segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O caminho do bem - Luli Radfahrer

folha de são paulo
Sob muitos aspectos, a internet se parece com uma favela. Poderia usar aqui o eufemismo politicamente correto "comunidade", mas isso aumentaria a confusão, já que o termo é utilizado extensivamente sempre que se fala de mídias sociais. Por isso a preferência por "favela", palavra inconfundível, com tudo o que ela tem de característico.
Como toda favela em geral e nenhuma em particular, na rede há muita gente de bem que se vira como pode nas condições precárias oferecidas. Para quem está do lado de fora, o caos é mais aparente do que a ordem, e a ausência de parâmetros mínimos de infraestrutura chama a atenção e causa horror. Há muita sujeira, é inegável. Mas há também uma boa dose de ordem, caso contrário a estrutura entraria em colapso.
Como em uma favela, a presença do governo na internet é quase virtual, enquanto a das corporações e multinacionais é ostensiva, seja nos mercadinhos, nos chips de celulares, nas motocicletas, dentro e fora das televisões. A falta de investimentos em infraestrutura torna os serviços públicos precários, o que estimula a criação de estruturas paralelas para ocupar as lacunas, oferecendo serviços para quem, pragmático, não é de fazer muitas perguntas.
A ausência de estruturas formais e de limites estabelecidos leva ao surgimento de grupos independentes, que ao mesmo tempo sustentam e ameaçam o aspecto utópico do gigante auto-organizado. A vida não é tão linda nem tão inocente no território livre e anárquico. Boa parte dela é ocupada por grupos de interesses escusos, que recrutam desocupados na promessa de dinheiro fácil e, na forma de camelôs ou servidores de spam, acabam por fazer mais mal do que bem.
O pecado mora literalmente ao lado nas comunidades, sejam elas físicas ou digitais. Há tentações para todos os gostos, do furto de sinal da TV a cabo a esquemas de lavagem de dinheiro. Boa parte dos crimes e dos tráficos passam por ali, mesmo que não tenham ali sua origem ou destino. O ambiente, neutro, não é favorável nem contrário à ilegalidade. Anda paralelo a ela, reconhecendo sua presença como parte da paisagem.
É natural. Comunidades emergentes costumam ter uma relação mais flexível com as leis, para dizer o mínimo. A voz do grupo e suas regras implícitas costumam valer mais do que as determinações impostas, pouco importa sua sensatez ou legalidade. Igrejas ortodoxas, clubes de ultra-ricos e presídios, nesse aspecto, têm muito em comum com favelas e com a internet.
A presença da polícia é sempre controversa nos ambientes auto-intitulados "livres", sejam eles favelas ou universidades. Por mais que todos concordem que não devam ser invadidas, ocupadas, vigiadas ou "pacificadas", é de senso comum que não podem ser versões contemporâneas do Faroeste, em que as únicas leis que valem são as de Darwin e Newton.
Na falta de meios-termos, o que sobra são confinamentos e toques de recolher. Como em todo território ocupado, as áreas são demarcadas, policiadas por milícias informais. Nem toda rua é acessível e nem todo horário é recomendável. Ai daquele que se meter aonde não deve, que entrar aonde não for chamado ou que dar uma de turista, passeando de camisa florida e câmara no pescoço por áreas fronteiriças.
A dinâmica social complexa das comunidades, físicas ou virtuais, é fruto da interação contínua e crescente de regras simples e comportamentos pragmáticos em sua superfície. Seja na forma de celulares piratas com múltiplos chips, puxadinhos de arquitetura Gaudí, festas de playboys na laje, gambiarras em geral e interpretações variadas da Cauda Longa, a estrutura é ao mesmo tempo fascinante e rotineira como um gigantesco formigueiro, que ocupa terrenos rejeitados pelas grandes estruturas, caindo de vez em quando e se reconstruindo silenciosamente.
O resultado é um ambiente fascinante, muitas vezes criativo e alegre apesar da carência extrema de recursos. A efervescência é tamanha que é comum sua influência sobre a grande mídia e sobre a sociedade em geral, na forma de expressões, vestimentas, comportamentos e outros memes.
O final do filme "Cidade de Deus" mostra como a vida nessas estruturas segue e se recompõe, em seus vários caminhos. Sob a trilha sonora de Tim Maia, a narrativa sugere seguir "o caminho do bem", que leva a uma vida modesta e fecunda, no amor de um doce paraíso. Basta que para isso se compreenda, sem ingenuidade, a estrutura em que se habita.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

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