página e volume em que a anotação se deu. Estava na hora de uma atualização digital do formato.
e-books não são "apenas" livros. São uma espécie de software. Como tal, podem ser consumidos em diversos aparelhos, desde os trambolhos de tablets que adoramos hoje até na forma de áudio, "lidos" por sistemas de narração. Podem ser alugados, baixados, armazenados em bolsos, discos rígidos e na nuvem. Acessíveis a qualquer hora, podem ser compartilhados, buscados, anotados sem comprometer o original e ter todos os destaques compilados. Acima de tudo, podem ser compartilhados à vontade, sem que se perca a posse do original. O que, aliás, é um original?
Como a música, o vídeo e outras formas de produção cultural convertida em software, há questões de formato e propriedade que precisam ser discutidas. Mas não há dúvida que logo surgirão aparelhos leves, dobráveis e de altíssima definição, que reproduzirão todas as "vantagens" que saudosistas teimam em ver nos livros em papel, acrescidas de dicionários, links, referências bibliográficas e outras formas de acesso direto à web. Tanto a Amazon quanto redes sociais como Goodreads buscam tirar proveito do novo formato, estimulando o compartilhamento de ideias, trechos e recomendações entre leitores.
Mas não se pode esquecer que o Livro é mais do que um objeto. Ele também é um formato de comunicação, importantíssimo, cuja extinção é preocupante. Por demandar uma leitura contínua, concentrada e dedicada, o livro estimula a reflexão. Seu raciocínio estruturado e envolvente cria uma pausa quase meditativa na correria do cotidiano.
Como há espaço para enumerar, desenvolver e, acima de tudo, fundamentar os argumentos expostos, é possível criar linhas de pensamento das quais qualquer um pode concordar ou discordar, parcial ou completamente. Só não se pode ignorá-las. Livros estimulam e fundamentam qualquer discussão.
Se a popularização dos e-books é bem-vinda por se sobrepor ao objeto livro, ela é preocupante por colocar em risco o formato literário, longo, reflexivo e profundo, fundamental em tempos impulsivos de excesso de informação e decisões por impulso. Pontos de referência em um universo de estímulos, livros editados representam a curadoria do conhecimento acumulado ao longo da história, que não pode ser ignorada.
A partir do ponto em que qualquer um pode publicar suas opiniões sem a necessidade de um editor, que o leitor pode consumir vários textos ao mesmo tempo, compartilhar trechos pelo Twitter em um clique ou se perder em links pela rede, fecha-se o que o pesquisador dinamarquês Thomas Pettitt define como "Parêntese de Gutenberg", rebaixando as opiniões escritas ao nível das opiniões faladas, aleatórias, em que a probabilidade de se encontrar alguém interessante para uma conversa em profundidade é cada vez menor.
Se o objeto Livro já vai tarde, o formato Livro --com sua fundamentação de ideias e curadoria de conteúdo-- deve ser preservado no mundo digital. Sem livros o mundo é minúsculo, pouco importa o tamanho da rede.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Código é poesia - Luli Radfahrer

folha de são paulo
ouça o texto
A expressão, usada como slogan pela plataforma Wordpress, é controversa. Comparar a nobre arte poética com a técnica da programação parece sacrilégio.
Código é frio e calculado, precisa ser objetivo, não pode dar margem a interpretações. O que isso tem em comum com a artesania de palavras que compõe um verso?
A relação entre as duas áreas tem origens medievais. Até o século 12 não se calculava com números na Europa. Para isso existiam os ábacos. Derivados do sistema romano, números eram apenas um tipo de letra usada para registrar quantias.
A invasão árabe trouxe com ela as descobertas aritméticas dos hindus e persas, entre eles os escritos de Al-Khwarismi. De seu nome vêm os conceitos de algarismo, algoritmo e logaritmo.
Entre suas invenções está a Álgebra, uma língua composta de pequenas frases e sinais que registra e calcula operações matemáticas. Em frases curtas, sequenciais e de gramática rígida buscava-se descobrir a incógnita, chamada por ele de xay (coisa), que não tardou a se transformar no "x" de tantas questões.
Algoritmos, como equações algébricas, usam expressões para realizar operações. Sintéticas, essas frases em línguas estranhas (SQL, JavaScript, HTML) têm sintaxe, ortografia e métricas precisas.
A semelhança entre código e poesia vai além de sintaxe e frases curtas. Ambas têm propósito, sentido e estrutura. Por motivos diferentes, precisam ser elegantes e concisas.
Bom código, como boa poesia, não "acontece" naturalmente, nem pode ser gerado a partir de dicionários de rimas. Demanda disciplina, talento e trabalho duro.
Algoritmos bem desenvolvidos, como poesias bem escritas, seguem fluxos naturais de ideias. Tudo neles parece estar no lugar correto, nada pode ser removido, cada linha emenda naturalmente na próxima.
O fluxo de operações não é determinado pela estrutura gramatical mas pela forma com que cada ideia se conecta à seguinte, complementando a anterior. Linhas de código, como versos, fazem referências cruzadas, em que cada parte amplifica e sintetiza o que a antecedeu.
Como bem sabe quem já tentou escrever poemas ou algoritmos, a tarefa não é fácil. Licenças poéticas, exceções e desvios acabam sendo usados para contornar problemas, criando emendas que geram trabalhos de péssima qualidade.
Muitos preguiçosos autointitulados poetas apenas por serem capazes de rimar as palavras no fim de duas linhas se espantam porque ninguém suporta lê-los ou ouvi-los. Dodecassílabos, alexandrinos, heroicos ou redondilhas, poemas precisam de estrutura. Como eles, os haikus e sonetos algorítmicos demandam estruturas e métodos para serem devidamente apreciados.
Programar websites e aplicativos é complexo, mas não é impossível, nem restrito a mentes brilhantes especiais. Da mesma forma que todos podem escrever, todos podem programar. Com engenho e arte, novos talentos podem fazer o que Chico, Caetano e Gil fizeram com os versos da nossa música.
Mas só se poderá cultivá-los quando o preconceito que se tem com relação aos desenvolvedores for substituído pela admiração que temos por quem garimpa a beleza oculta na última flor do Lácio.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Luli Radfahrer - Servos e servidores

folha de são paulo
Ao cultuar as redes e os dispositivos em vez do conteúdo, qualquer aura mística é redirecionada
Desde o surgimento do controle remoto, o poder editorial vem se transferindo para o usuário. Internet, smartphones, tablets e redes sociais criaram um mundo em que praticamente tudo é personalizado.
Há um componente vicioso, quase pornográfico-masturbatório, nesse controle. Caminha-se para o dia em que cada residência terá um conjunto de escravos digitais dispostos a fazer de tudo para divertir, tranquilizar, excitar ou alienar seus donos, por mais bizarros que sejam os anseios.
Mas quem é realmente o submisso na relação? É cada vez mais comum ver pessoas "viciadas" em coisas, com cara e jeito de "junkie", aprisionadas aos seus tamagochis, incapazes de abandoná-los, em uma relação que beira a dependência. Não é curioso que as chamemos de usuários?
As queixas de quem prejudica trabalho, família ou vida social para ficar mais tempo conectado são típicas: desejam sinceramente abandoná-las por um tempo ou reduzir seu uso, mas quase nenhum consegue. Afastados, muitos mostram ansiedade e sintomas de abstinência.
Redes de relacionamento, comércio eletrônico, jogos, compartilhamento e outros opiáceos sociais fazem cada vez mais parte da vida cotidiana. Se não houver um equilíbrio em seu uso, o envolvimento pode alterar a noção de identidade.
Espelho photoshopado da realidade, a personalidade digital interfere cada vez mais na pessoa que deveria refletir. Aperfeiçoado pelo avatar, é tentador confundir as fronteiras entre o papel que se representa e quem se é. Chega-se a um extremo de, como um retrato invertido de Dorian Gray, coisas horrorosas serem feitas por perfis impecáveis.
Delírios de grandeza, morbidez, crueldade e outras perversões cada vez mais comuns no mundo digital dão a impressão de que ele está mais para "oeste selvagem" do que para utopia. Não é raro quem se comporte como se a internet funcionasse além dos limites históricos, econômicos, racionais e jurídicos.
Da mesma forma que os espelhinhos dados aos índios por seus conquistadores, muitos desses novos ambientes de relacionamento dão a ilusão de poder, à medida que aumentam a submissão, criando uma espécie de simbiose entre o usuário e seu fornecedor de alegria transitória.
Em 1936, o filósofo Walter Benjamin alertava para o perigo de que a reprodução tecnológica criasse uma impaciência que acabaria por destruir a "aura" da arte e eliminar a humildade necessária para compreendê-la. Ele não imaginou que essa deferência fosse transferida do quadro para a moldura que o abriga.
Ao cultuar as redes e os dispositivos tecnológicos em vez do conteúdo que abrigam, qualquer aura mística é redirecionada para os aparelhos e os aplicativos. Esse novo ritual não tem nada de arte nem de religião --é puro fetiche. Seu uso não encoraja o conhecimento nem estimula a descoberta. Pelo contrário, fixa suas vítimas a objetos e as escraviza.
Revoltado com o excesso de ordem e de controle da sociedade do "Admirável Mundo Novo", um de seus personagens desabafa sua insatisfação com o mundo hermeticamente limpo: "Não quero conforto. Quero a poesia, quero o perigo real, quero a liberdade, quero a bondade, quero o pecado", resumindo a fascinante complicação que nos torna demasiadamente humanos.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Luli Radfahrer

folha de são paulo
Você é um só
Ao dar à tecnologia um espírito vago, impessoal, o que move a sociedade é uma desculpa esfarrapada
E não é aquele do Facebook. Do Google+. Do Instagram. Dos games. Do WhatsApp. Nem de todas essas redes, e outras tantas, combinadas. Morando sozinho ou se isolando por trás das telas brilhantes de smartphones, tablets, PCs e notebooks, falando pelo Twitter o que não teria coragem de dizer ao vivo, multiplicado por diversos perfis e avatares, você ainda é um só.
Você, que acumula objetos de uso questionável e contribui para a formação do lixo eletrônico ao mesmo tempo que reclama da poluição e da exploração do planeta.
Você, que faz passeata contra a corrupção enquanto compra notas frias. Que critica o tráfico ao mesmo tempo em que o financia, que reclama do preço do ônibus, mas não deixa o carro nem para ir até a padaria. E que, uma vez nele, não respeita faixa, deficiente, idoso ou limite de velocidade e fala ao celular enquanto guia.
Você que, via redes sociais, se orgulha de ter atingido uma fusão entre intimidade e distância, quando o máximo que fundiu foi a ilusão de ambas. Sua comunidade se transformou em um mecanismo terceirizado de autoimagem, ao mesmo tempo vaidoso e inseguro, preguiçoso e ansioso, otimista e pragmático.
Imerso na rede, você criou um reflexo psicológico em que precisa saber de tudo no mesmo momento, posicionando-se o quanto antes, já que cada atualização diz mais respeito à opinião dos outros do que ao que você realmente pensa.
Fascinado pela ideia de se transformar em veículo de informação, você parece ter se esquecido (ou deixado de se importar) que só haverá meios se houver mensagens. E que ao reproduzir sem pensar o que ouve dos outros, não gera mais do que microfonia.
Não adianta se esconder nem tentar desafiar seus ritmos biológicos na vã tentativa de acompanhar o mundo simbólico em que vive, evitando qualquer contato com a realidade. O máximo que conseguirá é confundir seus mapas com o território que representam.
Você acha que é diferente e, no entanto, é igualzinho aos que critica. Não espanta que espere cada vez mais da tecnologia e cada vez menos das pessoas.
É inegável, você está só. Sua solidão não foi criada pelo mundo digital, mas por suas ações esquizofrênicas. Não adianta mais colocar a sociedade na terceira pessoa, tentando se isentar de qualquer responsabilidade. O mundo "real" tem muito de virtual. E vice-versa. É uma relação simbiótica.
Mas conexão não é o mesmo do que vínculo. O budismo (o de verdade, não essa onda chamada de "sabedoria 2.0", em que a meditação é uma espécie de videogame contemplativo) ensina que todos estão interconectados. Que os desafios reais não estão no futuro, mas bem à nossa frente. E que o apego aos bens e às ideias pode ser muito prejudicial.
Ao dar à tecnologia um espírito vago, impessoal, o que move a sociedade é uma desculpa esfarrapada. Fruto de um sistema capitalista, a única resposta que a tecnologia pode trazer é mais tecnologia. Ela é só uma ferramenta, não há consciência nela. Tudo que ela faz é fruto de ideias de gente como você.
Por mais que você ache, como Mário de Andrade, que é trezentos, que é trezentos e cinquenta, não se iluda. Como ele, você é um só. E ainda terá que topar consigo e prestar contas com seu legado.
Apesar de você, diz a música, amanhã há de ser outro dia.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

E agora? Voltamos para a internet? - Luli Radfahrer

folha de são paulo
Agora que deixamos as redes sociais, fomos às ruas, nos manifestamos e conseguimos o que tínhamos proposto a princípio, para onde vamos? Pararemos as cidades cada vez que algo estiver errado? Ou voltaremos ao Facebook com a sensação de quem fez a sua parte, reclamando que "o Brasil não tem jeito" e voltando a ver inutilidades?
Não me parecem soluções viáveis para tirar o Brasil dessa situação. A Revolução dos Bichos mostra que não se muda de uma posição bovina para uma ativa em atos repentinos, pois é fácil cair na armadilha de salvadores da pátria com discursos messiânicos, que depois se rendem ao sistema. Já vivemos essa história.
Muitos parecem estar perdidos por não serem capazes de enxergar todo o cenário. Concentrados na manifestação, deixam de ver a situação. Décadas de controle social, de publicidade corporativa e de fabricação de consentimento público anestesiaram as pessoas, tirando delas a percepção de que cada um pode ser agente de mudança. Na ressaca das conquistas há uma sensação natural de desorientação. Conseguiu-se os tais vinte centavos, até em lugares onde eles não foram pedidos, mas isso é - como sempre pareceu - muito pouco. O que fazer, então?
O jornalista Ricardo Boechat defende, em uma bela argumentação, que o que se viu na última semana foi um desabafo generalizado, um "basta". Não parece ter direção porque os problemas são muitos, diversos, sistêmicos, e não há como resolvê-los sem uma profunda e significativa mudança.
Oportunistas procuram transformar os fatos em uma situação que peça intervenções espúrias, como a do infame Partido Militar Brasileiro ou a do apavorante Foro de São Paulo. São iniciativas de controle que ameaçam a liberdade, verdadeiros golpes de Estado debaixo dos nossos narizes.
A solução é mais complexa do que parece. Até as tais "cinco causas" tem seus problemas. É possível pressionar pela rejeição de medidas impopulares, mas o que fazer com tanta coisa errada? Mesmo que todos os parlamentares deixem seus cargos, o que garante que seus aliados perderão o poder? Ou que os invisíveis que os controlam largarão a mão? Ou que os que virão depois não serão ainda piores?
Mesmo quem todo mundo adora não poderá, sozinho, mudar o país. Teria Marina Silva a capacidade de barrar os excessos propostos pela bancada de pastores, que envergonham os princípios e preceitos religiosos de tanta gente boa evangélica no país? Seria Joaquim Barbosa capaz de lutar sozinho contra o que o Capitão Nascimento chama de "esquema"? Acho que não. Uma andorinha, dizem, não faz o Verão.
Pede-se a imediata investigação de irregularidades nas obras da copa e olimpíadas, mas quem as fiscalizará? Será que isso já não está sendo feito, só que por um sistema lento e que pode levar à impunidade como aconteceu com o Mensalão? Mesmo que haja a relocação do PIB para áreas como saúde ou educação, nada indica que melhorariam. Ou você já se esqueceu da CPMF?
Corrupção, impunidade, homicídios, impostos, qualidade das escolas e hospitais públicos são excelentes motivos para que se saia às ruas e se tente melhorar o país. Mas isso é só o começo.
Políticos se apegam aos atos de vandalismo, apoiados por demagogos que usam as imagens de ladrões oportunistas na tentativa de manipulação. Por mais que se discorde das linhas editoriais de determinados veículos, açoitar a mídia é perigoso. Isso pode gerar um controle da liberdade de expressão, buscado há tempos pelo governo.
As ruas mostraram que somos o que Sérgio Buarque de Holanda chamava de homem cordial, que se deixa guiar pelo coração. A paciência pode ter se esgotado, mas não tem jeito: essas coisas se resolvem com a lei. Que deve ser aplicada para todos, sem exceção. É preciso substituir o Jeitinho Brasileiro por um sistema de reputação. E a melhor forma para isso é criar uma rede de transparência e educação.
Ah, mas isso dá uma preguiça... para muitos é mais fácil pensar nesses problemas como se estivessem além de sua capacidade para resolvê-los. Mas eles não estão.
Nunca se discutiu tanto a política, e isso é muito positivo. Nas calçadas, shoppings, cabeleireiros, táxis, bailes e rodas de capoeira, nunca o assunto foi tão popular. Se falava em violência urbana, transporte e inflação, mas o assunto logo era desviado para o futebol e a novela.
Já outros temas eram quase tabu: corrupção, impunidade, educação, saúde, impostos, superfaturamento, salários baixos de funcionários de serviços essenciais, regalias de políticos e comprometimento da mídia eram tópicos cercados de tanta ignorância que não tardava para serem classificados como "chatos" e relegados a debates de centros acadêmicos em escolas de ciências sociais, em que também faltava um debate plural.
A ignorância é mãe da incompetência. Corrupção, saúde e educação são temas de longo prazo, que não podem ser resolvidos à base de passeatas ou canetadas, sob o risco de serem desviados ou gerarem efeitos colaterais ainda piores. Quem se indignou a ponto de se interessar pelo assunto deve manter sua indignação em uma constante auditoria. Thomas Jefferson defendia que o preço da liberdade era a eterna vigilância. E na época dele não existiam tantas ferramentas.
Não adianta gritar "Sem partido!" Por muito tempo. A rebelião contra oportunistas na Av. Paulista foi válida, mas não se sustenta. Países sem partido são retrocessos, sem exceção. O que é preciso é uma conscientização política. Assim será possível sanear (e sanitizar) as estruturas. A constituição brasileira está entre as mais avançadas do mundo, só precisa ser acompanhada por uma população que a compreenda e a utilize corretamente, não votando em palhaços, funkeiros, pastores e jogadores de futebol, a não ser que suas propostas sejam muito claras e acompanhadas de estudiosos e técnicos capazes de pô-las em prática.
Boa parte do desinteresse político vem da complexidade do sistema e da impotência de seus usuários. Apresentada de forma técnica, remota e entediante, a política se tornou distante, velha, uma fatalidade. Até mesmo as eleições, para muitos, não passam de um fardo. A impotência é tanta que leva muitos a se esquecerem que políticos são funcionários públicos. Acompanhar seu desempenho é direito e dever e responsabilidade de todos.
Redes de comunicação baseadas na Internet funcionam como plataformas. Sobre elas nascem novos produtos e serviços, criando novas interações a partir de seus bancos de dados. Esse é um dos motivos do sucesso das redes sociais. Nada impede que sejam usadas para despertar o Gigante ao estimular o debate, combater estereótipos, gerar conhecimento, facilitar o equilíbrio entre pontos de vista e criar redes de valor.
Entrar na Internet, todos sabemos, é mais fácil do que ir às ruas. Durante muito tempo esse foi o argumento de quem desprezava o ativismo digital. Mas a mesma rede também serviu como ferramenta de conscientização e motivação, transformando ciberativos em hiperativos.
Algumas iniciativas são louváveis, mas são poucas: há quem faça vídeos explicando o que está acontecendo para pessoas de outras cidades ou países, lutando com informação contra os que os chamam de arruaceiros. Há quem use o Twitter para disponibilizar atendimentos e serviços, ou mesmo quem libere a rede de casa para ajudar as manifestações de quem está nas ruas. A Wikipédia mostra como se constrói conteúdo de qualidade rapidamente. Movimentos de monitoração social como o Voto Consciente e o Radar Municipal mostram que é possível monitorar e fácil informar.
Não adianta ler Arendt ou Bobbio ou iek ou Bauman ou Marcuse ou Hobsbawn e se queixar da pós-modernidade. É preciso colocar as mãos na massa.
Minha proposta é a de organização de outro tipo de movimento. Um que use plataformas digitais para construir propostas. Ele não precisa de líderes. Não tem nome nem endereço. Não pode ser cooptado. É invisível e onipresente. Sua ordem se baseia em reputação, não em cargo. No discurso competente, não no outorgado. Um presidente e um faxineiro tem, nele, o mesmo direito à expressão. Vence quem tiver melhor argumentos.
Uma de suas propostas, mais fácil de ser executada do que a derrubada do projeto do Feliciano, é a criação de uma rede social com o perfil de todo parlamentar. Um Facebook da classe política, em que todas as atividades, propostas, discursos, tamanhos de gabinetes e faltas estejam registradas e sejam de fácil - e amplo - acesso. Nessa rede, melhor do que seguir um revendedor de gás com quem você fez o ensino médio, você poderá acompanhar os atos de alguém que realmente importe e interfira em sua vida, verificando seu perfil político, técnico e científico antes de votar.
A rede pode ser complementada por Wikis que, como a Wikipédia, são repositórios de conteúdo gerado coletivamente. Há wikis até para Lost, porque não haver uma para explicar projetos e atividades do Congresso, do Supremo, do Executivo?
Blogs podem acompanhar os acontecimentos e servir de centrais de distribuição de informação. Tumblr e Twitter podem dispor pequenos conteúdos em periodicidade aleatória, como denúncias e exemplos de iniciativas sociais na prática. Podcasts e audiolivros podem informar quem não tem tempo de ir à rede porque passa horas e horas a caminho do serviço em transporte público precário.
Websites, de todos os partidos, podem servir de demonstração de suas bandeiras políticas, abertamente, cada um usando os recursos que tem, sem se apropriar de movimentos políticos nem organizar showmícios com artistas vendidos ou alegadamente despolitizados.
Até recursos de jogos podem ser usados entre os mais novos (ou mais alienados). Transformá-los em "jogadores" que ganham pontos ao comentar artigos ou reencaminhar links é um bom ponto de partida.
Os mais engajados podem usar grupos de discussão, que propiciam debates em que os argumentos mais populares ganham destaque, mas que todas as opiniões ficam registradas para consulta posterior.
Até a câmara do smartphone, que se mostrou mais poderosa do que o spray de pimenta e as balas de borracha, pode ser usada como instrumento de mobilização, registrando filas, abusos e buracos, físicos ou estruturais, no sistema.
Não é difícil democratizar a inovação e o ambiente de participação pública, convidando a todos para que participem de seu desenvolvimento. Quando chegarmos a esse ponto, o Datena e outros tantos serão são só pontos da rede. Não será necessário nem recomendável silenciá-los quando for possível relativizá-los, coisa que a TV nunca permitiu.
Para resumir, o Pequeno Príncipe dizia que "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas", enquanto o Homem Aranha defendia que "grandes poderes exigem grandes responsabilidades". Não é preciso ter muito estudo para compreendê-los.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Luli Radfahrer

folha de são paulo
Cérebro de formiga
Processadores menores que um grão de areia permitirão colocar computadores em quase qualquer objeto
Uma formiga sozinha é inofensiva. Até mesmo a rainha, retratada em desenhos animados como estrategista, não passa de uma operária cuja única função é gerar novas crias. Em conjunto, no entanto, não há quem possa com elas.
Há formigueiros tão grandes que seriam inimagináveis em nossa escala. A formiga argentina, nativa do Pantanal, pega carona em navios para se espalhar pelo mundo, formando supercolônias. A maior delas contorna o mar Mediterrâneo. Seus parentes habitam um formigueiro de 900 quilômetros no litoral da Califórnia e outro de tamanho equivalente no Japão.
O planeta está dividido entre as duas civilizações que desenvolveram técnicas de organização social, cultivo de plantas, criação de comida e guerra. Nós somos a segunda. Com cerca de 1,6 milhão de formigas para cada ser humano, as biomassas das duas espécies se equivalem.
Esse mecanismo emergente de coordenação indireta, presente nos insetos de comportamento social, como vespas e abelhas, é chamado de estigmergia, e tem influenciado várias pesquisas em inteligência artificial.
Na natureza, as formigas inicialmente andam sem rumo, em busca de comida. Quando encontram, voltam para a colônia deixando um rastro de feromônios que será identificado e seguido por outros. Com o tempo, os feromônios evaporam, deixando marcada somente a trilha mais usada.
É impressionante como um conjunto de tarefas pequenas pode gerar estruturas tão grandes. Mas essa organização emergente é mais comum do que parece. Em uma favela, por exemplo, não há arquitetos ou urbanistas a planejar a posição de casas e ruas. Cada barraco é construído segundo regras bastante simples de convívio, que geram estruturas que desafiam morros e vales, a ponto de, na ocorrência de incêndios nelas, a maioria das perdas ser só material.
Algoritmos de simulação e interação pesquisam o comportamento de formigas e abelhas, procurando compreendê-lo e otimizá-lo para várias aplicações, deslocando parâmetros para testar todas as soluções probabilísticas, combinando técnicas e decidindo qual a melhor a usar.
Suas aplicações podem ser extensas, como a determinação de rotas para veículos autônomos e a medicina em escala celular, com nanorrobôs para caçar tumores. Algumas de suas aplicações práticas já podem ser vistas nos efeitos especiais em cinema e games, como as batalhas de "Senhor dos Anéis" e as revoadas de morcegos em "Batman".
Já existem protótipos de impressoras 3D capazes de posicionar centenas de milhares de processadores menores do que um grão de areia, no lugar e na orientação precisa. Elas serão capazes de criar computadores em praticamente qualquer objeto, capazes de identificar mudanças de temperatura, pressão ou situação e, a partir dessas informações, agir. O resultado pode ser uma camiseta que está sempre na temperatura certa, um sapato que nunca escorrega ou aparelhos muito mais sofisticados do que os que hoje temos a ousadia de chamar de computadores.
Por ser capaz de criar estruturas simples, baratas, robustas e extremamente resilientes, essa inteligência permitirá que, em um futuro próximo, a percepção do ambiente esteja em praticamente todos os objetos, de roupas a naves espaciais, medicamentos a casas.
É um tipo muito estranho de inteligência, mas não duvido que nos acostumemos rapidamente a ela. Da mesma forma que os objetos um dia foram enriquecidos com eletricidade e fibras sintéticas, não tardará para que tenham uma camada computacional.

    segunda-feira, 20 de maio de 2013

    Luli Radfahrer

    folha de são paulo

    Nas profundezas da internet
    Para muita gente é ali que os tais hackers pedófilos neonazistas traficam drogas e órgãos de bebês chineses
    Sou usuário da "deep web". E não vejo problema algum nisso. Faço muitas pesquisas em bases de dados e bibliotecas específicas, daquele tipo em que o Google Acadêmico só agora começa a entrar. Na USP, muitos dos trabalhos de alunos não estão prontos para irem a público, por isso protejo seu conteúdo do acesso por mecanismos de busca.
    Hoje fala-se muito nessa internet "escondida", inacessível pelos browsers comuns. Como acontece com todo ambiente novo, ela ganhou uma mitologia própria, tornando-se o habitat do que há de mais perverso na mente humana. Para muita gente é ali que os tais hackers pedófilos neonazistas traficam drogas e órgãos de bebês chineses, invisíveis aos olhos da lei.
    Como tudo no mundo, nada é tão simples. A "deep web" nada mais é do que a parte da internet que não foi indexada pelo Google e seus concorrentes, cerca de 99% da rede.
    Todo mundo já acessou documentos dela, mesmo que nunca tenha baixado um filme, aplicativo ou música ilegal. Boa parte do tráfego de informações financeiras, comerciais, estratégicas, científicas e administrativas se dá escondido do público. Não são conspirações nem lavagem de dinheiro, mas transações como extratos bancários e exames laboratoriais que, apesar de usarem a internet, não são públicos.
    Também há repositórios privados, redes militares, fóruns estratégicos, intranets e laboratórios de pesquisa cujos dados, estratégicos, valem uma nota e precisam ser restritos a assinantes.
    Se imaginarmos a web como espaço público cheio de bibliotecas, bancos, museus e shoppings, a "deep web" é composta por seus bastidores, em que estranhos não são bem-vindos.
    Quem vai atrás deles corre o mesmo risco de quem entra na favela para comprar maconha, temendo igualmente a polícia e o ladrão. Um rapaz arrumado em um prédio na Cracolândia é mais suspeito do que seus moradores, muitos deles inocentes.
    No mundo digital as aparências não são tão claras. Por isso browsers específicos, como o Tor, garantem o anonimato de seus usuários por meio de conexões distribuídas. O acesso é mais lento, recomendado apenas para quem pretende driblar firewalls, consciente do risco que isso representa. Repórteres o utilizam para escapar das restrições de censura em regimes fechados. Usando o mesmo canal, várias operações ilegais são conduzidas em anonimato, pagas em bitcoins.
    Dentro desse mercado negro existem fóruns e wikis, cheios de links para orientar os turistas. Boa parte são golpes descarados ou arapucas. Imagine sua reação a uma plaquinha dizendo "vendem-se metralhadoras" em um barraco de favela e fica fácil entender que, como no mundo físico, quem pretende entrar na legalidade o faz por indicação, não por cliques em links.
    Infelizmente muitos jovens não são tão espertos. Imbuídos de espírito de aventura e transgressão, animados com os resultados de seus experimentos com sexo, drogas e rock, muitos não têm uma percepção da realidade ampla o suficiente para distanciá-la da ficção. Como quem joga um novo game, se entusiasmam com o que encontram, se divertindo em chocar os colegas com novas perversidades. É tudo muito fascinante, até que alguém se machuque. Aí só resta torcer para que não seja sério.
    Não acredito que grupos neonazistas os recrutem porque essas associações, como qualquer outra, precisam de dinheiro. É possível que alguns percam a noção do limite e do aceitável, mas o mais provável é que tudo isso seja esquecido. Minha geração cresceu exposta a "Faces da Morte" e não criou mais psicopatas do que estaria destinada. O grande perigo é ter seus computadores --e os de seus familiares-- invadidos, gerando um prejuízo bastante palpável.
    A internet, profunda ou na superfície, não é a Disneylândia. Como toda associação humana, tem coisas boas e ruins. É preciso conhecê-la e desmistificá-la, tirando dela o que há de melhor.

    segunda-feira, 6 de maio de 2013

    Luli Radfahrer

    folha de são paulo

    Sonhar mais um sonho impossível
    Serviços de crowdfunding e prêmios de incentivo estimulam o debate, inspirando novos inventores
    Muito antes de a tecnologia de ponta ser o sonho de qualquer empreendedor-modelo-e-atriz, ela era coisa de militares. As fronteiras distantes pertenciam às coroas e aos governos capazes de bancar as gigantescas empreitadas de conquistá-las.
    O resultado foi uma pasmaceira que, por preguiça, muitos chamam de capitalismo, comunismo ou qualquer definição reducionista usada por quem não se contentava com o estado das coisas mas tinha preguiça de mudá-las. Como só havia uma força capaz de promover a mudança, esta só acontecia com guerras, crises ou revoluções.
    É nesse aspecto que os prêmios de estímulo são importantes. Criados por associações independentes, eles atribuem somas consideráveis em dinheiro a quem promove o progresso. Fama e dinheiro, afinal, apelam para os impulsos primitivos dos corações mais nobres.
    Mais do que filantropia, esse tipo de prêmio é um investimento. Ao estimular a competição, ele agrega talentos em laboratórios de pesquisa cujo custo superaria em muitas vezes o valor premiado.
    O conceito existe desde 1714, quando ingleses colocaram a ideia em prática para calcular a longitude. Em 1919, o empresário francês Raymond Orteig propôs US$ 25 mil para o primeiro voo sem escalas entre Nova York e Paris. O prêmio estimulou nove equipes a fazer em conjunto um investimento 16 vezes maior. O vencedor, Charles Lindbergh, mudou a história da aviação.
    Ao contrário do Nobel e de outros Oscars da ciência, o incentivo não é posterior nem submetido a comitês ou a critérios subjetivos. O desafio é claro, e a conquista, palpável. Nos últimos anos, a facilidade de acesso à tecnologia e a crise mundial aumentaram a sua popularidade. O X Prize é o mais audacioso. Criado pelo empreendedor Peter Diamandis, ele oferece prêmios volumosos às equipes que construírem projetos dignos de ficção: foguetes pequenos, precisos e econômicos; formas eficientes de limpar o óleo no oceano; dispositivos portáteis de diagnóstico médico, entre outros.
    O resultado é rápido: vencedora de um X Prize, a companhia aérea Virgin desenvolveu a primeira rota comercial que leva pessoas comuns à estratosfera, até então domínio de aviadores em ônibus espaciais. Depois de dois dias de treinamento e avaliação física, quatro passageiros e dois pilotos voarão a 30 mil pés de altura, chegando a uma velocidade quatro vezes superior à do som. Ainda nesta década.
    Na mesma linha, o Google Lunar X Prize dará US$ 20 milhões à primeira equipe que colocar um robô na Lua capaz de andar mais de 500 metros e transmitir vídeo de alta definição a partir de lá.
    A competição envolve equipes de países como Estados Unidos, Canadá, Itália, Holanda, Rússia, Índia, Romênia, Chile e Brasil.
    Nossa equipe, a SpaceMETA, é liderada pelo genial Sérgio Cabral Cavalcanti, pesquisador da UFRJ e responsável por uma incubadora em Petrópolis. Entre outras ideias, ela pretende usar etanol como combustível do foguete.
    Não se pode chegar ao futuro reclamando nas redes sociais. Serviços de crowdfunding e prêmios de incentivo estimulam o debate, inspirando novos inventores a romper a incabível prisão, voar num limite improvável e até, quem sabe, tocar o inacessível chão. É inspirador.

    segunda-feira, 29 de abril de 2013

    A importância da ficção científica - Luli Radfahrer

    folha de são paulo

    Desde 1972 que ninguém mais visita a Lua. Pouco importa que cada bolso guarde um smartphone mais potente do que toda a Nasa da década de 70.
    O Futuro perdeu-se de vista. No horizonte próximo o cenário parece catastrófico. Cheio de hackers, tecnologias daninhas, inteligências malignas, desastres ecológicos e holocaustos em geral. O gênero cyberpunk, alimentado pelo pessimismo pós-moderno de Jean Baudrillard e de seus comparsas e materializado em distopias como O Exterminador do Futuro e os livros de Philip K. Dick ("Blade Runner", "Minority Report", "Total Recall") parece ter vencido toda e qualquer utopia. Estaríamos mesmo destinados a um presente contínuo em que nada é criado, apenas transformado para pior? Será que os otimistas foram todos devorados por zumbis, vampiros e alienígenas sanguinários?
    A ficção científica parece viver uma nostalgia depressiva. Fala-se em lendas góticas, histórias medievais, sociedades secretas e bruxarias diversas. A trilogia "Matrix", grande sucesso recente do gênero, fez referências rasas a praticamente todas as religiões, correntes de autoajuda e versões simplificadas da Caverna de Platão. Em outros círculos, pouco se cita além de um "Grande Irmão" --inventado em 1948-- e de um "Admirável Mundo Novo" --de 1932.
    Essa crise não passaria de um lamento intelectual se o gênero não fosse tão importante. Boas obras desse tipo de fantasia costumam gerar visões icônicas, inspiradoras, materializando personagens, produtos e cenários muito além do que pode supor nossa vã Engenharia.
    Ao contextualizar uma história em um ambiente de inovação tecnológica, seus autores precisam imaginar a integração das novas ideias ao cotidiano. Esse é o componente que muitos cientistas e empreendedores se esquecem de levar em conta quando implementam suas ideias. É só pensar na influência de Google, iPhone e Facebook na vida pessoal para compreender o tamanho da encrenca.
    Quando popular, a ficção científica cria modelos de compreensão universal. Seria muito difícil explicar um "campo de força" sem ela. Além disso, suas histórias antecipam questões éticas. Os contos de Isaac Asimov levaram os debates metafísicos para mundos a princípio distantes deles, como a Robótica e a Inteligência Artificial. Seus colegas discutiram extensivamente os problemas de clonagem antes de qualquer filósofo ouvir falar do termo.
    Os inventores do submarino e do helicóptero confessam a importância da obra de Júlio Verne em seus protótipos. Os livros de H.G. Wells tem influência direta na invenção do foguete, no alerta quanto ao risco de bombas atômicas e no uso pacífico da energia nuclear. Em tempos mais recentes, poucas obras foram tão marcantes quanto a série de TV "Jornada nas Estrelas".
    Muitos a associam a convenções de nerds com orelhas pontudas, falando em Klingon. Sua influência, no entanto, vai muito além de um simples fetiche. Inspiradas em westerns e nas "Viagens de Gulliver", as expedições da Enterprise já teriam sido importantes por mostrarem o primeiro elenco multirracial e o primeiro beijo entre pessoas de diferentes etnias na telinha.
    Mas ela fez muito mais do que isso: mostrou monitores de computador em quartos e salas de reunião, fones de ouvido sem fio, telas planas de grandes dimensões e alta definição, videofone, interfaces sensíveis ao toque e sensores de biometria diversos, capazes de reconhecer vozes e identificar palmas da mão e retinas.
    Sua popularidade foi tamanha que fez o inventor do Altair 8800, o primeiro microcomputador, dar a sua máquina o nome de uma das galáxias citadas na série.
    O primeiro telefone celular foi claramente inspirado no comunicador portátil usado pelo Capitão Kirk e Sr. Spock. Para Martin Cooper, diretor de pesquisa da Motorola na época, o seriado não mostrava uma fantasia, mas um objetivo. Tanto que apelidou um de seus modelos mais famosos de StarTAC.
    O comunicador, como boa parte dos smartphones de hoje, também servia para localizar seu portador. Mas o GPS só seria possível graças a uma invenção de outro autor de ficção científica: Arthur C. Clarke, que o descreveu em um artigo de 1945 como sugestão para facilitar a navegação e a transmissão de sinais de TV. Desnecessário dizer que sua invenção levou duas décadas para ser levada a sério. Um conto de Arthur C. Clarke, "Disque F para Frankenstein", fascinou o jovem Tim Berners-Lee, e o inspirou a pensar em uma grande rede mundial de computadores.
    Está na hora de reativar a ficção científica. De pensar em um futuro melhor, mais limpo e otimista, que não deixa de se preocupar com o "Show de Truman" mas que também imagina o teletransporte.
    É certo que uma ficção melhor não salvará o mundo, mas pode inspirar a invenção de novos produtos que melhorem a qualidade de vida. E mostrar para neurocientistas, psicólogos e pesquisadores hoje a serviço de corporações, bancos de investimentos e agências de publicidade, que há objetivos mais nobres do que a dominação do mercado.
    Inspiração não falta: Júlio Verne defendia que o que pode ser imaginado pode ser inventado. Arthur C. Clarke dizia que tecnologias avançadas são parecidas com mágica. E o narrador de "Jornada nas Estrelas" elogiava os que tinham a coragem de ir aonde ninguém jamais esteve.
    Luli Radfahrer
    Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

    segunda-feira, 22 de abril de 2013

    O fascínio de uma câmera analógica - Luli Radfahrer

    folha de são paulo

    A evolução é muito mais complexa e sutil do que propõem os que vendem a eficiência dos processos
    Minha sobrinha Duda é a artista da família em sua geração. Não se sabe de onde a mocinha tirou tanto talento. Sua criatividade não se dá tanto pelo que produz --é uma criança, afinal--, mas por sua forma de questionar e analisar o mundo em volta. É comum vê-la observando distraidamente um formigueiro ou brincando por horas com uma pilha de elásticos.
    Para seu aniversário de dez anos, eu queria dar um presente marcante. Nada de vestidinhos ou bonecas ou gadgets eletrônicos. Ela merecia uma ferramenta com que pudesse exercitar sua veia artística. Depois de muita pesquisa, decidi presenteá-la com uma câmera. Analógica. Manual. Uma daquelas chamadas de "antigas" por aqueles também rotulados com esse termo. Uma clássica Olympus Pen, sem baterias ou controles, vazando um pouco de luz, verdadeiro tesouro "hipster" que encontrei abandonado no fundo do armário.
    Devidamente limpa, equipada e embalada, ela estava pronta para ser entregue. Faltava, no entanto, uma explicação. Por mais que digam que "criança não liga para essas coisas", a passagem da primeira década é uma ocasião importante. Nessa sociedade mercantilista, um presente "velho" pareceria falta de consideração. Ele precisava ser bem apresentado.
    Pensando na situação, lembrei-me da frase do pioneiro da computação Alan Kay: "Tecnologia é tudo o que for inventado depois de você nascer". Cidadã do século 21, Duda dificilmente se interessaria por argumentos históricos ou analógicos. O fato de ter sido uma tecnologia fascinante quando eu tinha a idade dela tampouco teria apelo.
    Recorri, então, às artes plásticas. O que ela tinha em mãos não era uma câmera, mas um instrumento de arte, capaz de gerar peças únicas, originais, frágeis e perecíveis. Não servia para registrar qualquer momento ou situação, mas para colecionar impressões. Acima de tudo, sua operação demandava uma grandeza rara hoje em dia: tempo.
    Em um filme não cabiam infinitas fotos, por isso era preciso tempo para planejá-las. O material exposto precisaria ser revelado, e isso também demandava tempo. Sua câmera digital, em um velho smartphone, prepararia os rascunhos antes da foto definitiva na "velha" maquininha, que apresentava como vantagens todas as características que há alguns anos a tornaram obsoleta.
    O filme fotográfico em preto e branco era outra preciosidade. Multifuncional, servia para a captura e o armazenamento das imagens. Sua estrutura e finalidade poderiam ser mudadas infinitamente, bastava ter uma caixa preta e um buraco. Achei melhor não contar que as imagens dos negativos eram projetadas em papéis virgens e banhadas em soluções químicas --e não impressas-- para não confundi-la. O choque da novidade já tinha sido grande.
    Ao ver o fascínio da mocinha frente a um tipo de câmera que todos um dia chamaram de velha entendi a paixão causada por Polaroids e linotipos, que podem ser desmontados ou repropositados de infinitas formas. A evolução é muito mais complexa e sutil do que propõem os que vendem a eficiência dos processos.
    Queria usar uma foto dela para ilustrar a coluna, mas infelizmente o filme não foi revelado a tempo de entrar na composição do jornal impresso. Nem tudo é vantagem no mundo analógico.

    segunda-feira, 8 de abril de 2013

    Luli Radfahrer

    folha de são paulo

    Vida longa e próspera
    Passar de uma expectativa de vida de 70 anos para 130 anos é muito mais difícil do que foi chegar até aqui
    O aumento da expectativa de vida é uma conquista e tanto. Empolgados como quem viu o homem pousar na lua, muitos projetam longevidades extremas nas próximas décadas. Mas passar de uma expectativa de vida de 70 anos para 130 anos é uma tarefa muito mais árida do que foi chegar até aqui. Mesmo exceções, septuagenários não eram incomuns na Antiguidade. Já centenários vigorosos e produtivos são raríssimos.
    O desafio é grande e envolve uma reforma completa no sistema de saúde. Não se imagina que profissionais sobrecarregados e mal pagos continuem a sustentar uma estrutura piramidal em que uma pessoa precise saber de tudo, decidir na hora, identificar sutilezas, detectar mentiras, estar disponível e cobrar pouco.
    O paciente também precisa fazer a sua parte, abandonando a passividade com que tratam seus exames clínicos. Da mesma forma que hoje todos pensam na alimentação e na atividade física, daqui a pouco a tecnologia ajudará muitos a realizar pequenos autodiagnósticos preventivos diários, tornando-os corresponsáveis por aquele que deveria ser seu maior patrimônio.
    A miniaturização permite novos produtos como o "lab-on-a-chip", que integra funções de análise em um adesivo de poucos centímetros quadrados colado na pele. Por trabalhar com volumes pequenos, ele usa menos reagentes e chega a um diagnóstico rápido e barato. Ainda não é universal nem infalível, mas é um avanço. Outros aparelhos, como o Scout, são como smartphones capazes de identificar e analisar dados vitais em segundos, enviando as informações para um aplicativo no smartphone que registra o histórico e, conforme o caso, indica medicamentos e postos de saúde próximos.
    Do outro lado do balcão, sistemas de inteligência artificial podem revolucionar as consultas médicas. Testado contra especialistas humanos no programa "Jeopardy!" em 2011, o supercomputador Watson, da IBM, venceu com facilidade. Sem acesso à internet, mas com cerca de 200 milhões de páginas de conteúdo vindo de bases de dados diversas, ele se dedicava a buscar evidências, analisá-las, gerar hipóteses e propor respostas em milissegundos. E aprender com cada decisão.
    Ocupando a modesta posição de 94º entre os 500 computadores mais rápidos do mundo, ele hoje custa alguns milhões e ocupa uma sala grande. Mas, como os processadores que colocaram o homem na lua ou ganharam a primeira partida de xadrez contra um humano, acabará barateado e miniaturizado. Ou tornado "invisível" -como os servidores do Google -na nuvem.
    Hoje Watson trabalha com equipes médicas para aprender contextos e particularidades de doenças como o câncer de pulmão. Poucos duvidam que algo como ele se tornará a principal obra de referência clínica mundial em um futuro próximo. Apoiado pela tecnologia, o especialista fica mais bem informado para dar a palavra final.
    Essa reforma conceitual distribuiria melhor as cargas e as responsabilidades do sistema de saúde, criando novas oportunidades de carreira e dando aos especialistas tempo e recursos para cuidar de suas especialidades, uma situação ideal para países, como o nosso, onde a população envelhece e a previdência beira o colapso.
    Mediado por interfaces, o contato regular e preventivo seria tão discreto que passaria despercebido. Como o Dr. McCoy em "Star Trek 4", os novos médicos, auxiliados por seus aparelhos portáteis, seriam reconhecidos por seu verdadeiro talento.

    segunda-feira, 25 de março de 2013

    Luli Radfahrer

    folha de são paulo

    O fim do smartphone


    Há duas décadas um celular era considerado excentricidade nerd. Hoje quem não tem um deles é exótico. Misto de computador de bolso e máquina de entretenimento, o smartphone é de longe o dispositivo eletrônico mais popular, pouco importa a renda de seu usuário.
    Na África, onde alguns modelos são vendidos por cerca de US$ 10, há países com mais celulares do que privadas. Para aproveitar o canal de comunicação, governos e ONGs os utilizam para transmitir informações diversas, como medidas para a prevenção contra a Aids e malária, previsão do tempo, técnicas de plantio e preços de mercado para a agricultura. Por questões de segurança, há uma grande quantidade de transações financeiras feitas através deles, para evitar o transporte de dinheiro.
    Mesmo assim a farra do smartphone dá sinais de estar chegando a seu final. O crescimento no mercado de aparelhos de ponta deve diminuir para 10% a 15% nos próximos dois anos, contra 50% a 100% do passado.
    Na China, que deve se tornar o maior mercado de smartphones do mundo, com 170 milhões de unidades vendidas, novas marcas como Xiaomi têm especificações parecidas com as do Galaxy S3, da Samsung, e do iPhone 5, da Apple, vendidos à metade do preço.
    O problema com os smartphones é que eles são, como os PCs de antigamente, genéricos demais. À medida que o software e o uso se especializam, o aparelho como o conhecemos não consegue mais dar conta das demandas. Por mais que a ficção científica continue a mostrá-los daqui a um século, dificilmente se carregará um retângulo de vidro no bolso nos próximos anos.
    Poucos fabricantes parecem se dar conta dessa estagnação. Restrito a uma tela e um teclado, o usuário de hoje ainda se comporta como um zumbi, andando cego, curvado sobre sua telinha brilhante. Os modelos mais novos prometem pouco mais do que telas maiores, teclados mais eficientes, conexão e processamento mais rápido e baterias mais longevas. A falta de criatividade é tamanha que um dos maiores sucessos nos lançamentos deste ano foi um aparelho à prova d'água. Não há mais o fascínio provocado pelo StarTAC, o N95 ou o primeiro iPhone.
    O resultado é um tédio, que leva a uma deterioração na demanda. Para que comprar todo ano um telefone que faz o mesmo milhão de coisas que meu tablet faz?
    Novos protótipos tentam reavivar o mercado antes que seja tarde. Apple e Samsung apostam em versões do telefone no relógio de pulso, incorporando ao telefone pedômetros e monitores de atividade e saúde. Microsoft e Google apostam em óculos com informações contextuais e camadas de realidade aumentada. Uma coisa é certa: a caixinha multifuncional está com os dias contados.
    A tecnologia digital está finalmente chegando ao estágio em que aprende com seu usuário, em vez de demandar dele um aprendizado. Assistentes virtuais como Siri e Google Now logo eliminarão a necessidade de texto nos celulares, facilitando seu uso em óculos, brincos, tiaras e braceletes. É o primeiro passo na direção de seu desaparecimento, sua transformação em serviços como o são as operadoras de telefonia.
    Um dia tais itens estarão por toda parte, realizando praticamente qualquer tarefa cotidiana. Antes que esse dia chegue talvez seja bom considerar a queixa que há 160 anos Henry David Thoreau fazia em seu livro "Walden", lamentando que as pessoas tinham se tornado ferramentas de suas ferramentas.
    Luli Radfahrer
    Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

    segunda-feira, 11 de março de 2013

    Luli Radfahrer

    folha de são paulo

    Perdido em 2043
    Nada mudou tanto quanto a medicina; sangue, ossos e até órgãos artificiais crescem em laboratórios
    Da janela tudo parecia igual. Na rua, a mudança era grande. Os carros não tinham pilotos. O ar parece limpo. As pessoas, sujas. E magérrimas. Dava para confundi-las com moradores de rua.
    Elas aparentam ter uns 30 anos, me surpreendi ao saber que tinham mais de 70. Estavam na flor da idade, pois a expectativa de vida ultrapassava os 120.
    Meu intérprete diz que a magreza contribuía para a longevidade e que a "sujeira" era biotecnologia, explorando micro-organismos na pele e cabelo e protegendo-os de agentes nocivos como álcool e sabões. Ele é um robô, tem a forma de um papagaio. Pousado no ombro, me faz parecer um pirata.
    Apesar de ridículo, não me deixariam sair sem ele -por segurança, disseram, mesmo que o crime físico estivesse quase erradicado por ali.
    "Come-se muito pouco, alguns nem dormem", continua ele, enquanto eu comia um prato com cheiro e gosto estranhos, que parecia lasanha de micro-ondas.
    Era carne sintética, tecnologia que multiplicou a produção de alimentos para atender os 9 bilhões. Boa parte da comida era geneticamente modificada, reciclada ou criada em laboratório.
    Disseram que era nutritiva e livre de toxinas, o que pareceu bom demais para ser verdade.
    É difícil descrever o impacto de tantas máquinas inteligentes, onipresentes, no cotidiano. De roupas climatizadas e sempre limpas a fachadas de prédios mutantes, tudo parece piscar e pular.
    Não há computadores, celulares ou óculos. O software acompanha seu usuário na forma de "foglets", névoas de nanomáquinas que se configuram conforme a necessidade das pessoas. Não me acostumei com elas, por isso o papagaio.
    Ele me conta das mudanças ocorridas nas três últimas décadas. Quase toda instituição teve de se reformular depois que surgiram a energia gratuita e a nanotecnologia, limpando o ar, reciclando o lixo e gerando um volume quase infinito de recursos.
    Nada mudou tanto quanto a medicina. Sangue, ossos e órgãos artificiais crescem nos laboratórios, são adaptados ao DNA de seus usuários e trocados desapegadamente em funilarias humanas. Privadas identificam doenças e previnem cânceres. Neurocosméticos rejuvenescem a pele. Teme-se a eugenia, armas e drogas perigosas.
    O papagaio, fui descobrir, me vigiava. Visitante de outra época, sem histórico, eu era imprevisível.
    Em 2043 boa parte da vida pessoal é monitorada, não se fala em privacidade. Os espaços comuns são de propriedade privada, toda comunicação é registrada e interpretada.
    Muito do que chamam de memória é só armazenamento sem reflexão. Infraestruturas lembram de tudo, e como não esquecem, não perdoam. Perdidas, muitas pessoas parecem sós, frágeis, infantilizadas, formatadas por mecanismos de busca e objetos de consumo.
    Alguns, cansados das inconsistências humanas, recorrem a relações artificiais com máquinas. Do sexo enriquecido aos bebês que nunca crescem, tudo é artificialmente sereno.
    O Mundo Novo parece tão Admirável quanto assustador. No "Tec", que tem 60 anos, continuamos a analisar o impacto da tecnologia no que teimamos em chamar de natureza humana.