Ao cultuar as redes e os dispositivos em vez do conteúdo, qualquer aura mística é redirecionada
Desde o surgimento do controle remoto, o poder editorial vem se transferindo para o usuário. Internet, smartphones, tablets e redes sociais criaram um mundo em que praticamente tudo é personalizado.
Há um componente vicioso, quase pornográfico-masturbatório, nesse controle. Caminha-se para o dia em que cada residência terá um conjunto de escravos digitais dispostos a fazer de tudo para divertir, tranquilizar, excitar ou alienar seus donos, por mais bizarros que sejam os anseios.
Mas quem é realmente o submisso na relação? É cada vez mais comum ver pessoas "viciadas" em coisas, com cara e jeito de "junkie", aprisionadas aos seus tamagochis, incapazes de abandoná-los, em uma relação que beira a dependência. Não é curioso que as chamemos de usuários?
As queixas de quem prejudica trabalho, família ou vida social para ficar mais tempo conectado são típicas: desejam sinceramente abandoná-las por um tempo ou reduzir seu uso, mas quase nenhum consegue. Afastados, muitos mostram ansiedade e sintomas de abstinência.
Redes de relacionamento, comércio eletrônico, jogos, compartilhamento e outros opiáceos sociais fazem cada vez mais parte da vida cotidiana. Se não houver um equilíbrio em seu uso, o envolvimento pode alterar a noção de identidade.
Espelho photoshopado da realidade, a personalidade digital interfere cada vez mais na pessoa que deveria refletir. Aperfeiçoado pelo avatar, é tentador confundir as fronteiras entre o papel que se representa e quem se é. Chega-se a um extremo de, como um retrato invertido de Dorian Gray, coisas horrorosas serem feitas por perfis impecáveis.
Delírios de grandeza, morbidez, crueldade e outras perversões cada vez mais comuns no mundo digital dão a impressão de que ele está mais para "oeste selvagem" do que para utopia. Não é raro quem se comporte como se a internet funcionasse além dos limites históricos, econômicos, racionais e jurídicos.
Da mesma forma que os espelhinhos dados aos índios por seus conquistadores, muitos desses novos ambientes de relacionamento dão a ilusão de poder, à medida que aumentam a submissão, criando uma espécie de simbiose entre o usuário e seu fornecedor de alegria transitória.
Em 1936, o filósofo Walter Benjamin alertava para o perigo de que a reprodução tecnológica criasse uma impaciência que acabaria por destruir a "aura" da arte e eliminar a humildade necessária para compreendê-la. Ele não imaginou que essa deferência fosse transferida do quadro para a moldura que o abriga.
Ao cultuar as redes e os dispositivos tecnológicos em vez do conteúdo que abrigam, qualquer aura mística é redirecionada para os aparelhos e os aplicativos. Esse novo ritual não tem nada de arte nem de religião --é puro fetiche. Seu uso não encoraja o conhecimento nem estimula a descoberta. Pelo contrário, fixa suas vítimas a objetos e as escraviza.
Revoltado com o excesso de ordem e de controle da sociedade do "Admirável Mundo Novo", um de seus personagens desabafa sua insatisfação com o mundo hermeticamente limpo: "Não quero conforto. Quero a poesia, quero o perigo real, quero a liberdade, quero a bondade, quero o pecado", resumindo a fascinante complicação que nos torna demasiadamente humanos.
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